SOS na zona pobre
Por Paulo Moura (texto) Paulo Pimenta (fotografia) / http://www.publico.pt/temas/jornal/sos-na-zona-pobre-27140130
Com as novas regras do RSI e da habitação social, os pobres
estão ainda mais pobres. Nalgumas zonas, como certos bairros da freguesia de
Campanhã, no Porto, a miséria é atroz. Os direitos humanos essenciais são
violados, os apoios do Estado são uma fraude, a reinserção social uma ficção. Ser
pobre é viver num mundo à parte, de onde nunca se consegue sairCom as novas
regras do RSI e da habitação social, os pobres estão ainda mais pobres.
Nalgumas zonas, como certos bairros da freguesia de Campanhã, no Porto, a
miséria é atroz. Os direitos humanos essenciais são violados. Os apoios do
Estado são uma fraude, a reinserção social uma ficção. Ser pobre é viver num
mundo à parte, de onde nunca se consegue sair
Primeiro plano de Regina.
Quando foram despejados, esqueceram-se de comunicar a
"mudança de residência" à Segurança Social. A carta chegou à casa
antiga e foi devolvida. Por isso Regina, 25 anos, e Bruno, 28, não chegaram a
saber da convocatória para comparecerem nos serviços de atendimento do
Rendimento Social de Inserção (RSI). Como penalização por não terem
comparecido, o RSI foi-lhes cortado por dois anos.
A renda da casa onde vivem agora, na Rua da Formiga, é de
230 euros por mês. Como estão ambos desempregados e não têm qualquer
rendimento, não pagam há quatro meses. A dívida já vai em 920 euros. Nova ordem
de despejo está a chegar. Ao mesmo tempo, é preciso saldar a dívida da casa
antiga (120 euros por mês). Regina e Bruno têm três filhos. Os 100 euros por
mês de abono de família servem para pagar a água e a electricidade. Não sobra
nada para a renda, alimentação, vestuário, transportes, médicos.
Regina e Bruno estão habituados a fazer opções duras. Há
dois anos, um dos filhos adoeceu gravemente, teve de ser operado ao intestino.
Foi nessa altura que, para comprar os medicamentos, deixaram de pagar renda e
foram despejados.
Outro filho, ao fazer seis anos, teve de ingressar na escola
do Centro Juvenil de Campanhã e pagar refeições. Os pais não conseguiram pagar
as mensalidades, a dívida cresceu até aos 250 euros e a criança está proibida
de se matricular neste ano lectivo. No ano passado, já tinha sido impedida de
entrar no refeitório.
Neste momento, o medo de Regina e Bruno é que, devido às
várias mudanças de casa e à falta de dinheiro para os bens essenciais, a
Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) lhes venha retirar os filhos.
Regina Oliveira da Silva já teve um emprego como promotora.
Quando engravidou, despediram-na. Trabalhou à hora, nas limpezas. Foi
dispensada. Bruno Miguel Sousa teve um part-time numa pizzaria. Deixou de
comparecer quando sofreu um acidente num pé. Anda agora de muletas e precisa de
tratamentos regulares no hospital, mas não tem dinheiro para os transportes.
Vai de autocarro sem pagar bilhete. As multas acumulam-se e em breve
transformar-se-ão em processos judiciais, sem atenuantes, porque Bruno tem
antecedentes.
Regina é uma boa influência. Desde que estão juntos, ele
mantém-se afastado da criminalidade. E está determinado a assim continuar,
embora o apelo seja quase irresistível. Muitos amigos que roubam ou traficam
drogas conduzem carros de luxo. Seria fácil, mas Bruno, corpo tatuado e olhar
desafiador, resiste. "Essa vida não me interessa mais", diz, fixando
Regina. Nos filmes, seria uma história de amor. Nicolas Cage e Laura Dern num motel
de Cape Fear (Wild at Heart).
José António Pinto, 48 anos, o assistente social da Junta de
Freguesia de Campanhã, tenta ajudar. Pediu uma casa camarária para a família,
telefonou ao senhorio do actual apartamento, e face à recusa da Segurança
Social em perdoar o castigo do RSI, solicitou à junta de freguesia um subsídio
de 150 euros mensais para auxílio nas despesas. Até agora, nada. Regina, Bruno
e os filhos ainda não passam fome porque a mãe de Regina, que é cozinheira num
restaurante, traz-lhes sempre que pode as sobras da cozinha.
Regina e Bruno preenchem todos os requisitos para beneficiar
de apoios sociais - estão desempregados, não auferem rendimentos, têm filhos a
cargo, não conseguem pagar renda, têm dívidas. A sua situação é de emergência
absoluta, no entanto não estão a ter apoio nenhum. Porquê?
Durante dois anos, receberam RSI. Mas, desde que o Governo
publicou o decreto 133/2012, as regras mudaram. Os beneficiários têm agora de
renovar o seu pedido para o RSI todos os anos, voltando a fazer prova da sua
situação. Os que já usufruíam antes de Junho de 2012 recebem em casa uma
convocatória, para uma reunião. Os mais recentes não são convocados, mas têm de
comparecer, para fazer a renovação. Grande parte das pessoas em situação de
necessidade não tem informação suficiente sobre as leis e falta à reunião. Por
esse facto é penalizada em dois anos sem receber nada. E nenhuma justificação
serve para revogar a decisão.
Além destes casos, em muitos outros, o rendimento é cortado
sem que o beneficiário perceba porquê. Os técnicos de acompanhamento da
Segurança Social têm dois meses para elaborar um plano de inserção, antes de o
processo caducar. Mas há muitos processos e poucos técnicos, estes nem sempre
conseguem cumprir os prazos. Quando isso acontece, o sistema informático
cancela o apoio automaticamente. De repente, o carteiro que costuma trazer o
cheque a determinada família diz que não tem nada para ela. As pessoas tentam
saber o motivo, mas ninguém explica. Alguns carteiros já têm medo de ir aos
bairros, prevendo a reacção dos moradores.
Por estas razões, ou por erros dos utentes a preencher os
documentos (muitos, difíceis de obter e caros), ou dos próprios serviços (o que
não é raro), mais de 20 mil pessoas deixaram este ano de receber o rendimento
de inserção. Desde 2010, foram quase 135 mil a perder o direito a este apoio. E
os que ainda o recebem, cerca de 270 mil, são obrigados a descontar tudo o que
ganham em biscates ou outros rendimentos. O próprio montante máximo baixou para
178,15 euros.
O Estado quer reduzir drasticamente o dinheiro gasto nos
apoios sociais e consegue-o com uma alteração de regras que afecta os mais
fracos e vulneráveis.
Casa nova: só para quem vive numa ruína
Na Rua da Aldeia, estão todos à porta porque não há que
fazer. É uma "ilha", um desses pátios interiores com casas pobres e
casas de banho comuns, que ainda abundam no Porto. Francisco José vive com a
família numa dessas casas. Paga 160 euros de renda. A sua pensão de reforma por
invalidez é de 260 euros.
"Se não é a minha mãe a ajudar-me, passamos fome",
diz José. Mas a mulher, Sara, admite que a maior parte do que comem vem do
infantário do filho, de quatro anos. A propina do infantário é o único apoio
que tiveram, há que aproveitar.
Há 17 anos, José levou uma facada numa rixa, e nunca mais
pôde trabalhar. Entrou com os amigos numa casa em obras, quando chegou o
segurança, com uma faca. "Bjiu, bjiu, bjiu", assobia José, imitando o
som da faca a rasgar-lhe o tórax, o abdómen, as costas. As enormes cicatrizes
não o deixam mentir. "Levaram-me para o hospital, tive logo ali dois
ataques cardíacos." Alguns órgãos foram extraídos, outros danificados,
transformando José no fantasma do homem que um dia trabalhou a carregar
mercadorias em camiões.
Hoje, aos 30 anos, é uma figura descarnada e pálida, sem
forças. A mulher, Sara, de 21 anos, também não consegue emprego. Foi a
entrevistas, mas nunca a aceitam por causa, acha ela, do seu aspecto: faltam-lhe
dois dentes incisivos do maxilar superior.
Para receber o RSI, teve de submeter-se ao plano de
reinserção traçado pela assistente social, que incluía, como sempre, a
frequência de um curso. Durante dois anos e meio, Sara foi obrigada a ouvir, todos
os dias, aulas de Práticas Administrativas. "Perdia o subsídio se
abandonasse o curso. Tinha de estar ali sentada."
Não aprendeu nada, não percebeu nada do que foi dito, perdeu
a oportunidade de encontrar algum biscate. "Ainda tinha de pagar o passe.
E, no fim, nem me mandaram o diploma." O curso não podia estar mais
distante da sua realidade. Foi totalmente inútil. Dois anos e meio de
humilhação.
O que seria útil, pensa Sara, era arranjar os dentes. Mas
não tem dinheiro para isso, nem a ajuda de ninguém. Mais urgente ainda era
comprar uns óculos para o filho. Segundo o médico, a falta de visão estava a
originar complicações cognitivas.
José António Pinto, o assistente social, tentou resolver
isto por todas as formas. Não conseguindo apoio de nenhuma instituição,
recorreu a uma rubrica de solidariedade do Jornal de Notícias, Todo o Homem É
Meu Irmão. Ao publicitar o caso, conseguiu o donativo de um oculista do Porto.
Mas a criança também sofre de bronquite, e a casa da
"ilha" tem só um quarto e as paredes podres, humidade por todo o
lado. José António Pinto pediu à câmara uma habitação para a família. Um
técnico veio vistoriar e deu parecer positivo: a casa não tem condições
mínimas.
Na data marcada, Francisco José Martinho dos Santos e Sara
Raquel da Costa Lopes compareceram na empresa municipal encarregada do apoio à
habitação, a Domus Social, para levantar a chave. Mas houve um engano. Uma
troca de moradas, uma pequena confusão, e a casa não estava disponível. Por
causa disso perderam a vez e não se sabe quando terão o apartamento.
"Eu chorei lá dentro." Grande plano de José, com
aquele ar patético e rechaçado de Steve Buscemi num filme dos irmãos Coen.
"Apetecia-me..."
"Íamos buscar a nossa chavinha, estávamos tão
felizes", diz Sara, a chorar, com a mão à frente da boca como Brigitte
Bardot costumava fazer quando sorria.
As novas regras da empresa municipal para oferecer habitação
social seguem os mesmos princípios do RSI: poupar dinheiro à custa dos mais
pobres. Alguns bairros foram demolidos, não há construção social, cada vez há
menos casas para atribuir e mais famílias a precisar. A primeira ideia da
câmara foi suspender os pedidos. Depois reconsiderou, porque a Constituição
garante o direito à habitação. Optou-se então por criar dificuldades cada vez
maiores. A documentação exigida é burocrática e cara (só um atestado de
invalidez custa cerca de 50 euros)e, uma vez feito o pedido, é necessário
renová-lo de seis em seis meses, com nova exigência de documentos. Se isto não
for feito, o utente incorre numa penalização de cinco anos sem poder pedir
casa.
Para além disto, os critérios mudaram. Não importa que se
seja pobre ou doente, ou a viver na rua.
Só há um bom motivo para se pedir uma casa social: viver num
barraco em perigo iminente de ruína. Para isto ser provado, o candidato tem de
solicitar uma vistoria, que demora em média seis meses a ser realizada. Se o
inspector considerar que as paredes e o tecto estão em risco de cair, então há
uma hipótese. Mas mesmo nesses casos tem vigorado uma nova prática: o inspector
manda construir reforços em ferro, para segurar as estruturas. Se já nem uma
viga de aço as consegue aguentar, então sim, há a possibilidade de uma casa nova.
Mas atenção: só quando se trata de uma família. Pessoas sozinhas vão para um
lar.
Melhorar o buraco
"Para um lar, eu? Não! Lar, não! Eu tenho duas
mãos!" Grande plano de Álvaro, furioso, na sua casa da "ilha" de
Campanhã. Como vive sozinho, nunca terá direito a uma casa camarária,
explica-lhe o assistente social. O melhor é ficar ali e tentar melhorar aquele
buraco. "Sr. Álvaro, tem de tratar de si próprio. Esta casa precisa de uma
limpeza. E o senhor onde toma banho? Este cheiro..."
"É muito activo, não é?", admite Álvaro.
"É realmente muito activo."
Álvaro vive num único compartimento, sem janelas. As paredes
estão imundas, ulceradas pelo bolor, e não há mais mobília para além de um
colchão negro, cheio de manchas, podre, sobre um tapete velho. A um canto, um
monte de roupa suja.
Álvaro usa um pólo azul, calças rotas e um boné que diz
"Avançar Portugal". Já recebeu RSI. Para isso teve de fazer um curso
designado, diz ele, "de auto-estima", para tratar de idosos. Não
aprendeu nada e não vê como pode vir a dar utilidade às lições. "Quando
acabei o curso, fiquei na miséria", diz ele.
No dia em que foi chamado para renovar o subsídio, tinha
bebido em demasia. Não apareceu e nem percebeu por que razão o cheque não
chegou mais. Agora não tem nada.
Álvaro Manuel Martins Lopes, 57 anos, vive num casebre
miserável, sem cozinha nem casa de banho. Usa a latrina que existe num cubículo
no outro extremo da "ilha", mas não tem onde tomar banho nem lavar a
cara. Precisa de uma casa de banho, um arranjo no barraco e alguma comida.
"Esta casinha, arranjadinha... hã?", diz o
assistente social.
"Não há nada como uma casinha de banho", diz
Álvaro.
Com a ajuda de José António Pinto, escreveu, em Junho, uma
carta pedindo apoio à Segurança Social. Nem lhe responderam. Nunca mandaram
ninguém verificar as suas condições de vida.
Álvaro já trabalhou, na construção civil, mas foi despedido
há anos. Já foi casado, já dormiu numa cama, "mas partiu-se". E teve
uma paixão.
Conheceu uma prostituta de estrada, doente de sida,
desenvolveu uma amizade e, a certa altura, trouxe Lúcia para casa. Os vizinhos
da "ilha" não gostaram, queriam expulsar os dois. Álvaro protestava:
"Na minha casa, mando eu!" De Niro e Jodie Foster num tugúrio de Nova
Iorque, sozinhos contra o mundo.
Foi necessário, a José António Pinto, todo um trabalho de
mentalização. "O sr. Álvaro apaixonou-se", explicou ele. "Tem
direito a viver com uma mulher na sua casa, são um casal como qualquer
outro."
Mas para aplacar a fúria dos moradores escandalizados, teve
de pedir a Lúcia que não levasse para ali homens. Podia prostituir-se na
estrada, mas ali seria uma dona de casa exemplar. Ela cumpriu e acabou por ser
aceite. Viveu oito anos com Álvaro.
Há um ano, morreu. Com o desgosto, Álvaro deixou-se
degradar. Descurou a higiene, começou a beber mais. Percebe-se o sofrimento
imenso no seu olhar endurecido, impregnado de uma revolta que interpela e
questiona. E também que a sua forma de desagravo tenha sido um esquecer-se de
si próprio, uma alheada serenidade.
Nesta nova fase da vida, Álvaro arranjou um emprego, que o
mantém ocupado, embora sem salário: é pastor. Todas as manhãs leva um rebanho
de 60 cabras e ovelhas a pastar num descampado ali perto, junto ao Rio Tinto,
em S. Pedro de Campanhã. Como pagamento, o dono do gado dá-lhe almoço, a ele e
ao outro pastor, o Tó Zé, de 34 anos, que vive por ali, numa vacaria
abandonada.
Tó Zé trabalhou como "trolha de segunda" até ter
tido um acidente que lhe fracturou as pernas e várias costelas. Nunca mais
ganhou dinheiro. Como é jovem e tem necessidades, o patrão dá-lhe, ao domingo,
25 euros para se ir divertir.
José António Pinto observa os dois amigos, de botas rotas e
cajados, num campo de erva no centro do Porto. Pergunta a Tó Zé: "Porque
não recebes RSI?"
"Já me falaram disso, mas não sei como se faz."
"Eu ajudo-te. Vamos meter os papéis. Não gostavas de
receber 180 euros por mês?
"Então, era bem bom."
Como não apreciava futebol, os amigos começaram a chamar-lhe
Chalana. Esta é a explicação que José António Pinto, técnico assistente social
da Junta de Freguesia de Campanhã, dá para a sua própria alcunha.
Chalana é famoso em todo o mundo pobre de Campanhã. Tem um
posto de atendimento no bairro do Lagarteiro e uma fila de gente à sua espera
todos os dias à porta da junta. Empenha-se pessoalmente na resolução de cada
caso, quase sempre contra as regras e as instituições. Empresta dinheiro do seu
bolso, transporta os utentes no seu Peugeot 205 com 227 mil quilómetros percorridos
como "bombeiro" dos pobres, criou uma banda com os detidos nas
prisões, chamada Música à Frente das Grades.
Na sua secretária, tem o diário pessoal onde escreve coisas
como "hoje salvei uma menina", um dossier para cada pessoa em
necessidade, fotografias delas na parede e a frase de Sartre: "Detesto
vítimas que têm respeito pelos seus carrascos."
Chalana é um homem que nasceu para nos lembrar que somos
homens. Para ele, todos os métodos são válidos para ajudar um pobre. Algumas
estratégias são pouco convencionais.
O rapaz que segura a família
No caso da família Lencastre, Chalana foi até às últimas
instâncias. "Se esta família for despejada, demito-me. Não estarei a fazer
nada nas minhas funções."
Maria da Conceição Pereira Fernandes Lencastre, 48 anos, e
Alberto Manuel da Conceição Lencastre, 44, vivem no bairro do Lagarteiro, têm
cinco filhos, dois dos quais deficientes profundos, estão desempregados, cheios
de dívidas, na iminência de sofrer uma ordem de despejo e de ver a família
desmantelada, dispersa por instituições.
Conceição nasceu na Ribeira, Alberto em Baguim do Monte.
Casaram há 23 anos, foram viver para o bairro S. João de Deus. Quando este foi
demolido, deram-lhes a escolher entre o Aleixo, Aldoar e Lagarteiro. A casa
neste último apresentava melhores condições de acesso para o filho mais velho,
Bruno, de 22 anos, cuja paralisia cerebral o mantém preso a uma cadeira de
rodas. Mas receavam pela sorte de outra filha, que tem Trissomia 21 e poderia
sofrer abusos na rua.
Alberto chegou a trabalhar como lavador de vidros e ajudante
de trolha, e Conceição como vendedora de gelados, mas nenhum dos elementos do
casal teve alguma vez um emprego estável. É notória e medicamente confirmada a
sua incapacidade para assumir responsabilidades, para gerir recursos ou tomar
decisões. Deixaram de pagar a renda à empresa municipal, acumulando 3800 euros de
dívida. Devem também dinheiro na mercearia, deixaram de pagar as contas da água
e electricidade, que foram cortadas.
Conceição deixa-se facilmente enganar pelos comerciantes do
bairro, Alberto é alcoólico e autor confirmado de violência doméstica sobre a
mulher. Há meses, em consequência de queixas de vizinhos e da escola, uma
equipa da Segurança Social, acompanhada pela polícia, chegou a casa dos
Lencastre às 8 horas da manhã para lhe tirar os filhos mais novos, alegando
carências alimentares, de higiene e de cuidados básicos. As duas raparigas, de
14 e 17 anos, e o rapaz, de 16, foram levados para instituições separadas. Não
foi dito à família para onde iam e quando os poderiam visitar.
Bruno foi também indicado para uma instituição, mas
recusou-se. Grande plano de Bruno. "Eles traziam um papel dizendo que sou
deficiente mental, mas eu não sou. Sou deficiente motor apenas." Na
confusão e no drama daquela manhã, Bruno, para surpresa de todos, pôs-se a
argumentar com os técnicos e os polícias.
"Digam-me: quando é que vou ver as minhas irmãs?",
perguntou ele, com o olhar imperturbável de Dustin Hoffman, em Rain Man, na
previsão de que, com os seus problemas de locomoção, dificilmente poderia
deslocar-se às instituições de acolhimento. E quando lhe falaram no seu próprio
internamento, explicou que estava melhor em casa e que, se fosse para uma
instituição, não conseguiria mais visitar a família.
Chalana acha que foi a demonstração de inteligência de Bruno
que impediu a situação de descambar. "Este menino é que está a segurar a
família toda." A câmara aceitou o pedido para adiar a ordem de despejo,
quando Chalana se comprometeu a conseguir o dinheiro para pagar a dívida. Mas a
Segurança Social recusou o pedido de auxílio económico. Propôs que deixassem o
apartamento, para arrendarem outro numa "ilha", cujo primeiro mês de
renda ajudariam a pagar. Mas as casas disponíveis nas "ilhas" não têm
casa de banho interior, essencial para o Bruno.
A “cultura da pobreza”
A situação está num impasse e Chalana partiu para a luta.
Tentou sensibilizar os candidatos às eleições autárquicas. Escreveu ao provedor
de Justiça. Enviou uma carta ao secretário de Estado da Segurança Social, Marco
António Costa. Por fim, contactou o presidente da Comissão Parlamentar de
Segurança Social e Trabalho, da Assembleia da República, José Canavarro. O
provedor respondeu prontamente, remetendo-o para a Segurança Social. Dos
outros, nem uma reacção, desde Junho.
Chalana é um homem numa guerra permanente. Não representa o
sistema: usa-o, mas é o seu principal inimigo. "Não há complacência. Ao
mínimo erro, as pessoas são excluídas, punidas. Os assistentes sociais têm um
poder excessivo, que usam para tramar as pessoas. São de uma exigência, rigor,
dureza e agressividade para com os pobres, como mais nenhum serviço tem em
Portugal."
O que se esperaria do sistema é que ajudasse as pessoas a
romper o círculo da pobreza e da exclusão. Mas Chalana vê que não há saída para
as novas gerações. "Não há mobilidade social ascendente. A segunda geração
não tem oportunidades. Não têm empregos nem escolaridade. Quem é que dá
trabalho a um habitante do Lagarteiro? Já estão no mesmo caminho dos pais.
Todos os miúdos que conheci quando aqui comecei a trabalhar já estão a traficar
droga ou a arrumar carros."
É cruel a "cultura da pobreza". Em vez de se
unirem, "os pobres estão sempre uns contra os outros". E atacam os
que os ajudam. Chalana recorda o caso de uma mulher a quem ele conseguiu que um
oculista fabricasse gratuitamente as lentes de que o filho necessitava. Quando
os óculos chegaram a casa, pelo correio, a mulher verificou que as lentes eram
novas, mas a armação era a antiga. Ficou furibunda. "Aquele porco!",
gritou. "Pensa que por eu ter estado presa e viver no Lagarteiro pode
cuspir na minha cara?" Não satisfeita, a mulher foi a outro oculista
comprar a armação e mandou pôr na conta do Chalana.
"Quando estas coisas acontecem, penso: Chalana, vai
estudar." E põe-se a ler livros de filósofos e sociólogos. "Os óculos
novos eram muito importantes para ela, que não tem mais nada. Para poder
mostrar. Toda a gente gosta de ter poder. De ser reconhecido na escala social.
Perdoei-lhe."
Da mesma forma, não é fácil entender como é que alguém que
não tem dinheiro para alimentar os filhos e pede ajuda social não deixa de
pagar 70 euros por mês para ter serviço MEO. Ou que se recusem a ir comer às
cantinas sociais. "As pessoas têm vergonha de ir a essas cantinas. Acham
que lá só estão os drogados, os incapazes, os falhados. E querem demarcar-se
deles, para sentir que ainda têm uma hipótese."
Chalana percebe que a opinião pública não seja solidária,
mas não os intelectuais. "Demitiram-se. Não há ninguém, respeitado, com
credibilidade, com autoridade, que venha dizer: isto já chega! Mais não! Os
pobres estão completamente abandonados à sua sorte."
José Vilela está sentado numa cadeira de rodas, na sala do
seu pequeno apartamento da Rua do Lagarteiro. Tem uma expressão serena no rosto
largo e macilento, e o cabelo cuidadosamente penteado, uma T-shirt vermelha e
os pés descalços. Dá um ar de Michael Douglas, em miniatura. O corpo está
imóvel, mas os olhos não param. Percorrem a sala, confirmando que tudo
permanece no lugar: o quadro a óleo, na parede, representando o Porto à noite,
um retrato dele próprio, pintado pelo seu mestre, a máquina, equipada com duas
enormes botijas de oxigénio, que lhe permite respirar.
José Vilela tem 73 anos, uma doença grave, uma pensão de
reforma de 400 euros, uma renda de casa de 375. Sobram-lhe 25 euros por mês
para todas as despesas. Há pouco, chegou uma conta de electricidade de 312,69
euros. Não pagou, porque não tinha dinheiro, mas isso quase lhe custou a vida.
A solidão de Vilela seria absoluta se não fosse Pureza. É
uma antiga namorada, uma viúva ainda hoje de grandes encantos, que vem quase
todos os dias lavá-lo, dar-lhe comida, limpar-lhe a casa.
De resto, Vilela não tem ninguém. Existe uma filha, mas não
ajuda, diz ele. E um número indeterminado de filhos, de mães variadas, que não
mantêm qualquer relacionamento com o pai. "São vadios" é a definição
que Vilela considera apropriada. E que não o embaraça, porque é a marca de um
estilo de vida, a aura indelével de marialva que será nele a última a morrer.
Sedutor e artista, é isso que ele é. Mesmo que mal consiga respirar.
Como um actor de Bollywood
José Ruas Vilela não teve aquilo a que se chama uma vida
exemplar. Nasceu na freguesia da Sé, viveu a infância na Rua da Bainharia, uma
das mais pobres da cidade. Fez a 3.ª classe "por favor", diz. O pai,
tal como ele, "teve muitos filhos, de muitas mulheres". Uma família
enorme, ou seja, ninguém. José Vilela teve um emprego: sapateiro. Diz ele. Do
outro lado do sofá, Pureza gesticula que não. "Nunca trabalhou",
sussurra. "Sempre viveu das mulheres."
Chalana confirma que, quando foi preciso pedir um atestado
de residência para Vilela, surgiram sete endereços diferentes. "Ele dava
as moradas das mulheres." Vivia com várias e com nenhuma. Como amigos,
tinha os ciganos. Esses, ainda hoje o visitam, vêm sempre perguntar se está
melhor.
Numa fotografia pendurada na parede surge Vilela, com pouco
menos de 50 anos. Um homem alto e moreno, bonito, de olhos coruscantes como um
actor de Bollywood. A seu lado está Mendes da Silva, o seu mestre de pintura.
Foi quando o conheceu, aos 48 anos, que mudou de vida.
Aprendeu a pintar e dedicou-se às paisagens nocturnas. Ele,
que nunca fizera nada de útil, acabou reconhecido pela comunidade artística.
Vai agora buscar os álbuns, os recortes: exposições e prémios em Espanha, em
França, no Brasil. Artigos no Comércio do Porto, na Voz de Gaia. Foi convidado
para expor no Japão, pouco antes de adoecer. Já não aceitou.
A doença respiratória era irreversível. O atelier, numa das
divisões da casa, está agora abandonado, os quadros inacabados. Vilela não pode
levantar-se, mal consegue falar. Após o esforço de algumas frases, precisa de
uns minutos para recuperar, em silêncio, ofegante e aflito.
Em Dezembro foi internado. Os médicos deram-lhe dias de
vida, mas esteve um mês no hospital e regressou a casa. Foi nessa altura que
chegou a conta da EDP. Tinham lá ido na sua ausência e fizeram uma estimativa.
"Eu não gastei electricidade naquele mês, estive no hospital." Vilela
não pagou, e veio o aviso: a electricidade seria cortada.
Nos momentos de aflição, Chalana é chamado. Viu que a
situação era grave e escreveu uma carta à EDP. "Neste momento, o utente
permanece em casa sob vigilância médica com máquinas ligadas à electricidade
que lhe garantem a oxigenação e a administração do soro. Se o fornecimento de
electricidade a esta casa for interrompido, as máquinas desligam e o idoso
morre. Face ao exposto, venho por este meio solicitar a V. Exa. autorização
superior para celebrar um plano de suaves prestações mensais de 20 euros."
Chalana enviou várias cartas com este pedido, acompanhadas
por um atestado do hospital, sem obter resposta. Ouviu-a por fim, quando se
dirigiu pessoalmente às instalações da EDP: "Isto é uma empresa que vende
energia. Quem consumir tem de pagar. Se não pagar, cortamos o
fornecimento."
À Segurança Social, Chalana pediu apoio para o pagamento da
renda. Conseguiu um subsídio de 70 euros, apenas durante dois meses. À Câmara
Municipal pediu uma casa, num bairro social. Disse que seriam necessários dois
quartos, a pensar no atelier. "É isso que o mantém vivo, a arte." A
câmara não disponibilizou casa nenhuma.
"Ele levava-me a bailes, a casas de fado, coisas que o
meu marido nunca me proporcionou", diz Pureza. "Foi maravilhoso.
Chamava-me "freirinha". Mas não era nada meigo. Só o era naqueles momentos.
Depois mentia, magoava-me muito. Ele batia nas mulheres, mas elas voltavam
sempre. Ao princípio vivia aqui com outra, e não me dizia nada. Estes homens da
noite vivem muito da mentira."
No outro lado da sala, em surdina, Vilela também está cheio
de vontade de se queixar. "Esta deu-me água pela barba", diz,
esticando o queixo para Pureza. "Ela é boa é para dar ao gato. Mas agora
vem aqui ajudar, não posso dizer nada."
Vê-se que tiveram uma relação intensa e atribulada. Parece
que se odeiam. Mas porque continua ela a vir aqui? "Por pena",
responde. "Ele não tem mais ninguém." Pureza vai nos 83 anos, mas
Vilela não sabe. Nunca lhe perguntou a idade. O seu interesse por ela é débil e
pobre, escasso como o ar que respira. Como se o que o está a salvar fosse não a
memória equívoca daquela mulher ainda apaixonada, mas a sua própria aura de
Casanova da Bainharia. Desesperadamente, ele não aceita a justiça da vida, mas
é tudo a que tem direito, nem um bónus.
O país onde nasceu confina-o ao deserto de si próprio. Ele
que fez tudo o que lhe era pedido. Lá, na rua onde os artesãos medievos
fabricavam bainhas para punhais, Vilela cumpriu. Foi amado pelas mulheres,
respeitado pelos ciganos. Um vencedor.
Que faltou então? Onde falhou? Talvez não devesse ter pintado
aqueles nocturnos. Os quadros onde transfigurou a noite rufia do Porto.
"Aquele quadro foi o último que o meu mestre
pintou", diz Vilela olhando para o seu retrato. "Morreu quando o
terminava." Aponta com os dedos finos e brancos para um ponto algo imperfeito
do seu rosto, na tela. O ponto onde o mestre interrompeu a pintura, para
morrer. "Esta é a sua última pincelada", diz Vilela, como se deter o
último gesto criativo do mestre o defendesse da sua imperfeição. Nos filmes, os
homens têm a vida toda para se reencontrarem.
Grande plano de Vilela, um homem inteiro, cuja vida já teria
sido desligada, uma destas noites, por um qualquer funcionário da EDP, se
alguém não tivesse feito uma ligação directa no contador.
Contraste entre ricos e pobres no tratamento do cancro
'é dramático'
Mais de cem médicos e cientistas de todo o mundo alertam
hoje que "é dramático" o contraste entre o diagnóstico e tratamento
dos doentes com cancro nos países riscos e nos países pobres.
"É mau ter cancro e é pior ter cancro se se for
pobre", alertou Peter Boyle, presidente do Instituto Internacional para a
Investigação da Prevenção (Lyon, França), numa comunicação ao Congresso Europeu
do Cancro, que termina hoje em Amesterdão.
Na sua intervenção, o investigador apresentou as conclusões
do relatório "O Estado da Oncologia 2013", que se baseia em
contributos de mais de 100 cientistas médicos que descrevem o estado daquele
ramo da medicina em mais de 50 países.
Segundo Boyle, a conclusão é que "a diferença entre
ricos e pobres, pessoas com mais ou menos instrução e entre o norte e o sul do
planeta é substancial e continua a aumentar".
"Embora o progresso na oncologia tenha sido assinalável
nas últimas décadas, e embora o futuro pareça encorajador, nem todos os doentes
com cancro beneficiam dos avanços que têm sido alcançados no tratamento da
doença. O contraste no diagnóstico, tratamento e resultado entre países de
altos e baixos rendimentos é dramático", alertou o também director do
Instituto de Saúde Pública Global da Universidade de Strathclyde (Glasgow,
Reino Unido).
Esta situação é particularmente grave numa altura em que as
Nações Unidas estimam que a população mundial atinja os 9,6 mil milhões em
2050.
"Estes aumentos demográficos, juntamente com aumento do
risco de cancro devido à adopção de estilos de vida ocidentais vão levar a um
aumento do número de cancros diagnosticados" em países como a Índia, a
China, a Nigéria, a Indonésia, o Paquistão, o Bangladesh ou o Vietname, disse
Boyle.
"Muitas partes do mundo já são incapazes de lidar com a
situação actual e estão completamente impreparadas para o aumento do problema
do cancro", acrescentou.
O investigador alertou que são "urgentemente
necessárias soluções radicais", sublinhando que "nenhuma fonte de
filantropia tem por si só os meios para resolver este problema, pelo que são
precisos novos modelos".
Para o especialista, a solução passa por um aumento das
parcerias público-privadas, envolvendo fontes de áreas diferentes para fazer o
progresso necessário o mais depressa possível.
Esta parceria, alertou, precisa do compromisso da indústria
farmacêutica e das indústrias envolvidas nas tecnologias de diagnóstico e
tratamento, assim como de governos e organizações não-governamentais.
"A situação descrita no relatório 'Estado da Oncologia
2013' é dramática e urgente, e todas as partes devem pôr de lado quaisquer
desconfianças e desenvolver uma colaboração efectiva para melhorar este
aspecto-chave da saúde pública em todo o mundo", disse.
Lusa/SOL
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