OPINIÃO
Inequivocamente, a culpa é nossa
A narrativa do novo relatório do IPCC segue um guião
conhecido: a concentração de gases com efeito de estufa continua a aumentar, a
temperatura e o nível do mar idem, somos os culpados e temos de reduzir
imediatamente as emissões de carbono. Nos detalhes é que está a dimensão
anómala do que está a acontecer.
Ricardo Garcia
9 de Agosto de
2021, 20:36
https://www.publico.pt/2021/08/09/opiniao/opiniao/inequivocamente-culpa-1973594
O mais recente
diagnóstico global sobre as alterações climáticas, divulgado esta segunda-feira
em Genebra, diz que o aquecimento global é inequivocamente culpa nossa. Déjá
vu? Não propriamente. Depois de três décadas de existência e cinco avaliações
anteriores semelhantes, é a primeira vez que o IPCC – o painel científico da
ONU para o clima – afirma, sem qualquer margem de dúvida, que as atividades
humanas puseram os termómetros a subir, seja na atmosfera, nos mares ou nas
superfícies terrestres.
Embora não
surpreenda, nunca a linguagem do IPCC foi tão assertiva. Em 1990, dois anos
depois da sua criação, o painel dizia estar “certo” de que as emissões humanas
de gases com efeito de estufa estavam a aumentar e que isso teria efeitos sobre
a temperatura terrestre. No seu segundo relatório, em 1995, o IPCC observava
uma “discernível” influência humana no clima global. O relatório seguinte, de
2001, considerava “provável” que a maior parte do aquecimento dos últimos 50
anos se devia ao aumento das emissões antropogénicas. Em 2007, na quarta avaliação,
o “provável” foi promovido a “muito provável”. E em 2013, data do relatório
anterior ao agora divulgado, a fasquia subiu para “extremamente provável”.
Agora, a culpa humana é “inequívoca”.
Não é um detalhe
irrelevante. Os relatórios do IPCC são um farol científico para as decisões
políticas. Prepararam o palco para a adoção da Convenção Quadro das Nações
Unidas para as Alterações Climáticas em 1992, do Protocolo de Quioto em 1997 e
do Acordo de Paris em 2015.
De certa forma,
este novo relatório põe um ponto final a uma dúvida que a própria convenção
climática de 1992 lançou, ao determinar que as emissões deveriam ser
estabilizadas a um nível que evitasse uma “interferência antropogénica
perigosa” sobre o clima. Sucessivamente, os relatórios do IPCC foram tentando
caracterizar o significado desta interferência. Agora, há 100% de certeza de
que ela existe e é perigosa.
A narrativa do
novo relatório do IPCC segue um guião conhecido: a concentração de gases com
efeito de estufa continua a aumentar, a temperatura e o nível do mar idem,
somos os culpados e temos de reduzir imediatamente as emissões de carbono. Nos
detalhes é que está a dimensão anómala do que está a acontecer.
A última vez que
a atmosfera terrestre teve tanto dióxido de carbono foi há dois milhões de
anos, muito antes de surgir o Homo sapiens. A temperatura global na última
década só encontra paralelo em médias de há 125 mil anos. O nível do mar tem
vindo a subir a uma escala sem precedentes nos últimos 3000 anos. Os glaciares
estão a encolher como nunca em pelo menos 2000 anos e a capa de gelo sobre o
Ártico é a menor em pelo menos 1000 anos.
Para a frente, o
cenário não é animador. Aos níveis atuais, só podemos lançar CO2 para atmosfera
por mais 14 anos, se quisermos assegurar 50% de probabilidade de que os
termómetros não irão subir mais do que 1,5 graus Celsius até 2100, face aos
níveis pré-industriais.
Por mais claros e assustadores que sejam os cenários
traçados no novo relatório do IPCC, não é certo que serão suficientes para a
estimular a ação necessária. O painel científico da ONU sofre de um problema
sério de comunicação. A sua mensagem, por mais importante que seja, está gasta
O esforço
necessário para tal meta é brutal. Basta ver a que custo as emissões globais de
CO2 baixaram no ano passado: uma trágica pandemia, que paralisou o mundo,
tirando os carros das ruas, deixando os aviões em terra e pondo a economia de
rastos. No final, houve uma quebra de 7% nas emissões – mais ou menos o que
seria necessário, todos os anos, até 2030, para assegurar o objetivo dos 1,5
graus Celsius. Ou seja, o equivalente a uma pandemia por ano.
Por mais claros e
assustadores que sejam os cenários traçados no novo relatório do IPCC, não é
certo que serão suficientes para a estimular a ação necessária. O painel
científico da ONU sofre de um problema sério de comunicação. A sua mensagem,
por mais importante que seja, está gasta. Dizer que vamos enfrentar mais ondas
de calor, secas e cheias, que a agricultura pode ser comprometida ou que
animais e plantas podem desaparecer já não impressiona ninguém – não porque não
seja algo com que nos devamos preocupar, mas porque já ouvimos estes avisos
tantas e tantas vezes.
O IPCC teve maior
protagonismo noutras circunstâncias. No lançamento do seu primeiro relatório,
em 1990, a opinião pública estava a acordar para as alterações climáticas, um
tema novo em parte impulsionado por uma devastadora seca nos Estados Unidos,
dois anos antes, e pela consciência emergente de que o mundo padecia de
problemas ambientais globais. Já em 2007, os alertas do IPCC surgiram pouco
depois do furacão Katrina e do sucesso de Al Gore no documentário Uma Verdade
Inconveniente.
Não tivesse a
covid-19 virado o mundo de cabeça para baixo, e este novo apelo à urgência
agora divulgado pelo IPCC teria beneficiado da força que a jovem Greta Thunberg
deu ao combate às alterações climáticas em 2019. Resta esperar que o relatório
dê um empurrão à conferência climática da ONU agendada para novembro, em
Glasgow, onde, em tese, todos os países deverão apresentar planos mais
ambiciosos para se tornarem neutros em carbono até à segunda metade deste
século. Mas é difícil crer que tal aconteça.
O autor escreve
segundo o novo acordo ortográfico
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