quarta-feira, 2 de março de 2022

A guerra de Putin que mudou o mundo / Putin's war that changed the world

 



COMENTÁRIO

A guerra de Putin que mudou o mundo

Jorge Almeida Fernandes

1 de Março de 2022, 19:59

https://www.publico.pt/2022/03/01/mundo/comentario/guerra-putin-mudou-mundo-1997257?ref=hp&cx=stories_cover__important_b--507490

 

A invasão da Ucrânia é um abalo telúrico que já transformou a Europa. Muda não só a grande política, mas também a vida quotidiana dos cidadãos europeus que sofrem, e vão sofrer, um choque de que ainda não tomámos consciência e que pode ter efeitos mais duradouros do que a pandemia da covid. Com a invasão da Ucrânia, “o mundo entrou numa nova era”, anunciou no domingo, no Bundestag, o chanceler alemão, Olaf Scholz.

 

Não foi só a NATO que mudou, revitalizando os laços entre Europa e América. A iniciativa de Vladimir Putin provocou outros efeitos europeus. As neutrais Finlândia e Suécia admitem pedir a adesão à NATO. A Suíça quebra a sua “neutralidade perpétua” e aplica sanções à Rússia. E a Alemanha “muda da noite para o dia”, decidindo modernizar as suas Forças Armadas, fornecer armas à Ucrânia e, sobretudo, rever radicalmente a sua política russa. Era inimaginável dias antes.

 

A Suécia foi neutral durante a II Guerra Mundial. Depois, com a ascensão da União Soviética, manteve a neutralidade no sentido de “não-aliança”. Hoje, encara o activismo militar da Rússia no Báltico como uma ameaça. A Finlândia tem uma História acidentada. Antiga possessão da Suécia, foi integrada no império russo em 1809. Conquistou a independência em 1918. Depois do Pacto Germano-Soviético (1939), foi atacada pela Rússia e perdeu vários territórios. No fim da II Guerra Mundial, conservou a independência mas a URSS manteve a tutela sobre a sua política externa – foi o que se chamou a “finlandização”, de que apenas se libertou em 1991. Ambos os países temem a proximidade de Moscovo.

 

A “neutralidade perpétua” da Suíça remonta ao Congresso de Viena de 1815 que encerrou a era napoleónica. A Suíça não era apenas um Estado neutral em tempo de guerra mas também neutral em tempo de paz. Em 2014, depois da anexação da Crimeia, recusou, em nome da neutralidade, participar nas sanções a Moscovo. A decisão do passado sábado deve ser considerada “histórica”. O Presidente suíço, Ignazio Cassis, justificou a decisão: “Neutralidade não é indiferença.” Berna congelou os capitais dos oligarcas russos. A decisão tem um significado particular: a sensível Suíça reconhece que os tempos mudaram e muda com eles.

 

A “revolução alemã”

Em 2011, falando da política europeia perante a Rússia, disse Radoslaw Sikorski, então ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia: “Não é tanto o poderio da Alemanha que eu temo; é a inactividade alemã que começo a temer.”

 

No dia 22 de Fevereiro, depois de Putin reconhecer a independência das regiões secessionistas ucranianas, o chanceler anunciava a suspensão do gasoduto Nord Stream 2, símbolo de uma velha cultura alemã em que os interesses económicos prevaleciam sobre os políticos. No sábado 25, dia da invasão, Scholz aprovava o fornecimento de armas à Ucrânia, pondo fim a outro tabu alemão. No domingo, 27, descrevia a invasão como um “ponto de viragem” e fazia o anúncio da “revolução na defesa”. A aprovação imediata duma verba de 100 mil milhões de euros permitirá ultrapassar a fasquia dos 2% do orçamento desejado pela NATO. Ao mesmo tempo, lança como “prioridade absoluta” a nova geração de aviões e carros de combate.

 

Moral da história? “Putin iniciou acidentalmente uma revolução na Alemanha”, titulou na Foreign Policy Jeff Rathka, presidente do Instituto de Estudos Alemães, na Universidade Johns Hopkins. Note-se que a “revolução da defesa” é lançada por um chanceler social-democrata. Scholz tem o apoio de toda a coligação e foi aplaudido pelo líder da oposição, o democrata-cristão Friedrich Merz. Annalena Baerbock, ministra dos Negócios Estrangeiros e dirigente dos Verdes, sintetizou: “Quando o mundo muda, a política deve mudar.”

 

Putin viu-se como líder de uma nova ordem na Eurásia, algo que Pequim não estará disposta a permitir. A mudança no campo ocidental pode vir também a preocupar Xi Jinping. Em lugar de dividir o Ocidente, Putin está a reforçá-lo: arrisca-se a prejudicar anos de estratégia de enfraquecimento dos EUA e a adiar o seu inevitável declínio, teoria muito querida a Pequim. É interessante que, na votação no Conselho de Segurança sobre a Ucrânia, Pequim se tenha abstido na condenação da Rússia, deixando Moscovo solitária no seu veto.

 

A chantagem nuclear

O regresso da guerra à Europa e a “chantagem” de Putin sobre a possibilidade de recurso a armas nucleares obriga os Estados-membros da União Europeia “a tomar decisões impensáveis há meses”, disse nesta terça-feira Mario Draghi, primeiro-ministro italiano. Não é um exagero retórico.

 

Escreve o politólogo francês Cyrille Bret, de Sciences Po e especialista nas relações euro-russas, que a paranóia de Putin deve ser levada a sério. “O poder russo está forçado à vitória militar. Colocou-se na alternativa de vencer ou perder. Como a Rússia se encontra isolada na comunidade internacional, a combinação da hipertrofia do seu poderio militar com a frustração que suscita a sua impotência política leva-a uma corrida nuclear particularmente perigosa.”

 

De qualquer forma, a ameaça de recurso à arma nuclear não é um acto de força, mas uma inaudita declaração de fraqueza.


COMMENT

Putin's war that changed the world

Jorge Almeida Fernandes

March 1, 2022, 19:59

https://www.publico.pt/2022/03/01/mundo/comentario/guerra-putin-mudou-mundo-1997257?ref=hp&cx=stories_cover__important_b--507490

 

The invasion of Ukraine is a telluric shock that has already transformed Europe. It changes not only the great policy, but also the daily lives of European citizens who suffer and will suffer, a shock that we have not yet become aware of and which can have more lasting effects than the pandemic of covid. With the invasion of Ukraine, "the world has entered a new era," German Chancellor Olaf Scholz announced on Sunday in the Bundestag.

 

It is not only NATO that has changed, revitalising the ties between Europe and America. Vladimir Putin's initiative has had other European effects. Neutral Finland and Sweden admit to seking for NATO to be joined. Switzerland breaks its "perpetual neutrality" and imposes sanctions on Russia. And Germany "changes overnight", deciding to modernize its Armed Forces, supply arms to Ukraine and, above all, radically review its Russian policy. It was unimaginable days before.

 

Sweden was neutral during World War II. Then, with the rise of the Soviet Union, he maintained neutrality in the sense of "non-alliance". Today, he sees Russia's military activism in the Baltic as a threat. Finland has a bumpy history. A former possession of Sweden, it was integrated into the Russian Empire in 1809. He gained independence in 1918. After the German-Soviet Pact (1939), it was attacked by Russia and lost several territories. At the end of World War II, it retained independence but the USSR maintained its tutelage over its foreign policy – it was what was called "Finlandization", which only broke free in 1991. Both countries fear moscow's proximity.

 

Switzerland's "perpetual neutrality" dates back to the Vienna Congress of 1815 that ended the Napoleonic era. Switzerland was not only a wartime neutral state but also a peacetime neutral state. In 2014, after the annexation of Crimea, he refused, in the name of neutrality, to participate in sanctions against Moscow. Last Saturday's decision should be considered "historic." Swiss President Ignazio Cassis justified the decision: "Neutrality is not indifference." Bern froze the capitals of the Russian oligarchs. The decision has a particular meaning: the sensitive Switzerland recognizes that times have changed and changes with them.

 

The "German revolution"

In 2011, speaking of European policy towards Russia, said Radoslaw Sikorski, then Poland's foreign minister: "It is not so much the might of Germany that I fear; it is German inactivity that I begin to fear."

 

On 22 February, after Putin recognized the independence of the Ukrainian secessionist regions, the Chancellor announced the suspension of the Nord Stream 2 gas pipeline, a symbol of an old German culture in which economic interests prevailed over politicians. On Saturday the 25th, the day of the invasion, Scholz approved the supply of weapons to Ukraine, putting an end to another German taboo. On Sunday, 27, he described the invasion as a "turning point" and made the announcement of the "revolution in defense." The immediate adoption of eur 100 billion will exceed the 2% of the budget desired by NATO. At the same time, it launches as an "absolute priority" the new generation of aircraft and combat cars.

 

Moral of the story? "Putin accidentally started a revolution in Germany," Jeff Rathka, president of the Institute of German Studies at Johns Hopkins University, told Foreign Policy. It should be noted that the "defence revolution" is launched by a Social Democratic chancellor. Scholz has the support of the entire coalition and was applauded by the leader of the opposition, the Christian Democrat Friedrich Merz. Annalena Baerbock, foreign minister and leader of the Greens, summed up: "When the world changes, politics must change."

 

Putin saw himself as the leader of a new order in Eurasia, something Beijing will not be willing to allow. Change in the western countryside may also come to worry Xi Jinping. Instead of dividing the West, Putin is pushing it back: he risks undermining years of America's weakening strategy and postponing its inevitable decline, a theory much dear to Beijing. It is interesting that, in the security council vote on Ukraine, Beijing abstained in condemning Russia, leaving Moscow alone in its veto.

 

Nuclear blackmail

The return of war to Europe and Putin's "blackmail" over the possibility of using nuclear weapons forces European Union member states "to make unthinkable decisions months ago," Mario Draghi, Italian Prime Minister, said on Tuesday. It's not a rhetorical exaggeration.

 

Writes French politico Cyrille Bret of Sciences Po and expert on Euro-Russian relations, that Putin's paranoia should be taken seriously. "Russian power is forced to military victory. He put himself in the alternative of winning or losing. As Russia is isolated in the international community, the combination of the hypertrophy of its military might with the frustration that arouses its political impotence leads to a particularly dangerous nuclear race."

 

In any case, the threat of recourse to the nuclear weapon is not an act of strength, but an unprecedented statement of weakness.


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