Na
Londres cosmopolita um mayor muçulmano ainda pode incomodar?
ANA FONSECA PEREIRA
05/05/2016 - PÚBLICO
Sadiq
Khan é o favorito das sondagens para vencer eleição e tirar aos
tories o bastião londrino. Será o acto final de uma campanha
manchada por insinuações e acusações de racismo.
A vida de Sadiq Khan
é uma história de superação. Ele é o filho de imigrantes
paquistaneses — o pai condutor de autocarros, a mãe costureira –
que se fez advogado, deputado, secretário de Estado e que poderá
agora assumir o governo de uma das grandes metrópoles europeias. O
candidato trabalhista a mayor de Londres é também muçulmano, mas o
que à partida seria um pormenor na multiétnica e liberal capital
britânica tornou-se o “elefante na sala” desta campanha, muito
por causa de uma estratégia sem tréguas do Partido Conservador,
apostado em não perder a cidade que durante oito anos foi de Boris
Johnson.
“Devo dizer que
estou preocupado com o candidato do Labour”, disse David Cameron no
Parlamento a 21 de Abril, numa sessão que ficará para a história
como o dia em que o primeiro-ministro britânico foi apelidado de
“racista” por deputados da oposição. Repetindo insinuações
lançadas pela campanha de Zac Goldsmith, o candidato conservador à
autarquia de Londres, Cameron acusou Khan de ter dado “espaço e
cobertura” a extremistas islâmicos com quem apareceu várias vezes
em público, incluindo o imã Suliman Gani, que descreveu como
“apoiante do Estado Islâmico”.
A acusação fez
ricochete quando se soube que Gani apoiou nas últimas legislativas o
candidato conservador ao círculo pelo qual Khan foi eleito. Isso não
impediu os tories de continuarem a usá-la como principal linha de
ataque contra o trabalhista, tido como claro favorito à vitória nas
eleições de hoje – tem nas sondagens uma vantagem superior a dez
pontos percentuais sobre Goldsmith, filho de um milionário e figura
do jet-set londrino.
Khan repudiou a
estratégia “suja” e “desesperada” dos adversários, dizendo
que nas vezes em que partilhou o palco com extremistas, em debates ou
conferências, deixou sempre claro que considerava “os seus pontos
de vistas abjectos”. Mas perante o furor mediático viu-se obrigado
a reafirmar as suas credenciais de muçulmano moderado: apesar de
devoto (não bebe álcool), votou a favor do casamento entre pessoas
do mesmo sexo, o que lhe valeu ameaças de morte, e há muito que
classifica o extremismo “como um cancro” – em 2005 a revista
conservadora Spectator elegeu-o como melhor novo deputado do ano
“pela clareza” com que repudiou os ataques de Londres.
“Khan é
claramente um muçulmano moderno e progressista. Se os adversários
se aventuram demasiado nesse terreno [o da religião], arriscam-se a
que isso os atinja”, disse à AFP Tony Travers, professor da London
School of Economics e director do centro de pesquisas sobre Londres.
De Tooting a
Westminster
Afinal, entre os
mais de oito milhões de habitantes da capital, duas em cada oito
pessoas professam o islamismo e a população branca representa menos
de metade dos habitantes. A eleição daquele que pode vir a ser o
primeiro muçulmano à frente de uma grande cidade ocidental seria,
por isso, um sinal forte num momento em que a xenofobia e os
populismos crescem na Europa.
Criado em Tooting,
bairro popular do Sul de Londres, Khan não faz da sua fé uma
bandeira. “Quero ser o mayor de todos os londrinos, de todas as
confissões, dos milionários, dos multimilionários, dos condutores
de autocarro e dos estudantes de Medicina”, disse ao Daily
Telegraph. O seu emblema é o da superação, a “história de
sonho” que diz só ser possível numa cidade como Londres. Nascido
meses depois de os pais chegarem a Inglaterra, cresceu numa família
de oito irmãos que morava num apartamento social de três quartos e
frequentou a escola mais mal afamada de Tooting. O pai trabalhava
turnos seguidos como condutor de autocarro e a mãe completava o
rendimento da família costurando vestidos. Mas todos os filhos
estudaram na universidade e Sadiq Khan estudou Direito, aconselhado
por um professor que lhe notou a veia argumentativa.
Sem nunca deixar
Tooting, especializou-se em direitos humanos e foi presidente da
Liberty, ONG conhecida pela defesa de vítimas de abusos policiais.
Em 2005 trocou o que prometia ser uma carreira lucrativa pela
política e, três anos depois de ter sido eleito deputado, chegou a
secretário de Estado – foi apenas o segundo muçulmano a ocupar um
lugar no Governo britânico. Conhecido pela combatividade, foi
estratego da campanha de Ed Miliband na corrida à liderança do
Labour e voltou a desafiar as probabilidades em Setembro, ao vencer a
votação para candidato do partido a mayor, contra nomes mais
fortes.
“Posso dizer com
honestidade que aquilo que ele conseguiu até agora, vindo de onde
vem, é impressionante. Vem de uma genuína base de imigrantes das
classes operárias e, se Londres o eleger como primeiro mayor
muçulmano, isso será uma história extraordinária de dimensão
global, um imenso tributo ao espírito multicultural de Londres”,
disse ao Guardian o deputado David Lammy, que como Khan é filho de
imigrantes mas foi batido por ele na corrida a Londres.
Racismo encapotado
Um percurso que não
podia contrastar mais com o de Goldsmith, filho do magnata James
Goldsmith, estudante em Eton e que, antes de ser deputado, foi
jornalista na Ecologist, revista fundada por um tio”. E se os dois
não têm projectos muito diferentes para a capital – querem ambos
mais investimento na habitação e nos transportes, os dois grandes
problemas que assombram os londrinos –, o candidato dos tories
notabilizou-se pelas gaffes, como quando foi incapaz de identificar
uma estação de metro ou localizar o Museu de Londres.
Foi neste contexto
que o quartel-general de Goldsmith, onde pontua o muito polémico
estratego australiano Lynton Crosby, começou a lançar insinuações
contra Khan. Em nenhum momento, ele foi acusado de ser um extremista
islâmico, mas por várias vezes as suas ideias foram descritas como
“radicais” – ainda que em matéria política ou económica –
e se insinuou que ele “não é digno de confiança”.
O exemplo flagrante
desta táctica foi a carta que Goldsmith publicou no último Mail on
Sunday em que avisou que Londres está “à beira da catástrofe”,
dizendo que a eleição de Khan abre a porta ao “socialismo
agressivo” defendido pelo líder trabalhista, Jeremy Corbin.
Alertava ainda para o risco de entregar o controlo da Scotland Yard a
um candidato “que, intencionalmente ou não, legitimou
repetidamente a visão dos extremistas”. O artigo recordava que
Khan criticou o envolvimento britânico nas guerras do Médio
Oriente, mas qualquer subtileza desfaz-se perante a fotografia
escolhida para o artigo: o autocarro esventrado por uma das explosões
dos atentados de 2005.
“Este não é o
Zac Goldsmith que eu conheço”, escreveu no Twitter a ex-ministra
Trita Warsi, a única nos tories a insurgir-se contra a campanha
negativa. Goldsmith respondeu que não foi ele quem escolheu a
fotografia e afirmou que nunca trouxe a religião do adversário para
o debate: “Khan está a invocar islamofobia apenas para evitar
responder a perguntas.”
“Tácticas
divisionistas”
Mas foi a sua
campanha que, em meados de Março, enviou panfletos aos eleitores de
origem indiana e tâmil (maioritariamente hindus), alertando-os para
as “políticas radicais” defendidas pelo trabalhista. Tony
Travers disse à Foreign Policy que, numa cidade tão diversa como
Londres, é normal os candidatos adoptarem mensagens distintas para
grupos diferentes. Mas considerou inédita a tentativa de colocar uns
contra os outros. “É uma táctica divisionista e não tenho a
certeza que seja efectiva. Há indicadores de que o preconceito
racial está a aumentar no país, mas não em Londres”, explicou.
No entanto, uma
sondagem realizada no ano passado pela rádio LBC concluiu que um em
cada três londrinos se sentia “desconfortável” com a ideia de
ter um muçulmano como mayor. E os analistas sublinham que a campanha
de Goldsmith não está a falar para a cidade multiétnica, mas para
o eleitorado maioritariamente branco dos subúrbios operários e dos
bairros privilegiados que rodeiam a cidade. “Há a possibilidade de
haver pessoas dissuadidas por este racismo encapotado, pessoas que
não assumem que não vão votar em Khan, mas que nas urnas vão
vacilar”, disse à Reuters Anthony Wells, do instituto de sondagens
YouGov.
As casas de apostas
colocam as hipóteses de vitória de Khan nos 90%, mas o Politics.uk
diz que na sede trabalhista se teme a repetição da inesperada
hecatombe das últimas legislativas e o efeito real de uma campanha
que “lançou a dúvida sobre o quão tolerante é a cidade que se
intitula ‘capital do mundo’”, como escreveu Ian Dunt, o
director daquele site, na Foreign Policy. “Se nem Londres pode ter
um candidato muçulmano sem que a eleição se enrede na discussão
racial, que esperança há então para o resto do mundo?”
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