“VAMOS TER UM CLIMA NO SUL DE PORTUGAL PARECIDO COM O DE
MARROCOS? SIM, E TEMOS DE NOS ADAPTAR E DE MITIGAR OS EFEITOS. VÃO MORRER UNS
MILHARES DE QUANDO EM VEZ? AH, POIS VÃO”
O climatologista
Carlos da Camara, em entrevista à VISÃO
Luís Ribeiro
LUÍS RIBEIRO
JORNALISTA
IDEIAS
08.08.2021 às
19h00
No final de
junho, uma onda de calor nunca antes vista matou centenas (milhares?) de
pessoas no Canadá e nos EUA. Duas semanas depois, um temporal de dimensões
bíblicas abateu-se sobre a Europa Central, matando 200 pessoas e provocando
prejuízos que podem chegar aos €3 mil milhões (há estimativas que apontam para
€5 mil milhões).
Serão estes
desastres causados pelas alterações climáticas? Quase certamente que sim, diz
Carlos da Camara, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
e um dos mais experientes climatologistas portugueses. Munido de um gráfico que
se assemelha à bossa de um camelo, o também investigador do Instituto D. Luiz
explica que uma pequena subida da temperatura média provoca um enorme aumento
probabilístico de fenómenos extremos como estes. “Coisas que pareciam
inacreditavelmente impossíveis começam a tornar-se possíveis. E às vezes nem é
assim tão dramático: basta um deslocamento pequenino para que aquilo que dantes
acontecia uma vez em cada 100 anos passe a acontecer quatro vezes em cada cem.
Mas, como é isso que mata, é isso que tem impacto.”
E isto é só o
princípio.
A tragédia no
Centro da Europa é uma consequência das alterações climáticas ou do mau
planeamento urbano?
As pessoas
começam a dizer: “Ah, isto não é das alterações climáticas, é porque
construíram coisas em leito de cheia.” Não! Um fenómeno extremo com
consequências catastróficas nunca é de uma só causa. É como quando cai um
avião: é um conjunto de fatores raros que se intercetam. Por exemplo, o 15 de
outubro de 2017, aquele dia trágico em que ardeu o País como nunca, teve vários
fatores que conduziram ao desastre. Ponto um, os ventos do Ofélia: não era nada
habitual um furacão chegar aqui. Era uma coisa rara que, não sendo frequente,
se tornou muito menos rara. Ponto 2: uma seca terrível, outro fenómeno que é
cada vez menos raro. Ponto 3: os agricultores precisavam de fazer queimadas porque
depois vinha a chuva e já não conseguiam (nunca houve tantas ignições como
naquele dia). Claro que construir em leito de cheia é perigoso. Só que na
Alemanha não era habitual haver coisas destas. E isto só aconteceu por causa
das alterações climáticas.
De que forma é
que uma temperatura média mais alta pode levar a um aumento de fenómenos de
precipitação intensa?
Os estados do
tempo são determinados por coisas que se passam a muitos quilómetros de
altitude. A corrente de jato é fundamental nisto. É uma espécie de tubos na
atmosfera, com ventos de 400 ou 500 quilómetros por hora, que controlam o
tráfego de sistemas meteorológicos que estão associados, por exemplo, à
precipitação. A posição da corrente de jato está dependente do contraste
térmico entre os trópicos e os polos. Ora, o Ártico e o Antártico estão a
aquecer muito mais rapidamente do que os trópicos; esse contraste está a
diminuir e a corrente de jato está a posicionar-se noutros sítios. Isso faz com
que determinados sistemas meteorológicos que não eram habituais passem a ser
menos raros.
Então a tragédia
que aconteceu no Centro da Europa é o tipo de evento que podemos esperar que
aconteça cada vez mais?
Inequivocamente,
sim. E ainda há uma outra razão, além da questão da corrente de jato: a atmosfera,
quanto mais quente está, maior capacidade tem de reter vapor de água e maior
quantidade de água estará disponível para que, caso haja condições para
precipitação, ela ocorra com maior intensidade. Portanto, o facto de estes
fenómenos se tornarem mais prováveis tem que ver com as alterações climáticas
de origem antropogénica.
Qual a
probabilidade de cheias como estas ou ondas de calor como a do final de junho
no Canadá e nos EUA acontecerem sem o efeito das alterações climáticas?
Seriam
acontecimentos extremamente raros. Um recorde que sobe de 45ºC para quase 50ºC
é, do ponto de vista probabilístico, pouquíssimo frequente, num cenário sem
influência antropogénica. No caso da “cúpula de calor”, a corrente de jato
levou à formação de uma região em que o ar não se renova durante muitos dias,
como se estivesse em circuito fechado. E sobre essa região há altas pressões,
que têm a particularidade de empurrar o ar para baixo, comprimindo-o, o que faz
com que aqueça. Além disso, havia já no Canadá uma seca excecional. Se o ar e o
solo estiverem secos, aquece ainda mais do que em condições normais. Foram
então duas situações absolutamente anómalas que se juntaram.
Uma equipa de
investigadores que analisou essa onda de calor disse que esta seria
“virtualmente impossível” sem as alterações climáticas.
Não é nada
inédito. Um artigo de um colega meu, o Ricardo Trigo, publicado na Science em
2011, na sequência da onda de calor na Rússia, acaba a dizer que a
probabilidade de algo semelhante voltar a acontecer é extremamente baixa.
Curiosamente, no mês passado, Moscovo teve a onda de calor mais séria dos
últimos 120 anos. Isto é que me preocupa imenso. E as regiões do Mediterrâneo e
do Nordeste europeu emergem como os hotspots primários. É onde vamos ter estes
extremos.
A realidade está
a ser mais drástica do que os modelos climáticos previam?
Está em linha com
o que se previa, mas a uma taxa mais acelerada. Aquilo que eu achava que ia
acontecer depois de eu morrer… Bom, estou a ficar preocupado, porque começa a
haver fenómenos extremos que os modelos apontavam mais para a frente.
Como climatologista,
estes fenómenos surpreendem-no? Ou olha para isto e pensa: “Há anos que andamos
a avisar”?
Há anos que
andamos a avisar. O problema é que um climatologista não é um catastrofista. A
questão é que quando se transforma um resultado científico numa ideologia,
caímos na controvérsia. Eu só digo: “Meus amigos, isto são os resultados. Agora
façam o que quiserem.” O que temos de fazer é confiar na Ciência, olhar para os
cenários e arranjar medidas para nos adaptarmos. Mitigar os impactos, porque
eles estão aí e duvido de que possamos escapar.
Este mês, o
Comité das Alterações Climáticas britânico avisou o governo de Boris Johnson de
que o país está mais mal preparado para fenómenos extremos do que há cinco
anos. Os governantes não estão a levar os alertas a sério?
É um facto que
governos mais conservadores tendem a minimizar os impactos das alterações
climáticas. Ao mesmo tempo, os de esquerda tendem a dar uma ideologia a uma
coisa que não devia ser ideológica, mas sim técnico-científica.
Tivemos então a onda
de calor na América do Norte, que matou centenas de pessoas…
Centenas, não.
Vão chegar aos milhares. Vai ser essa a conclusão, quando se fizer a análise
estatística da diferença de mortes para o mesmo período em condições normais.
… E agora as
cheias na Europa, que provocaram pelo menos 200 mortes. Se isto acontece nos
países mais ricos e com as melhores infraestruturas, o que podem esperar os
países mais pobres do mundo? Nas metrópoles da Nigéria, do Bangladesh ou da
América Latina…
Mas já acontece!
De cada vez que um furacão assola o México ou a Nicarágua, os mortos são aos
milhares. De facto, em países como os EUA reduz-se o número de vítimas, porque
há uma capacidade de previsão e de mobilização. Essa é a vantagem das
sociedades mais industrializadas. Mas também têm prejuízos económicos muito
maiores. O furacão na Figueira da Foz causou uma enorme destruição na rede
elétrica, por exemplo.
O objetivo do
Acordo de Paris é limitar o aumento da temperatura a um máximo de 2ºC, mas
preferencialmente não mais de 1,5ºC. Esses 0,5ºC podem efetivamente significar
milhares de vidas salvas todos os anos? Meio grau faz a diferença?
Meio grau faz
toda a diferença nos desvios-padrão. Uma coisa que tinha uma probabilidade de
0,13% de acontecer passa para 0,26% – duas vezes mais provável. O problema não
é a média. Com essa eu vivo bem. É como com a subida do mar: a questão não são
os 80 centímetros a mais até ao final do século, são as flutuações, com ondas e
subidas de água capazes de destruir a baixa de uma cidade como Lisboa, que
dantes eram raríssimas e passam a ser muito mais frequentes. A discussão do
meio grau é fulcral, porque se traduz, em termos de extremos, em variações
brutais de probabilidades.
Em Portugal, que
consequências das alterações climáticas já se notam mais claramente?
Se analisarmos o
perigo meteorológico de incêndio em Portugal dos últimos 40 anos, e o
dividirmos num gráfico, vemos que todos os maiores extremos aconteceram nas
últimas duas décadas, de 2000 para cá. Se cruzarmos com a área ardida oficial,
vemos que acontece o mesmo. Depois podem dizer: “Ah, a paisagem está mais
desordenada, ou há mais ignições”… Não estou a dizer que as alterações
climáticas são o bode expiatório de tudo, mas, não havendo uma política de
ordenamento do território nem de mitigação de ignições, o resultado estatístico
está à vista. Outra coisa: entre 1980 e 1999, 89% dos fogos ocorriam de julho a
setembro, e apenas 3% de outubro a dezembro; de 2000 a 2019, a proporção de
fogos no verão baixou para 76% e de outubro a dezembro subiu para 13 por cento.
Isto é um exemplo muito simples dos impactos. As alterações climáticas estão a
fazer com que as consequências sejam muitíssimo piores. Tornam mais prováveis
acontecimentos que eram raríssimos. Se juntarmos a isto outras condições, o
impacto vai ser ainda maior.
Governos mais
conservadores tendem a minimizar os impactos das alterações climáticas. Ao
mesmo tempo, os de esquerda tendem a dar uma ideologia a uma coisa que não
devia ser ideológica
Estamos
preparados para o aumento desses riscos? Incêndios, ondas de calor, secas,
inundações?
A seguir ao
trauma de 2017, houve uma mudança de paradigma. As pessoas passaram a ter medo,
o que às vezes é útil. Há uma muito maior colaboração entre as universidades e
as instituições, por exemplo. A Proteção Civil está agora a usar conhecimento
científico para o posicionamento das aeronaves. Isso nota-se, sim. Mas o
problema é extremamente vasto. Além disso, transcende o ciclo governativo,
aquela ideia de que o que interessa é ter resultados até às eleições, quando a
questão dos fogos é muito mais complexa.
É um problema só
nosso?
Não. Uma vez, em
2017, estava à conversa com um diplomata sueco que me dizia, com
condescendência: “Vocês, portugueses, são muito indisciplinados. Nós, na Suécia,
não temos o impacto dos fogos, porque há muitos anos que temos especialistas
competentes.” E eu disse-lhe: “Prepare-se, porque vão ter problemas. As
alterações climáticas estão a chegar lá.” No ano seguinte, ardeu a Suécia. Esta
ideia de que os países nórdicos ou a Alemanha estão bem preparados… Não estão,
porque isto ultrapassa os cenários menos usuais. Mas também lhe digo que os
belgas e os alemães não brincam em serviço. Morrerem ou desaparecerem tantas
pessoas é completamente inaceitável e vai haver uma mudança qualitativa na
previsão e na resposta a este tipo de coisas.
Portugal devia
também aprender com esta tragédia na Alemanha?
Há uma
mentalidade que começa a mudar. Nos fogos, isso é óbvio: começou a perceber-se
que um fogo vencido não é uma vitória, é uma derrota. Uma vitória é evitar o
fogo. É como dizer: “O tipo espetou-se, mas a ambulância chegou em três
minutos.” Não, vitória era não haver acidente. E isto é transposto para tudo,
incluindo cheias.
Está otimista,
então?
Como estes
extremos vão continuar a ocorrer, as pessoas vão perceber que os
climatologistas tinham razão. Agora, as alterações climáticas vão ser o
Armagedão, o fim do mundo? Não. Vamos ter um clima no Sul de Portugal mais
parecido com o de Marrocos? Sim, e temos de nos adaptar e mitigar os efeitos.
Vão morrer uns milhares de quando em vez? Ah, pois vão, com certeza. Como
se está a ver.
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