“Angela
Merkel é eleita pelos alemães e não por 500 milhões de europeus”
ENTREVISTA /TERESA
DE SOUSA 11/05/2016 - PÚBLICO
A
Alemanha decide e, muitas vezes, os outros sofrem as consequências.
Nem a França nem a Comissão conseguem equilibrar o seu poder.
Apenas Draghi. A Europa revelou-se mortal e ninguém tem a certeza se
é ainda possível salvá-la, diz a investigadora francesa Anne-Marie
Le Gloannec.
Anne-Marie Le
Gloannec, uma das mas consideradas especialistas francesas da
Alemanha, é directora de Investigação do CERI em Sciences Po e
investigadora convidada do Instituto Nobel de Oslo. Ensinou na
Universidade Libre de Berlim, na Universidade de Colónia e de
Estugarda. Escreveu em 1989 uma obra que marcou o debate sobre a
unificação alemã: “La Nation Orpheline: les Alemagnes en
Europe”. Hoje, reconhece que continua a haver no centro da
integração europeia uma “questão alemã”. Critica a forma como
Merkel lidera a Europa. Olha para a França com desilusão. Perante a
mortalidade da União Europeia, que a crise fez descobrir, pensa que
alguma coisa ficará. Está pessimista "mas não totalmente
pessimista".
A Europa ainda pode
ser salva, agora que descobrimos que ela é mortal?
Questão muito
difícil. É verdade que compreendemos que a União Europeia é
mortal, mesmo que, infelizmente, não tenha a certeza de que toda a
gente tenha compreendido. Há os que desejam que ela morra. Os que
têm medo de que ela seja mortal, que são os pró-europeus,
incluindo os governos, a classe política e intelectual e as elites
em geral. E depois há uma enorme proporção de pessoas que nem
sequer sabem bem o que é União Europeia e que não se interessam
por saber se ela vai ou não morrer. Não faz parte da sua paisagem
política. Podemos salvar a Europa, sabendo que ela é mortal? Há
ainda um modo de salvá-la? Bom, eu sou pessimista, mas não
totalmente pessimista. Por um lado, ela vai mal em toda a parte. Mas
podemos dizer que não é mais disfuncional do que a América, com
Trump, que a Rússia, que é governada por uma ditadura, que o
Brasil, que a China…
Mas esses países
são nações, nós somos uma União de nações.
Mas há coisas que
ainda se mantêm. Há coisas muito importantes que integram o nosso
quotidiano - os direitos, a liberdade, a protecção dos
consumidores, o mercado comum, que as empresas europeias querem
preservar. Em tudo isto, há leis, há regras comuns e desfazê-las
pareceria algo de inacreditável. Até podemos pensar num euro
reduzido a meia dúzia de países, mas imagine um mercado comum que
se reduz. O que quero dizer é que haverá sempre qualquer coisa que
se vai manter.
A diferença é que,
até esta crise, nunca tínhamos tido esta sensação de mortalidade.
Exacto, mas o que eu
penso é que ela nunca desaparecerá totalmente. Dito isto, há uma
multiplicidade de crises, que se reforçam mutuamente e que
multiplicam as fracturas. Vivemos crises múltiplas e podemos vir a
viver uma crise que ainda nem sequer imaginamos, uma espécie de
“Cisne Negro” que nos pode levar a uma crise sistémica de grande
dimensão. A eleição de Donald Trump, por exemplo, iria criar uma
crise maior, que nos atingiria a todos.
Salvar, mas salvar o
quê? O que nós vemos é que há já um bom par de anos o Conselho
Europeu passou a ter todos os poderes e isso cria problemas.
Primeiro, porque ele está completamente submergido pelas crises e,
em segundo lugar, porque, quando se trata de questões como as quotas
para os refugiados, pura e simplesmente não funciona.
Cá está uma crise
que, lamentavelmente, divide toda a agente.
Já foram tomadas
muitas medidas, algumas vão avançar, outras não. Outras ainda,
exigem mais tempo, como é o caso da Turquia. Ainda não sabemos se
vai haver dispensa de vistos para os turcos porque o Conselho e o
Parlamento europeus ainda têm de se pronunciar. Mas, se acabarmos
com os vistos, teremos menos refugiados mas mais turcos. Qual será o
efeito disto sobre o referendo britânico? Não sei. É extremamente
difícil de antecipar. Esta situação da Europa faz-me lembrar um
conto que li quando era pequena, passado na Holanda, em que um
rapazinho descobre um buraco na mangueira e põe lá o dedo, mas
rapidamente descobre que há imensos buracos e que não tem dedos que
cheguem. A dúvida que resta é saber se vamos enfrentar um
sobressalto de tal dimensão, em que a mortalidade se coloca, levando
toda a gente a perceber que é preciso fazer alguma coisa. A
alternativa é mergulhar no pânico geral.
Falou de 28 países,
mas, nos últimos anos, é apenas um que decide. Continuamos com a
mesma questão alemã que herdamos da unificação?
Absolutamente. E o
problema é que Angela Merkel é eleita pelos alemães, e não por
500 milhões de europeus. Ela é responsável perante o eleitorado
alemão. Mudou algumas vezes de opinião do dia para a noite, fez
várias reviravoltas políticas. Por exemplo, estava disposta a
deixar cair a Grécia [em 2010], quando compreendeu que a banca alemã
ia perder muito dinheiro. O problema é que ela é muito poderosa e
tem um verdadeiro talento, no Conselho Europeu, para convencer uns e
outros. Mas não tem sempre uma linha de orientação clara e leva
tempo a decidir. E isso, obviamente, causa problemas.
Para os outros.
Sim. Todas as
decisões que ela toma vão ter um impacto no resto da União. Por
exemplo, na questão dos refugiados, o que se lhe critica, e acho que
com razão, é o seu famoso discurso em que propõe uma política de
portas abertas. Aliás, essa decisão é mais complicada do que
parece. Foi o Departamento Federal para os Refugiados e Migrantes
que, desde o início do ano passado, avisou que não tinha meios
suficientes para tanta gente e que, por isso, ia aligeirar o
procedimento de pedido de asilo. A partir de Agosto, esse afluxo
aumentou ainda mais e o mesmo departamento federal disse que deixaria
de fazer entrevistas. A mensagem espalhou-se por todo o Médio
Oriente e vieram ainda mais. Merkel foi confrontada com esta
realidade e teve a inteligência de dizer que a Alemanha conseguiria
aceitar o desafio. Simplesmente, quando disse isso, esqueceu-se de
que havia vias de trânsito na passagem entre a Grécia e a Alemanha.
Inicialmente, a Hungria, a Croácia e a Eslovénia disseram que os
refugiados poderiam passar. Mas eles atravessavam as estradas, os
campos, as cidades e que é preciso dar-lhes apoios de toda a ordem,
o que criou rapidamente uma situação ingerível. Ela não pensou
nisso. Foi como no abandono do nuclear [depois de Fukushima], quando
decidiu de um dia para o outro, sem pensar nas consequências que a
sua decisão teria para os seus parceiros.
Agora decidiu
construir um segundo gasoduto, o Nord Stream II, entre a Rússia e a
Alemanha, sem consultar ninguém e fazendo o mesmo que Schroeder.
Faz a mesma coisa,
sem sequer falar no assunto. É inadmissível porque já conhecemos
as consequências da sua decisão sobre a Polónia e a Ucrânia e boa
parte da União Europeia. Há neste momento um excesso de reservas de
gás na Europa. A pressa é apenas para satisfazer algumas empresas
alemãs. É inaceitável.
E não leva em conta
as decisões europeias, por exemplo, em matéria de segurança
energética.
E ela sabe que o
negócio do gás é controlado directamente pelo Kremlin e não
obedece a nenhuma regra empresarial. Isso é inexplicável da parte
de uma chanceler alemã com o seu passado e com os seus princípios.
Como é que se
explica esse unilateralismo? Pensa que a Alemanha já estabilizou o
seu papel na Europa?
Não. A crise dos
refugiados desestabilizou a chanceler no Conselho Europeu. Antes, ela
tinha esse talento de convencer uns e outros. Tinha uma espécie de
“toque de mágica”. Creio que o perdeu com o caso da Turquia
Porquê?
Porque é totalmente
contraditório com os seus princípios morais e com o que tinha dito
antes sobre as portas abertas. Foi um choque ver arame farpado na
fronteira da Hungria, quando a mesma Hungria, em 1989, cortou o arame
farpado para deixar passar os alemães de Leste para Oeste. Depois, a
demografia. Merkel diz há anos que a Alemanha é um país de
imigração - é a primeira chanceler conservadora a dizê-lo.
Construiu um discurso corajoso e inteligente. Mas concluir um acordo
com um Presidente turco cada vez mais autoritário é outra coisa.
Erdogan não perde uma oportunidade para gozar com a União Europeia,
os direitos das pessoas são ignorados nas universidades, nos
jornais. Confia-se a um Governo assim a protecção dos refugiados? É
isto que é escandaloso.
Percebe-se que
Berlim tenha decidido aproveitar a crise para redesenhar a estrutura
económica e monetária da Europa? O resultado abriu feridas enormes.
Sim, podemos dizer
isso. E não apenas feridas. Isso coloca um vasto conjunto de
questões. Por exemplo, nos anos 90, a Comissão exigiu à Hungria
que liberalizasse a economia, o que levou a que os bancos húngaros
fossem todos comprados pelos bancos suíços e austríacos, que
passaram a oferecer crédito fácil às pessoas que, agora, têm as
suas dívidas em francos suíços ou em euros. Vai ser preciso um dia
escrever a História para perceber a repetição destes erros através
das políticas de austeridade. O que é que os países do Sul podem
fazer? Vendem tudo o que têm? Vendem o porto do Pireu aos chineses?
Em Portugal também.
Eu gostava de saber
se a Comissão fez o cálculo de quanto os chineses compraram desde
que começou a crise, graças a esta política de austeridade, que
liberaliza e vende. Lamento mas o que vejo é um governo chinês
completamente autoritário, que controla muitas dessas empresas. Para
mim, este é um problema grave. Esta espécie de cegueira em nome de
um dogma.
Disse-me uma vez que
o drama da Alemanha era ser demasiado grande e, no entanto, demasiado
pequena. É esse o drama da liderança alemã?
É uma frase de
Kissinger. É verdade. Mas faltam contrapoderes no seio da União. O
único contrapoder é Mario Drahgi e o BCE.
Mas não da França?
Acabou esse papel da
França. É uma relação cada vez mais desequilibrada. Não há
contrapoder da França, não há da Comissão. É só Draghi. Mas já
ouvi dizer em Berlim que, quando terminar o seu mandato, é preciso
substitui-lo por um alemão. Merkel cultiva um estilo relativamente
ambíguo em matéria de liderança. Aceitou a liderança no caso da
Rússia porque era do seu próprio interesse. Tenta estabelecer uma
linha intermédia que evite a provocação. Tem uma participação
militar na Síria. É uma evolução progressiva. Mas não pode
liderar a diplomacia europeia porque não há diplomacia europeia, há
apenas uma política de caso a caso.
Como avalia o risco
de um "Brexit"?
Penso que ninguém
quer o "Brexit", nem o Governo alemão nem o francês. O
risco é se os jovens não votarem ou se acontece alguma coisa de
negativo na Europa antes do dia 23 de Junho. Mas custa-me a
acreditar. O problema é que, seja qual for o resultado, o referendo
vai inspirar outros países, abrindo as portas a uma Europa cada vez
mais a la carte: eu quero isto e eu quero aquilo.
O que podemos
esperar da França? É um país enfraquecido?
A maior fraqueza é
o problema estrutural da sua economia. A dívida sobe, o desemprego é
estrutural, perde quotas de mercado no exterior. Vivemos na ilusão
durante muito tempo. Sarkozy ajudou a manter esta ilusão, fingindo
que era ele que influenciava a chanceler. Agora a assimetria é
demasiado grande para iludir seja quem for.
Mas qual é o papel
que a França quer ter?
Não sei. Creio que
pode liderar em questões como o terrorismo e na crucial partilha de
informação entre um núcleo de países, incluindo a Alemanha.
Também sobre a ciberguerra.
Mas ainda tem muitos
instrumentos de poder ao seu alcance. Capacidade militar, capacidade
nuclear. Assinou um tratado de defesa com Londres.
Não vejo isso
assim. Durante muito tempo, havia uma legitimidade política e
militar que contrabalançava a sua fraqueza económica em relação à
Alemanha. Agora temos a impressão que estamos um pouco isolados e
que isso deixou de pesar.
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