terça-feira, 10 de agosto de 2021

Inequivocamente, a culpa é nossa

 



OPINIÃO

Inequivocamente, a culpa é nossa

 

A narrativa do novo relatório do IPCC segue um guião conhecido: a concentração de gases com efeito de estufa continua a aumentar, a temperatura e o nível do mar idem, somos os culpados e temos de reduzir imediatamente as emissões de carbono. Nos detalhes é que está a dimensão anómala do que está a acontecer.

 

Ricardo Garcia

9 de Agosto de 2021, 20:36

https://www.publico.pt/2021/08/09/opiniao/opiniao/inequivocamente-culpa-1973594

 

O mais recente diagnóstico global sobre as alterações climáticas, divulgado esta segunda-feira em Genebra, diz que o aquecimento global é inequivocamente culpa nossa. Déjá vu? Não propriamente. Depois de três décadas de existência e cinco avaliações anteriores semelhantes, é a primeira vez que o IPCC – o painel científico da ONU para o clima – afirma, sem qualquer margem de dúvida, que as atividades humanas puseram os termómetros a subir, seja na atmosfera, nos mares ou nas superfícies terrestres.

 

Embora não surpreenda, nunca a linguagem do IPCC foi tão assertiva. Em 1990, dois anos depois da sua criação, o painel dizia estar “certo” de que as emissões humanas de gases com efeito de estufa estavam a aumentar e que isso teria efeitos sobre a temperatura terrestre. No seu segundo relatório, em 1995, o IPCC observava uma “discernível” influência humana no clima global. O relatório seguinte, de 2001, considerava “provável” que a maior parte do aquecimento dos últimos 50 anos se devia ao aumento das emissões antropogénicas. Em 2007, na quarta avaliação, o “provável” foi promovido a “muito provável”. E em 2013, data do relatório anterior ao agora divulgado, a fasquia subiu para “extremamente provável”. Agora, a culpa humana é “inequívoca”.

 

Não é um detalhe irrelevante. Os relatórios do IPCC são um farol científico para as decisões políticas. Prepararam o palco para a adoção da Convenção Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas em 1992, do Protocolo de Quioto em 1997 e do Acordo de Paris em 2015.

 

De certa forma, este novo relatório põe um ponto final a uma dúvida que a própria convenção climática de 1992 lançou, ao determinar que as emissões deveriam ser estabilizadas a um nível que evitasse uma “interferência antropogénica perigosa” sobre o clima. Sucessivamente, os relatórios do IPCC foram tentando caracterizar o significado desta interferência. Agora, há 100% de certeza de que ela existe e é perigosa.

 

A narrativa do novo relatório do IPCC segue um guião conhecido: a concentração de gases com efeito de estufa continua a aumentar, a temperatura e o nível do mar idem, somos os culpados e temos de reduzir imediatamente as emissões de carbono. Nos detalhes é que está a dimensão anómala do que está a acontecer.

 

A última vez que a atmosfera terrestre teve tanto dióxido de carbono foi há dois milhões de anos, muito antes de surgir o Homo sapiens. A temperatura global na última década só encontra paralelo em médias de há 125 mil anos. O nível do mar tem vindo a subir a uma escala sem precedentes nos últimos 3000 anos. Os glaciares estão a encolher como nunca em pelo menos 2000 anos e a capa de gelo sobre o Ártico é a menor em pelo menos 1000 anos.

 

Para a frente, o cenário não é animador. Aos níveis atuais, só podemos lançar CO2 para atmosfera por mais 14 anos, se quisermos assegurar 50% de probabilidade de que os termómetros não irão subir mais do que 1,5 graus Celsius até 2100, face aos níveis pré-industriais.

 

Por mais claros e assustadores que sejam os cenários traçados no novo relatório do IPCC, não é certo que serão suficientes para a estimular a ação necessária. O painel científico da ONU sofre de um problema sério de comunicação. A sua mensagem, por mais importante que seja, está gasta

 

O esforço necessário para tal meta é brutal. Basta ver a que custo as emissões globais de CO2 baixaram no ano passado: uma trágica pandemia, que paralisou o mundo, tirando os carros das ruas, deixando os aviões em terra e pondo a economia de rastos. No final, houve uma quebra de 7% nas emissões – mais ou menos o que seria necessário, todos os anos, até 2030, para assegurar o objetivo dos 1,5 graus Celsius. Ou seja, o equivalente a uma pandemia por ano.

 

Por mais claros e assustadores que sejam os cenários traçados no novo relatório do IPCC, não é certo que serão suficientes para a estimular a ação necessária. O painel científico da ONU sofre de um problema sério de comunicação. A sua mensagem, por mais importante que seja, está gasta. Dizer que vamos enfrentar mais ondas de calor, secas e cheias, que a agricultura pode ser comprometida ou que animais e plantas podem desaparecer já não impressiona ninguém – não porque não seja algo com que nos devamos preocupar, mas porque já ouvimos estes avisos tantas e tantas vezes.

 

O IPCC teve maior protagonismo noutras circunstâncias. No lançamento do seu primeiro relatório, em 1990, a opinião pública estava a acordar para as alterações climáticas, um tema novo em parte impulsionado por uma devastadora seca nos Estados Unidos, dois anos antes, e pela consciência emergente de que o mundo padecia de problemas ambientais globais. Já em 2007, os alertas do IPCC surgiram pouco depois do furacão Katrina e do sucesso de Al Gore no documentário Uma Verdade Inconveniente.

 

Não tivesse a covid-19 virado o mundo de cabeça para baixo, e este novo apelo à urgência agora divulgado pelo IPCC teria beneficiado da força que a jovem Greta Thunberg deu ao combate às alterações climáticas em 2019. Resta esperar que o relatório dê um empurrão à conferência climática da ONU agendada para novembro, em Glasgow, onde, em tese, todos os países deverão apresentar planos mais ambiciosos para se tornarem neutros em carbono até à segunda metade deste século. Mas é difícil crer que tal aconteça.

 

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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