JOÃO MIGUEL TAVARES / 29 de Março de 2022 / PÚBLICO
OPINIÃO
Os descendentes dos judeus sefarditas merecem melhor
De uma assentada, o novo regulamento da nacionalidade, um
decreto, revoga duas leis da Assembleia da República, o que além de ser
politicamente inadmissível, é manifestamente ilegal. E, como se não bastasse,
enceta uma acção de revisionismo da História.
José Ruah
31 de Março de
2022, 6:30
O novo
Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (NRNP – DL 26/2022, de 18 de Março) é
um fato à medida para resolver uma questão política, nascida e criada com a
notícia da concessão da nacionalidade portuguesa a Roman Abramovich. Esse
processo – sobre o qual a Comunidade Israelita de Lisboa nada conhece, para
além das notícias publicadas – desencadeou múltiplas reacções (umas racionais,
outras nem tanto), bem como uma miríade de notícias e reportagens que, creio,
influenciaram decisivamente o sentido do legislador. Explicitando: o NRNP,
apesar de dever ter sido publicado em meados de Fevereiro de 2021 e de apenas o
ter sido em meados de Março de 2022, mais de um ano depois da data prevista, é
uma legislação que “sai a quente”, fortemente condicionada pelo mediatismo e
reacções sobre um caso concreto e que dificulta (ou impede, mesmo), a obtenção
daqui para a frente da nacionalidade a descendentes de judeus sefarditas. O
que, obviamente, deve merecer reflexão e acção.
Em vez de se
focar, apenas, na melhoria de processos e de procedimentos que garantissem mais
transparência, escrutínio e agilidade processual na emissão de certificados
(era esse o sentido do NRNP), o legislador antes optou por inserir normas
desproporcionais e desajustadas. Ora, desperdiçou-se uma excelente oportunidade
para legislar bem, com sentido, critério, objectividade e racionalidade, e
deixou-se que um caso, que deve ser averiguado pelas autoridades, moldasse a
legislação de tal forma que, na prática, se revoga por Decreto-Lei (NRNP), não
apenas uma, mas duas Leis da Assembleia da República: por um lado, a Lei
Orgânica n.º1/2013, aprovada por unanimidade, que introduziu a possibilidade de
o Governo poder “conceder a nacionalidade por naturalização (…) aos
descendentes de judeus sefarditas portugueses”, assim como a Lei da
Nacionalidade que entrou em vigor a 10 de Novembro de 2020.
O NRNP, embora
caminhando no sentido da uniformização de processos, introduz aos requerentes
duas obrigações: a primeira (DL 26/2022, art.º 24-A, n.º 3, d ), a apresentação
de uma certidão “da titularidade, transmitida mortis causa, de direitos reais
sobre imóveis sitos em Portugal, de outros direitos pessoais de gozo ou de
participações sociais em sociedades comerciais ou cooperativas sediadas em
Portugal”; a segunda (alínea seguinte do mesmo artigo), comprovativos de
“deslocações regulares ao longo da vida do requerente a Portugal”. Na prática,
impede-se que o critério objectivo da descendência (que é o que está nas leis
da AR) seja condição para a obtenção da nacionalidade, introduzindo-se por
decreto requisitos extemporâneos que nada têm a ver com as origens sefarditas
dos requerentes.
O NRNP criou um problema maior do que aquele que
pretendeu resolver
O NRNP, de uma
assentada, revoga duas leis da AR, o que além de ser politicamente
inadmissível, é manifestamente ilegal, e como se não bastasse enceta uma acção
de revisionismo da História (casos que se vão repetindo pelo Mundo com relação
a teses negacionistas) ao contrariar séculos de investigação que concluíram que
os judeus sefarditas não tinham em geral propriedades e as poucas que tinham
foram confiscadas. O NRNP vem rever a história e afirmar que afinal essas
propriedades existiam e que podem ser herdadas.
A Comunidade
Israelita de Lisboa, como é evidente, não assistirá impavidamente a este
atropelo legal, político e procedimental. Bater-se-á pela rectificação destes
erros, que não são dignos da nossa democracia e do nosso Estado de Direito. O
NRNP criou um problema maior do que aquele que pretendeu resolver. Sim, era
preciso melhorar o regulamento. Sim, era preciso mais transparência, mais
previsibilidade, mais agilidade, mais coerência, critérios mais evidentes e
uniformes. Isso mesmo o dissemos na AR em Junho de 2020 no âmbito do Grupo de
Trabalho que se encontrava a rever a Lei da Nacionalidade, isso mesmo o
dissemos publicamente noutras ocasiões e isso mesmo o dissemos, por escrito, em
interacções posteriores, já em 2021, com o Ministério da Justiça, e isso vem
plasmado no NRNP, mas acompanhado de critérios que distorcem a reparação
histórica.
A polémica,
compreensível, que estalou por causa de um processo específico, trouxe a
público, ao que parece, um conjunto de dúvidas respeitantes a um conjunto mais
alargado de processos e de procedimentos. Averiguem-se e investiguem-se, pois,
estes casos, e que deles se tirem todas as consequências, punindo-se todos os
que, comprovadamente, tenham tido comportamentos à margem da Lei. Mas a
dignidade do Estado preserva-se enfrentando as questões de frente, e não através
de expedientes. A dignidade do Estado manifesta-se no respeito
político-institucional. A dignidade do Estado exerce-se através de leis
decentes, geradas na prossecução do interesse comum e nunca contra nada nem
contra ninguém. A dignidade do Estado, neste caso e com a publicação do NRNP,
não esteve à altura das circunstâncias. Em breve, um novo Parlamento e um novo
Governo tomarão posse. Pediremos audiências a estes dois órgãos de soberania,
porque privilegiamos – como sempre – a via do diálogo construtivo e
colaborativo. O NRNP, como está, não pode ficar. A bem da dignidade do Estado.
A dignidade do
Estado exerce-se através de leis decentes, geradas na prossecução do interesse
comum,e nunca contra nada nem contra ninguém
Dirigente da
Comunidade Israelita de Lisboa
ENTREVISTA
Constança Urbano de Sousa: “Sofri pressões ao mais alto
nível para não alterar Lei da Nacionalidade”
A deputada do PS
fala, em entrevista ao PÚBLICO, sobre as pressões que sofreu quando tentou
mudar da Lei da Nacionalidade para apertar a malha sobre quem poderia ter
acesso à nacionalidade portuguesa. Constança Urbano de Sousa comenta ainda as
alterações recentes na legislação sobre a nacionalidade de descendentes de
judeus sefarditas.
Paulo Curado
28 de Março de
2022, 6:30
Em 2020, a deputada e vice-presidente da
bancada socialista no Parlamento Constança Urbano de Sousa procurou alterar a
“lei do retorno” dos descendentes de judeus sefarditas, mas foi obrigada a
desistir face à “enorme onda de contestação” e às pressões de que foi alvo,
inclusivamente por parte de figuras históricas do PS, como Maria de Belém ou
Manuel Alegre. Na altura alertou, para a ‘comercialização’ da nacionalidade
portuguesa e para o facto de a legislação, como estava redigida, abranger um
universo incalculável de potenciais candidatos.
Se fosse um dos nossos parceiros europeus como
reagiria ao facto de Roman Abramovich ser um cidadão português?
Em primeiro
lugar, perguntaria como é que obteve a nacionalidade portuguesa e, com isso, a
cidadania da União Europeia. Até porque a naturalização pressupõe, em regra, um
período de residência no país onde possa vir a ser naturalizado, para existir
uma conexão, e é do conhecimento geral que Roman Abramovich residiu apenas no
Reino Unido, que já não faz parte da UE.
A nacionalidade portuguesa de Roman Abramovich
foi conhecida em Dezembro, mas até agora o seu processo de naturalização
continua envolto em mistério. Como se justifica este silêncio?
Não consigo
explicar porque desconheço o processo. Causa-me apenas alguma surpresa.
Como especialista em Direito da Nacionalidade
como interpretou as alterações na Lei da Nacionalidade, em 2013, que
possibilitaram a naturalização aos descendentes de judeus sefarditas expulsos
de Portugal no final do século XV?
Foi um gesto
histórico e bonito que juridicamente padecia de dois vícios. Em primeiro lugar,
o respeito pelo princípio da igualdade, já que o édito de D. Manuel de 1496 não
determinou apenas a expulsão de judeus, mas também de mouros. A haver uma
reparação histórica teria de abranger todos. Por outro lado, a forma como a lei
estava redigida, permitiria abarcar um universo incalculável de pessoas.
Reparei na altura que não existiram debates nem audições a genealogistas, por
exemplo, para perceber o universo de potenciais candidatos.
Não achou estranho esta ausência de estudos
genealógicos ou estatísticos?
O processo
decorreu no Parlamento em pouco mais de um mês e meio. Existiram apenas três pareceres,
do Conselho Superior da Magistratura, do Conselho Superior do Ministério
Público e da Ordem dos Advogados, que considerou na altura que a proposta de
lei era inconstitucional por discriminar em função da origem religiosa os
potenciais destinatários.
Mais determinante, enquanto especialista em Direito da Nacionalidade, foi o desrespeito pelo princípio da nacionalidade efectiva. Um princípio do Direito Internacional Público, também do Direito da UE, que diz que um Estado deve dar a sua nacionalidade apenas a quem tenha com ele, ou com o seu povo, uma qualquer conexão materialmente relevante, na actualidade.
Esta lei foi injusta para os portugueses das
ex-colónias que perderam a nacionalidade portuguesa em 1975, por exemplo?
Devem sentir-se
extremamente injustiçados. Essa foi também uma injustiça histórica, mas muito
mais recente. Estamos a falar de pessoas naturais das ex-colónias que em 1975
estavam domiciliadas em Portugal, eram portuguesas e viviam aqui. De um dia
para o outro, por força da lei, perderam a nacionalidade, ficando muitos
apátridas, por não terem adquirido a nacionalidade dos países que, entretanto,
se formaram. Foi uma enorme injustiça. Questionei-me sobre a necessidade de se
fazer esta reparação histórica aos descendentes de judeus sefarditas, em 2013,
não se aproveitando para reparar uma outra injustiça perante pessoas que são
vivas, sempre se sentiram portuguesas e sempre viveram em Portugal e daqui
nunca saíram, assim como os seus filhos. São portugueses de facto ainda que não
o sejam de direito.
A regulamentação de 2015 para a naturalização
de descendentes de judeus sefarditas foi insuficiente?
Na minha opinião,
o decreto-lei de 2015 tem um problema, que passa pelo Estado ter delegado
exclusivamente em entidades privadas [Comunidade Israelita do Porto e
Comunidade Israelita de Lisboa] o atestado de descendência sefardita, que é uma
parte substancial de um processo de concessão da nacionalidade. Esta é uma
matéria de soberania por essência, porque estamos a definir quem é o povo
português. O Estado desonerou-se daquela que deveria ser uma das suas
principais missões nesta matéria.
Em 2020, quando já desempenhava funções como
vice-presidente da bancada parlamentar do PS, propôs alterações à Lei da
Nacionalidade. O que pretendia?
Em primeiro
lugar, fui presidir a um grupo de trabalho que estava a rever a Lei da
Nacionalidade e, apesar de ser deputada, não podia dissociar-me da minha
vertente académica e daquilo que defendo em termos de Direito da Nacionalidade.
Vi uma oportunidade de tornar a lei mais conforme às obrigações do Estado
português no domínio do Direito Internacional e do Direito da União Europeia.
Em segundo lugar, porque considerei que a forma como estava redigida a lei não
cumpria o seu objectivo. Era uma ‘lei do retorno’, como lhe chamaram os seus
autores, que implicaria a existência de uma comunidade judaica mais expressiva
no nosso país, o que eu defendo, até por razões pessoais [é casada com um
judeu]. Tenho pena que não tenha crescido assim tanto com esta lei.
Causou-me alguma apreensão ver como a nacionalidade
portuguesa estava a ser comercializada como um mero passaporte alavancado ao
facto de Portugal estar inserido na UE.
Porque grande parte dos requerentes não veio
viver para Portugal?
É verdade. Mesmo
o ressuscitar da vida judaica em Portugal foi impulsionado por um conjunto
muito significativo de cidadãos franceses, que nunca pediram a nacionalidade
portuguesa, e que se foram radicar no Porto para fugir ao sentimento
anti-semita que sentem existir no seu país. Por outro lado, causou-me alguma
apreensão ver como a nacionalidade portuguesa estava a ser comercializada como
um mero passaporte alavancado ao facto de Portugal estar inserido na UE.
Propôs na altura a exigência de um período de
dois anos de residência em Portugal para os interessados.
Uma Lei da
Nacionalidade não é uma Lei de Imigração. A residência é um pressuposto do
vínculo jurídico da nacionalidade, não uma consequência. Pressupõe que alguém
viva numa comunidade, comungando das nossas venturas e desventuras. Por isso
tem direito a estabelecer com o Estado português o vínculo jurídico da
nacionalidade. Esta pressupõe uma qualquer conexão com o país, seja por se ter
nascido em Portugal, por aqui viver, por descender directamente de portugueses
ou por via do casamento. Uma nacionalidade não é um passaporte, que é um mero
documento de viagem.
A possibilidade
de “mercantilização” do passaporte português através desta lei não era
expectável logo em 2013?
Acho que houve
uma certa ingenuidade do legislador. Muitos dos deputados que aprovaram por
unanimidade a Lei da Nacionalidade em 2013 ficaram ‘inebriados’ com o gesto
histórico magnânimo e muito bonito do país. Estou convicta que a esmagadora
maioria dos deputados não se apercebeu de eventuais consequências daquilo que
estava a legislar.
Em Espanha, uma lei semelhante exigia
pressupostos bem mais rígidos, nomeadamente um prazo (final de 2019) para os
pretendentes requererem a nacionalidade. Por que é que optou Portugal por outro
caminho?
O processo
espanhol de reparação histórica da expulsão dos judeus sefarditas foi muito
diferente. A nossa lei, tal como está redigida, não repara apenas os
descendentes daqueles que foram expulsos pelo édito de D. Manuel, mas também
aqueles que foram expulsos pelo édito dos Reis Católicos em 1492. É impossível
recuar 500 anos e provar que determinado indivíduo descende de alguém que tenha
sido expulso exactamente de Portugal e não de Espanha. A nossa lei não exige
sequer isso.
Em Espanha, o processo começou muito antes e
foi muito mais cauteloso e mesmo assim existiram fraudes. A discussão da lei
demorou muito mais do que a portuguesa. Entendeu-se, neste caso, que a lei de
reparação histórica teria de ser forçosamente limitada no tempo, porque diz
respeito ao passado e não deve prolongar-se pela eternidade. O legislador
espanhol foi fiel à sua obrigação de respeito pelo princípio da nacionalidade
efectiva. Exigia também uma conexão ao país, nomeadamente através do domínio da
língua espanhola, um conhecimento mínimo da sociedade e Constituição espanholas,
através de um teste realizado num dos institutos Cervantes existentes no mundo,
para além das provas da sua descendência sefardita. No final, o processo teria
de ser concluído presencialmente em Espanha. Nada disto foi exigido em
Portugal.
Quando um Estado
desbarata a sua nacionalidade, isso pode naturalmente causar danos nas relações
com os outros estados.
Portugal não se
deu ao respeito numa matéria tão sensível como a concessão da nacionalidade?
Quando um Estado
desbarata a sua nacionalidade, isso pode naturalmente causar danos nas relações
com os outros estados. Portugal é signatário da Convenção Europeia da
Nacionalidade que é muito clara a esse respeito. Os outros estados só são
obrigados a reconhecer a nacionalidade que Portugal confere a outra pessoa se
forem respeitados os princípios do Direito Internacional em matéria de
nacionalidade, onde está consagrado o princípio de nacionalidade efectiva.
A publicitação dos benefícios do passaporte
português por advogados e agências internacionais deixam uma imagem negativa do
país?
A imagem é
terrível e afecta-nos gravemente, porque no fundo é a mercantilização de um bem
que não é transaccionável. Algo que também fizeram países como Malta ou Chipre
que tanta oposição causaram na União Europeia, quando adoptaram programas de
cidadania por investimento, como acontece nos paraísos fiscais. No fundo, uma
pessoa paga por uma cidadania. Mas, se existe esta possibilidade, não condeno
quem a aproveite. É perfeitamente legal.
A proposta de alteração à lei que promoveu em
2020 foi ferozmente atacada, inclusivamente por figuras históricas do PS,
acabando por a deixar isolada e a desistir da proposta. O que se passou?
Houve uma enorme
onda de contestação. A proposta exigia um período mínimo de residência prévia
em Portugal de dois anos. Um regime muito mais favorável do que o existente
para os imigrantes que já aqui residem. Não se exigia sequer conhecimento da
língua portuguesa. Os proponentes da legislação de 2013 falavam numa ‘lei do
retorno’ que pretendia reparar um erro histórico e restabelecer as comunidades
judaicas que o país perdeu. Algo que seria cumprido com a proposta que defendi,
tornando a lei mais fiel ao seu objectivo.
Devido a pressões ao mais alto nível, acabei por recuar
duas vezes. Primeiro, deixei cair a exigência de dois anos de residência,
substituindo este requisito por uma qualquer conexão relevante a Portugal, que
seria depois regulamentada, mas fui também obrigada a desistir desta proposta.
Devido a pressões ao mais alto nível, acabei
por recuar duas vezes. Primeiro, deixei cair a exigência de dois anos de
residência, substituindo este requisito por uma qualquer conexão relevante a
Portugal, que seria depois regulamentada, mas fui também obrigada a desistir
desta proposta.
Como interpretou
então as críticas públicas? Chega a ser acusada de anti-semitismo.
Quando comecei a
ver críticas virulentas e insultuosas na comunicação social, fiquei mais
alertada para a realidade. Achei que muitas pessoas se estavam a sentir
afectadas do ponto de vista pessoal, mas também patrimonial.
Sentiu que estava a afectar um negócio?
Por vezes as boas
e nobres intenções podem ser desvirtuadas e acho que foi o caso.
Surpreenderam-na mais as críticas dos seus pares
socialistas?
Alguns dos
chamados ‘senadores’ do PS, como Maria de Belém [autora da Lei da Nacionalidade
de 2013], Vera Jardim, Manuel Alegre e Alberto Martins nunca falaram comigo,
mas moveram nos órgãos de comunicação social, e provavelmente fora deles,
mundos e fundos para evitar qualquer alteração a esta lei. Curiosamente, há
pouco tempo, li no jornal Expresso declarações de alguns destes ‘históricos’ a
abrirem a possibilidade a uma alteração legislativa.
Particularmente espantosas são as declarações
de Manuel Alegre, que insinuou em 2020 que eu era uma anti-semita, e defende
agora que a lei deveria ser temporária. Ou seja, que deve ser revogada. Ou
estamos no reino da hipocrisia ou não sei como explicar esta mudança profunda
de opinião. Bastante insultuoso nos meios de comunicação social foi também José
Ribeiro e Castro [ex-líder e ex-deputado do CDS], um dos proponentes desta lei.
No desespero de a defender escreveu um artigo de opinião publicado no Observador
onde demonstra um total desconhecimento da legislação. Particularmente
extraordinário para alguém que é apresentado no seu escritório de advogados
como um dos pais desta Lei da Nacionalidade, sendo um dos seus domínios de
especialização o Direito da Nacionalidade.
As alterações na regulamentação da lei, com
mais exigências para a sua aplicação, aprovadas recentemente por decreto-lei do
Governo, promulgado pela Presidência da República, são suficientes?
Melhoram a
regulamentação ao exigir que qualquer requerente à nacionalidade tenha de facto
uma relação efectiva a Portugal. O processo torna-se bastante mais rigoroso e
vai reduzir drasticamente os casos de aquisição da nacionalidade por pura
conveniência.
Defende a revogação da lei para que seja
introduzida um limite temporal?
Enquanto jurista,
acho que uma ‘lei de reparação’ nunca pode ser eterna, por definição. O
legislador português deveria ter seguido o exemplo do legislador espanhol.
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OPINIÃO
Da reparação histórica à conspurcação da História
A lei portuguesa é agora uma “via verde” para a venda de
passaportes europeus a quem os puder pagar, como o portuguesíssimo Roman
Abramovich.
João Miguel
Tavares
29 de Março de
2022, 0:35
https://www.publico.pt/2022/03/29/opiniao/opiniao/reparacao-historica-conspurcacao-historia-2000503
A entrevista que
Constança Urbano de Sousa concedeu ontem ao PÚBLICO a propósito da lei que
atribui a nacionalidade portuguesa aos descendentes dos judeus sefarditas é
simultaneamente admirável e inacreditável. Admirável, porque tudo o que ela diz
está certo, e é dito com uma coragem política digna de elogio. Inacreditável,
porque a entrevista é uma declaração de incapacidade de resistência aos lobbies
socialistas por parte de uma deputada do próprio PS. Constança Urbano de Sousa
declara três coisas: 1) A lei de 2015, como está escrita, é má; 2) Ela própria
tentou alterá-la em 2020; 3) Só que foi, infelizmente – e passo a citar –,
“obrigada a desistir da proposta”. Vamos por partes.
1) A lei de 2015
não é apenas má – é totalmente absurda, e a demonstração de que de leis
bem-intencionadas está o Inferno cheio. A ideia de “reparação histórica”,
traduzida em benefícios concretos para descendentes de grupos de pessoas
maltratadas há vários séculos, é uma fonte de infinitos equívocos, não porque o
mundo seja insensível, mas porque a Matemática é impiedosa. Os judeus
sefarditas foram expulsos de Portugal nos séculos XV e XVI – há meio milénio,
cerca de 20 gerações atrás. Todos nós temos dois pais, quatro avós, oito
bisavós, 16 trisavós, e por aí adiante, numa progressão geométrica que permite
a qualquer português declarar-se orgulhosamente descendente de D. Afonso
Henriques, e estar certíssimo. Um judeu sefardita que tenha nascido em Portugal
há 20 gerações, e cujos descendentes tenham tido uma média de dois filhos por
geração, nos dias de hoje tem 2 elevado a 20 descendentes, ou seja, 1.048.576
pessoas. Portanto, se um judeu sefardita do século XV tem hoje mais de um
milhão de descendentes directos, imaginem quantos descendentes têm todos os
judeus sefarditas que no tempo de D. Manuel viviam em Portugal.
2) Este pequeno
detalhe matemático não atrapalhou o legislador português, que decidiu ser o
mais magnânimo possível: não colocou limites temporais aos pedidos de
nacionalidade, nem o domínio da língua, como em Espanha, e quando Constança
Urbano de Sousa propôs uma alteração legislativa exigindo um período mínimo de
residência em Portugal de dois anos, ou alguma conexão ao país, não conseguiu
reunir apoios para a proposta. A lei portuguesa é agora uma “via verde” para a
venda de passaportes europeus a quem os puder pagar, como o portuguesíssimo
Roman Abramovich: exige apenas certidão de nascimento, registo criminal
impoluto e o certificado de uma comunidade judaica aferindo a “pertença a uma
comunidade sefardita de origem portuguesa”, que pode ser “materializada” em
coisas tão vagas como a “genealogia” ou a “memória familiar”.
3) Não espanta,
por isso, que no início do ano o país já contasse com mais de 30 mil cidadãos
que nem precisaram de meter os pés em Portugal, e outros 54 mil a caminho. Por
que raio não foi a lei modificada, então? Segundo Constança Urbano de Sousa,
por causa dos “senadores do PS” – Maria de Belém, Vera Jardim, Manuel Alegre e
Alberto Martins –, que “moveram mundos e fundos para evitar qualquer alteração
a esta lei”. Desde essa altura, o rabino da comunidade judaica do Porto
(responsável por 90% dos processos) foi detido quando se preparava para viajar
para Israel, e uma investigação do PÚBLICO descobriu o envolvimento de um
sobrinho de Maria de Belém (que propôs a lei original) no negócio de milhões.
Eis a forma como
se dignifica a memória dos judeus sefarditas em Portugal.
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