domingo, 1 de setembro de 2013

Qualquer saída do euro será feita na desordem e na catástrofe.


Qualquer saída do euro será feita na desordem e na catástrofe


O balanço dos 25 anos de adesão à UE e o apontar pistas para o futuro feito pelo pensador António Barreto. Contundente, afirma que "o Presidente da República é um órgão de soberania aparente". E falando sobre as responsabilidades da classe política afirma: "Por omissão, por silêncio, eu sei de muitos erros que cometi"
Politólogos, economistas, historiadores, comentadores, constitucionalistas, diplomatas e o cardeal-patriarca de Lisboa são alguns dos intervenientes no 2.º encontro Presente no Futuro para reflectirem sobre os caminhos e a encruzilhada do Portugal Europeu. Uma iniciativa da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que decorre em 13 e 14 de Setembro em Lisboa, que aborda os vários prismas e os desafios da condição de um país da Europa e de um povo europeu: Portugal e os portugueses. É sobre esses desafios e para fazer um balanço do país que a adesão trouxe que o PÚBLICO foi conversar com o presidente da Fundação, António Barreto, sociólogo e pensador que é senhor de uma peculiar experiência na vida política activa: foi exilado no grupo de Genebra, depois constituinte, deputado, ministro da Agricultura.

Desde a adesão à CEE os portugueses foram dos povos mais europeístas, em boa medida pela afluência de verbas comunitárias. Agora, com a crise, parece haver uma alteração. O projecto europeu foi apenas encarado como uma relação utilitária?
Em parte, sim. A Europa não foi só um sonho político e cultural. A Europa era um atalho para a democracia, para a cultura, para o desenvolvimento económico, para o crescimento, para a modernização. Durante dez, 15 ou 20 anos parecia que o projecto europeu estava a cumprir e nós tivemos altíssimas taxas de adesão. A partir do momento em que entramos em crise, seja a crise que a Europa não conseguiu resolver, seja das políticas nacionais dos países europeus, de que sempre nos esquecemos, as pessoas começaram a dizer que afinal a Europa não está cá. Foi a grande desilusão. Diz-se que a Europa não é solidária, a solidariedade na Europa é um capítulo menor das relações internacionais. As relações internacionais começam em interesses, interesses colectivos, interesses dos maiores, interesses dos mais pequenos, interesses geopolíticos, e é isso que a Europa está a fazer hoje. Durante algum tempo a força ideológica do projecto foi tal que toda a gente passou a acreditar nas crenças.

Aponta para alguma responsabilização dos políticos terem andado a vender a nuvem por Juno?
Não acho que houve cinismo por parte dos políticos. Acho que eles acreditaram...

Não terá havido incompetência?
Nalguns casos, podemos falar de incompetência. Vamos ao euro. Tenho de fazer uma declaração de interesses. Sou favorável ao euro. Sempre fui. O primeiro argumento pelo qual era favorável ao euro, a disciplina financeira da União Europeia e do Banco Central que ia pôr os políticos portugueses na ordem e deixar de fazer demagogia, não se cumpriu. Não só não deixaram de fazer demagogia, continuaram a gastar de mais e ainda por cima foram ajudados pela Europa, pela banca internacional que emprestou, emprestou, emprestou durante anos e anos. Portanto, a disciplina que eu tanto esperava pelo euro infelizmente não veio. Veio agora.

Admite uma saída do euro?
Não sou a favor. Estou convencido que não há saída em paz e sossego, não há uma saída ordenada ou programada. Há uma saída em catástrofe ou não há. Uma saída em catástrofe que pode ser mesmo uma catástrofe. Que pode equivaler, por exemplo, a uma perda do poder de compra e do nível de vida dos portugueses ou de qualquer outro país em 30, 40 ou 50% em poucos meses. Além de que depois se segue uma desordem financeira fortíssima e talvez, até, uma desordem política. Estou convencido que nas actuais circunstâncias e com o que nós sabemos hoje e para os próximos anos, qualquer saída do euro será feita na desordem e na catástrofe.

Em relação ao projecto do euro...
Em toda a discussão, na década de 90, sobre o euro e das implicações futuras, o que mais se discutia era a teoria dos choques assimétricos. Isto é, quando há qualquer coisa que corre mal na Alemanha, em Portugal corre muitíssimo mal; quando algo corre um bocadinho bem em Paris em Portugal corre muitíssimo bem. As repercussões de qualquer situação económica, sobretudo de recessão ou de menos desenvolvimento, são assimétricas nos países periféricos. Se assim é e se foi sabido pelos políticos no exercício das suas funções e pelos economistas, devia ter-se feito alguma coisa nos anos a seguir. Não era para nos afastar do euro, mas para impedir os seus efeitos negativos. Ora, aqui creio que houve incompetência. Depois de aderir, nada foi feito para precaver, para monitarizar as consequências negativas do euro a prazo, que estamos a viver.

O projecto europeu é um projecto de futuro?
O projecto europeu está nas boxes, isto é, está no muito curto prazo à espera de uma grande decisão alemã. As verdadeiras eleições europeias não são daqui a um ano, são em finais de Setembro na Alemanha. Note-se que os europeus deixaram criar o hábito da Alemanha ser o último país a aprovar as medidas europeias, no Parlamento e não no Governo, e ser o Tribunal Constitucional alemão a última instância superior da Europa a pronunciar-se sobre o que quer que seja importante na Europa. Os europeus deixaram que isto se criasse, seja por via legal ou prática, os europeus renderam-se ao poderio alemão e à última decisão da Alemanha. Isto nunca mais volta para trás sem ser em crise. Ninguém abdica do estatuto que tem.

Portugal tem tido voz própria?
Temos, mas secundária. Temos tido voz própria sempre acessória, sempre suplementar, sempre subalterna e sempre dependente da decisão final da Alemanha. Uma das coisas que as pessoas da oposição em Portugal reclamam - tento não ser da oposição nem da situação, mas partilho - é que alguns países europeus que estão em condições difíceis perante a Alemanha, perante o euro e a situação financeira deviam conseguir falar entre eles com mais voz própria. Talvez a capacidade negocial de Portugal, Espanha, Itália, Grécia e agora de países da Europa Central e da Europa do Leste que começam a ter dificuldades, se reforçasse perante a Alemanha e talvez houvesse alguns resultados interessantes, a prazo, pelo menos. Simplesmente criou-se um sistema tal em que estes países não se falam. Se perguntar a qualquer português do Governo, ele diz tudo menos a Grécia, nós não somos a Grécia. É o que a Espanha diz de nós. E a Itália de Espanha. E a França da Itália.

E a Alemanha diz de todos.
E a Alemanha diz de todos. Criou-se uma situação em que uma acção concertada de alguns países em situações semelhantes se tornou impossível.

Dados os choques que tem havido com algumas medidas aprovadas pelo Governo e que são depois declaradas inconstitucionais, a actual relação da União Europeia com Portugal é incompatível com a Constituição? Isto está a distorcer o sistema político e democrático em Portugal? É importante a constitucionalidade ser respeitada?
Tenho de responder em duas fases. A primeira, imediata, é que as instâncias públicas e de soberania portuguesas têm de respeitar estritamente o que vem na Constituição. Ponto final. Não tem discussão. A minha convicção é esta. Estamos numa zona difícil, em que algumas das medidas de austeridade podem colidir com a Constituição, que não é um objecto sagrado nem científico, depende da interpretação. Estamos sempre a falar de interpretações subjectivas, quanto um tribunal vota sete/seis ou oito/cinco, estamos a falar de subjectividades. Portanto, não há aqui Direito positivo. De qualquer maneira, sendo o Direito que temos, o Tribunal Constitucional é soberano nas suas decisões, é a última instância para afinação do Direito e, portanto, tem de ser respeitado. Ponto final. Se o Tribunal Constitucional disser que a medida A sobre os funcionários públicos, que a medida B sobre a reformas, a medida C sobre os horários de trabalho, a D sobre os vínculos à função pública são inconstitucionais, pura e simplesmente o Governo tem de engolir em seco e arranjar outras medidas que compensem o que, no seu entender, é preciso fazer.

E ao segundo nível?
Entendo que a nossa Constituição não serve. Tem uma dimensão programática excessiva. Não deixa a cada geração governar-se a si própria. Hoje quebrou-se algum consenso constitucional e, infelizmente, não vai haver revisão constitucional tão cedo. A nossa Constituição devia reduzir-se na sua dimensão programática, devia ter muito menos artigos ou cláusulas programáticas, e devia deixar a cada Parlamento fazer políticas públicas, financeiras, industriais, sociais. Vamos pensar no que está em causa: saúde, prestações sociais, educação, segurança social, propriedade do Estado, propriedade de empresas públicas, privatizações, tudo isso não devia figurar na Constituição. Devia estar na Constituição um princípio qualquer...

Por exemplo, a universalidade da educação?
A universalidade é discutível, a Constituição devia dizer que o Estado tem de organizar um serviço nacional de saúde, ao qual eu sou favorável, mas não devia dizer em que condições esse serviço...

Tendencialmente gratuito?
A expressão tendencialmente gratuita, está-se mesmo a ver, é de um cinismo absoluto, pode dizer tudo e o seu contrário e entenderam-se todos os partidos que quiseram fazer isto. Tendencialmente gratuito quer dizer o quê? E, ainda por cima, estão a criar-se taxas moderadoras que estão a retirar a gratuitidade. Portanto, sou favorável a um sistema constitucional com mais princípios, menos programas, menos intenções, menos medidas concretas. Os Parlamentos depois pagam o que fazem. Um Parlamento que decide, por exemplo, vamos supor, terminar com o vínculo à função pública, e o vínculo é perpétuo, esse Parlamento e esse partido têm de assumir os custos e o fardo do que fazem. O partido a seguir, a maioria a seguir, o Parlamento a seguir alterarão. Alguns dos problemas que, na polémica actual, acho que devem ser respeitados por causa da Constituição, nesta segunda fase eu teria posto fora da Constituição.

Mas, enquanto houver esta Constituição, respeita-se?
Enquanto houver tem de respeitar-se. Não há meio termo.

Como vê as facilidades que o Estado português está a dar a investidores estrangeiros angolanos, russos e chineses e de outros países, em que há fortes indícios de haver corrupção associada à acumulação de capital? Não devia haver uma preocupação ética do Estado, isso não põe em causa a qualidade da democracia em Portugal?
Sim, põe em causa a qualidade da democracia em Portugal, a qualidade dos negócios e da economia das empresas, contagia a relação entre o sector público e as empresas privadas ou públicas e as autarquias. Contagia tudo. Mas não quero falar disso com nenhum nome de um país à frente. Em Portugal, há uma tendência muito forte, que eu reputo como tendência racista ou neopaternalista, que é o dinheiro da China é bom mas o de Angola é mau. Ou que o dinheiro europeu é bom, seja ele qual for, que o dinheiro latino-americano é bom, seja ele qual for, mas o da África não. Já ouvi dizer que nós é que fomos a metrópole de Angola e agora Angola é que manda em nós. Não gosto dessa expressão. Isto é frequente ver na rua ou nos jornais. Há muito dinheiro investido em Portugal, vindo Deus sabe donde, dos off-shores por exemplo. O dinheiro que vem dos off-shores se se quiser tem cheiro e tem cor. E sabe-se de onde ele vem. Mas em relação a isso as coisas foram passando. Como o dinheiro cheira a África há uma mistura entre revanchismo, neocolonialismo ou racismo que eu não posso aceitar. Dito isto, há laxismo perante o dinheiro de predadores, de Estados em situação de acumulação primitiva, de Estados que não são Estados de Direito. As nossas regras têm de ser as mesmas para toda a gente, não podem ser particularmente laxistas para uns e particularmente severas para outros.

A concessão de cartões gold para investidores de países não comunitários não é uma situação de excepção e desequilíbrio em relação a outros?
Comprar investimentos com vistos e com passaportes de favor é absolutamente repugnante.

Insistindo na qualidade da democracia - e esta questão tem a ver também com o que foram as suas bandeiras na política - como vê o nível de exaustão do sistema partidário português? Considera que há riscos naquilo em que os partidos se transformaram?
Caminha-se para a exaustão e há riscos muito sérios. Devo dizer que tenho dificuldade em apontar a solução ou o caminho. Não posso dizer "mudem-se os partidos ou mudem-se as pessoas ou as bases ou as elites dos partidos", no fundo o velho ditado: mude-se o povo. Não o posso dizer sem rir da minha própria asneira. O que se passou é muito estranho, muito preocupante e muito ameaçador para a liberdade a democracia. Tivemos um período de 20 ou 30 anos em que houve inspirações ou condutores, ideias muito fortes que alimentaram a evolução política e que criaram parcialmente consenso, parcialmente entendimento. E houve momentos neste caminho, durante um tempo o PCP, depois o PS, depois o PSD ou pessoas com influência particular. E ao caminharmos neste 40 anos ou 35 realizámos quatro coisas mais importantes: a democracia, a Constituição, a Europa e o Estado social. São os quatro grandes pilares. Para a Constituição todos os partidos deram um altíssimo contributo, esquerda e direita. Na criação da democracia todos deram. Isto foi-se fazendo. Depois apareceu a Europa. Sem uniões nacionais foram-se fazendo este tipo de consensos, até o Estado social. E o Estado social faz parte muito forte da democracia portuguesa.

Essas elites nacionais que está a caracterizar.
Vêm sempre de partidos.

Elas aderiram por convicção ao projecto europeu ou por mera sobrevivência?
Por convicção, no caso do Mário Soares e do Sá Carneiro. O líder político Cavaco Silva ilustrou-se menos pelo desígnio europeu, porque ele estava feito, e mais pela liberalização da economia e da sociedade. Mas marcou. O PS, mesmo protestando aqui e ali, aderiu a este programa de liberalização da economia e da sociedade. Hoje, as dificuldades económicas estão a pôr em causa o Estado social. E, sobretudo no PS e PSD que era a base do consenso político partidário, vários políticos estão em ruptura e vão estar por muito tempo. Atingiu um tal estado que isso é visível na tentativa há dois meses de forçar eleições e que falhou. O PS vai voltar a falar em eleições em Outubro. Há um entendimento que falhou, porque o PS tratou muito mal o PSD no Governo anterior. Escondeu, mentiu, negou. E o PSD faz o mesmo agora. Não informa, não dá os documentos, não dá os números. Portanto o entendimento político não é possível, o Estado social está em causa pela austeridade e pelos diferentes projectos dos partidos, a Europa está em crise. Finalmente, o capítulo que, para mim, é mais irritante que é o capítulo do universo do dinheiro do negócio da política, que gostemos ou não - e eu não gosto - foi uma fórmula-base da democracia. A democracia nestes 30 anos também se instalou tendo como alicerce o universo de negócios entre o Estado, as autarquias, os empresários privados, os empresários estrangeiros, a banca.

É essa a estrutura do país, o país vive disso, há uma rede montada?
Mas a rede montada tem legítimo e ilegítimo, tem lícito e tem ilícito. Tem uma parte que é promiscuidade. Tem uma parte que é o entendimento normal do que é o crescimento económico e o que é o papel do Estado perante o crescimento económico. Por que é que há uma crise tão grande com os PPP e os swaps? Porque estão no coração disto.

É o modo de funcionar?
Começou com as privatizações. Foram-se fazendo umas piores, outras melhores, outras assim-assim e está agora a acabar que pouco mais há para privatizar. E isto foi feito com muita promiscuidade pelo meio. Houve muitos políticos que foram para directores das empresas privatizadas. Houve empresários que foram para a política. Houve alguns que foram secretários de Estado, ministros, directores-gerais, chefes de instituição, chefes da banca pública, da banca privada, fizeram a caminhada toda. Vêm depois as PPP e as swaps. O problema das PPP e das swaps é que é de tal maneira escandaloso, até do ponto de vista financeiro - e eu creio que até do ponto de vista legal, mas isso vamos ver se os processos dão alguma coisa - que as próprias organizações internacionais, o Fundo Monetário e o Banco Europeu e a Comissão Europeia olharam para isto e disseram, isto não pode ser, nós não podemos admitir que um país tenha este clima de promiscuidade, de negocismo, de corrupção, de pura corrupção e de pagamentos de luvas entre empresários privados, internacionais e nacionais, bancos, autarquias e Estados, para as obras, para as construções, etc.

As PPP?
Nós sabemos que há 150, ou 160 ou 170 parcerias público-privadas, toda a gente continua à espera dos resultados dos inquéritos, do resultado das auditorias. Não há auditorias, não há inquéritos, não se conhece nada. Entretanto sabe-se que este Governo ao fim de um ano de negociações, um dia anunciou que já pouparam nas PPP mil e quinhentos milhões. Não se sabe bem em quê. Eu gostava de saber se esta poupança foi em novas obras que deixaram de ser feitas ou poupança nos contratos que estão para trás. Porque se são os contratos que estão para trás quer dizer que havia contratos faraónicos. As empresas acederam baixar sem protestar, sem revelarem. Alguma coisa não está certo!

E os swaps?
Houve pessoas que só pensaram que eram responsáveis pelos swaps você ou você, não eu. E depois percebem: estamos todos metidos. E por isto tem havido este frenesim. Mas indo ao essencial, o conjunto da relação entre poder político português nacional, poder político português autárquico, poder económico nacional ou internacional, vivia das privatizações, das adjudicações, das PPP e dos swap e esse universo está em causa, está em crise. Ninguém confia em ninguém neste universo. E a democracia está em crise também por causa.

O senhor fez parte dessas elites, foi constituinte, foi deputado, foi ministro - um ministro da Agricultura emblemático. Até que ponto sente alguma responsabilidade no país que nos últimos 25 anos foi construído? Alguma vez se questionou?
Em todos os aspectos em que eu sinto hoje que errei, por insuficiência, por demissão, por erro, eu sinto-me responsável. E todas as decisões colectivas das quais participei e que hoje se verificam que podem estar erradas é evidente que me sinto co-responsável.

Em Portugal os políticos têm consciência das suas responsabilidades sociais, quando tomam as decisões ou depois de as tomarem, a consciência social do que é governar?
Eu não falo pelos outros. Eu sinto naquilo que tive responsabilidades boas e más.

Muitas vezes a imagem que passa é a de que há uma total impunidade nos políticos. Fazem os disparates e depois nem pensam nisso. Ora, os políticos não são tontos, são pessoas normais, têm ética têm consciência, devem pensar sobre isso, não é?
Acho que sim. Agora temos de ver caso por caso. Eu votei o segundo Pacto MFA-Partidos, acho hoje que não devia ter votado. Devia ter dito que não devíamos assinar um acordo entre os partidos e as Forças Armadas, não disse. Eu votei a Constituição. Se eu tinha tantas objecções à Constituição, como tenho hoje - e já tinha naquela altura, algumas delas conhecidas, eu não devia ter votado. A Constituição não foi referendada, eu disse na altura é preciso referendá-la, mas não disse com a força suficiente. O mesmo com a adesão à Europa, eu devia ter dito: referendo. Eu por omissão, por silêncio, eu sei de muitos erros que cometi. Não creio ter matado ninguém, mas são erros que eu cometi. Mas eu acho que os políticos primeiro deviam ter consciência do que fazem, segundo deviam ser chamados à responsabilidade, pelos jornalistas, pelos partidos, pelas gerações mais novas, pelas universidades. E só chamados à responsabilidade pelos tribunais quando cometem ilegalidades.

É um intelectual do regime que não voltou à política partidária e governativa. Está, por exemplo, no Comité de Sábios para os fundos estruturais. Hoje ser só o intelectual, o sociólogo, o pensador António Barreto, não o faz sentir em falha com o país e consigo próprio? Não sente que há uma contribuição política que poderia ainda dar?
Primeiro, não é seguro que eu tenha coisas úteis e necessárias a dar. Segundo, eu não sinto culpa.

Não falámos em culpa.
É a minha maneira de falar... Mas a idade pesa, tenho mais de 70 anos e as coisas pesam, a energia, a capacidade intelectual, a capacidade emotiva, tudo isto pesa. E eu estando fora da vida politica há vinte e tal anos não tenho nem os instrumentos nem as amizades nem as solidariedades, nem a ginástica que tem quem está na vida política permanentemente.

Isso é necessário para ser candidato a Presidente da República?
Então não é?

Exclui ser?
Já ando a excluir há bastante tempo.

Definitivamente?
Sim, sim. Está excluído definitivamente. Sem regresso. É irreversível. Não há circunstância alguma que me faça alterar a minha decisão. Por todos os raciocínios pessoais, políticos e até pelo raciocínio que eu faço perante o cargo em si. O cargo em si já não tem importância activa, deste cargo já nada depende do que é importante fazer no futuro do país.

Isso acontece pelas alterações constitucionais, pelas alterações introduzidas pela adesão europeia ou pela acção presidencial de Cavaco Silva?
Isto vem mais de trás. Isto começou com a revisão constitucional de 1982 e foi minuciosamente e meticulosamente feito para retirar qualquer veleidade possível a qualquer Presidente da Rep? ?blica no futuro para fazer o que quer que seja. A Constituição portuguesa - apesar de eu não gostar - é uma obra-prima de ourivesaria. É um tratado de autodefesa perante o golpe de Estado, os militares, os civis, os comunistas, os fascistas, os assim-assim, o Norte, o Sul, o litoral. É um manual perfeito de esquemas de defesa. O que quer dizer que não tem coerência própria. É um sistema de compensações muito sofisticadas. Algo que ficou de fora na altura é que o Presidente da República tinha algum poder. Na primeira oportunidade desapareceu, com a colaboração de todos os partidos. Depois disso o Presidente da República é um órgão de soberania aparente.

Mas isso não é uma esquizofrenia do sistema democrático? O Presidente da República é eleito por sufrágio directo.
É. A incongruência é esta. Com este figurino de Presidente a eleição devia ser indirecta.

Mas isso foi impossibilitado pela história.
Então dava-se poderes. Vai-se buscar a eleição directa porque é a boa tradição do Humberto Delgado - esquecem-se que também era a boa tradição do Sidónio Pais - e depois tira-se os poderes. Fala-se da importância do Presidente porque ele é eleito directamente. Tem uma legitimidade sempre concorrente com a do Parlamento. E as fricções entre Governo e Presidente são constantes, mesmo quando são do mesmo partido.

A conferência que está a organizar vai levar à conclusão deste tipo: temos uma rede de três mil quilómetros de auto-estradas, mas menos economia e mais desemprego. Este é o balanço da adesão?
Não é o meu. Temos hoje mais liberdade, liberdade no sentido completo da palavra, de pensamento, de expressão, de associação, de deslocação, de movimentação, de circulação. É muito importante. Só quem viveu em tempos de circulação limitada ou proibida é que sabe o que é. E fronteiras e passaportes condicionados. Temos hoje muito mais liberdade e a Europa contribuiu muitíssimo para isso. Evitámos algum empobrecimento nos últimos 30 anos e a Europa contribuiu para isso. Criámos alguns hábitos e algumas modas padronizadas pela Europa. Que ninguém pense que o nosso sistema de saúde ou de educação no que têm de bom foram invenções nossas aqui, faz parte do legado europeu. Temos alguma estrutura material e física muito melhorada - as auto-estradas - graças à Europa. Isto é o meu balanço positivo.

E o negativo?
Não soubemos olhar para trás e portanto não há precauções. Um exemplo: a Noruega descobriu petróleo, fez os concursos, estabeleceu quem ia explorar e estabeleceu que X por cento era posto de parte e era criado um fundo no qual nenhum Governo pode jamais tocar para que daqui a 50 anos, quando acabar o petróleo, haja uma protecção. Portugal aderiu à Europa sem tomar medidas de precaução em relação ao futuro. Em segundo, a utilização dos fundos. Os fundos foram muito dinheiro: 81 mil milhões de euros. Ao que se acrescentava a parte portuguesa e a parte dos privados. Foi um capital absolutamente fantástico, uma parte importante deste capital foi bem utilizado. O trabalho que encomendámos ao Augusto Mateus dá uma demonstração muito forte disto. Uma parte deste capital foi mal utilizado. E foi utilizado para ganhar eleições, para distribuir fundos. Não houve a noção do que era a internacionalização necessária da economia portuguesa. Houve uma espécie de fascínio de novo-rico, de fascínio eufórico: está tudo a correr bem, estamos a crescer.

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