terça-feira, 31 de agosto de 2021

Sair do Afeganistão irá melhorar a posição global dos EUA a longo prazo

 


ANÁLISE

Sair do Afeganistão irá melhorar a posição global dos EUA a longo prazo

 

A retirada vai permitir que Biden realinhe as prioridades estratégicas da nação de forma a reassegurar aliados e a travar adversários. Também irá permitir que Washington se empenhe em desafios domésticos prementes.

 

Charles A. Kupchan

30 de Agosto de 2021, 22:45

https://www.publico.pt/2021/08/30/mundo/analise/sair-afeganistao-ira-melhorar-posicao-global-eua-longo-prazo-1975722

 

Alguns dias depois de os Estados Unidos terem retirado civis americanos e vietnamitas que estavam em risco de Saigão, a 30 de Abril de 1975, Maxwell Taylor, antigo chefe do Estado Maior, lamentou que “o final do Vietname” estivesse a “prejudicar a nossa reputação de fiabilidade, enfraquecendo as nossas alianças, e expondo as nossas fraquezas internas perante os nossos amigos e adversários”. Muitos observadores partilharam a visão de Taylor de que a queda de Saigão prejudicou irreversivelmente a credibilidade global da América.

 

Mas a decisão de abandonar uma guerra perdida que se estava a tornar num albatroz político em casa acabou por beneficiar a América, permitindo que Washington passasse a gerir de forma mais eficiente as suas relações com a União Soviética e com a China, bem como reconstruir internamente. Duas décadas depois da ignominiosa evacuação de Saigão, o Muro de Berlim caiu, a União Soviética colapsou e os Estados Unidos lideraram o fim da Guerra Fria.

 

O impacto da queda de Cabul sobre o poder e a posição dos EUA parece destinado a seguir uma trajectória idêntica. A curto prazo, o esforço caótico de evacuação em Cabul – com origem na grosseira subavaliação por Washington da rapidez com que os taliban iriam avançar – deverá dar um golpe à posição política da Administração Biden interna e externamente. A morte de 13 membros das Forças Armadas dos EUA e de pelo menos 180 outras pessoas num ataque terrorista na última quinta-feira irá deixar uma sombra durante muito tempo sobre a retirada. Mas no prazo mais longo, a decisão do Presidente Biden de acabar com a guerra de duas décadas no Afeganistão irá provavelmente melhorar a posição da América no mundo, realinhando as prioridades estratégicas da nação de forma a reassegurar aliados e a travar adversários. Também irá permitir que Washington se empenhe em desafios domésticos prementes, o que irá, por sua vez, beneficiar a posição global dos Estados Unidos.

 

Esta previsão optimista, que reflecte as lições aprendidas com a retirada do Vietname, vai contra a corrente de muitas das previsões actuais. A direcção editorial do Wall Street Journal acusou recentemente Biden de “destruir a NATO” e lamenta “o dano que a sua saída desgraçada do Afeganistão causou às alianças da América e à sua reputação”. De acordo com James Cunningham, que foi embaixador dos EUA no Afeganistão entre 2012 e 2014, “os estragos à segurança dos Estados Unidos, dos nossos aliados, e da região foi feito, tal como os estragos à credibilidade da liderança dos EUA”.

 

A Administração claramente falhou em não antecipar o colapso rápido do Governo e do Exército afegão, pondo em risco muitos americanos, outros estrangeiros e parceiros afegãos que ainda estavam no país quando Cabul caiu. Esta crítica mantém-se, apesar de a evacuação coordenada por Washington ter conseguido retirar mais de cem mil pessoas do país desde que os taliban assumiram o controlo.

 

Mas Biden estava certo em querer pôr fim a uma missão falhada dos EUA que tentava alcançar um objectivo impossível. Mesmo depois de 20 anos de apoio da coligação liderada pelos EUA, o Afeganistão não mostrou sinais de coerência como um país funcional e unitário, como o colapso abrupto das suas instituições estatais deixou claro.

 

Os Estados Unidos alcançaram a missão primária no Afeganistão – dizimar a al-Qaeda e impedir que o Afeganistão se tornasse numa rampa de lançamento para ataques contra os EUA ou os seus aliados. E Biden sublinhou que, após a retirada, os Estados Unidos reservam o direito de atacar terroristas que se mantenham ou se reorganizem no Afeganistão. Foi o que aconteceu na sexta-feira e no domingo, quando Washington levou a cabo bombardeamentos contra o braço do Daesh que assumiu responsabilidade pelo ataque de quinta-feira. Mas mesmo que os EUA mantenham um olho no Afeganistão, a retirada militar do país irá permitir que Washington altere o seu foco estratégico de interesses periféricos no Médio Oriente para os seus interesses primordiais no coração da Eurásia. Os aliados europeus e asiáticos serão os beneficiários de um realinhamento estratégico adiado que concentre mais atenção e recursos na China e na Rússia – os adversários da América mais formidáveis.

 

Na verdade, tanto a China como a Rússia irão colher benefícios de curto-prazo da retirada a missão dos EUA no Afeganistão. A China provavelmente irá tentar aprofundar a integração do país na sua Belt and Road Initiative – o vasto programa de infraestruturas que Pequim está a construir por toda a Eurásia. E a Rússia irá aumentar a sua influência no Afeganistão e na região.

 

Mas tanto a China como a Rússia têm festejado silenciosamente enquanto os Estados Unidos passaram grande parte das duas últimas décadas a andar pelo Afeganistão – bem como pelo Iraque, Líbia e Síria. Estes poços sugaram os cofres dos EUA, tiraram muitas vidas, dividiram o eleitorado e distraíram os EUA da sua prioridade tradicional nas rivalidades entre grandes potências. Pequim e Moscovo estão prestes a ter um duro despertar assim que os EUA se libertarem das “guerras intermináveis” do Médio Oriente e começarem a pôr a China e a Rússia sob a sua mira.

 

Olhar para dentro

Sair do Afeganistão também irá beneficiar o poder e a posição dos EUA porque faz parte do esforço mais alargado de Biden em reconstruir as fontes internas de poder da América. A “política externa para a classe média” de Biden significa, em parte, gastar tempo e dinheiro em tratar de problemas em casa em vez do Afeganistão – uma das principais razões pela qual acabar com a missão dos EUA merece um apoio público avassalador. O custo da guerra no Afeganistão saldou-se em 20 mil milhões de dólares (17 mil milhões de euros) por ano – cerca de 0,5% do orçamento federal. Mas ao longo de vinte anos, a guerra custou cerca de 2,3 biliões de dólares (dois biliões de euros), com a factura total das “guerras intermináveis” pós-11 de Setembro estimada em cerca de seis biliões (cinco biliões de euros).

 

Dinheiro nesta quantidade pode agora ser investido de forma mais produtiva na economia interna. E como ter força em casa é a fundação para ter força no exterior, os investimentos domésticos acabam por melhorar a posição global da nação. De facto, no que respeita ao papel de longo prazo da América no mundo, as políticas sociais e de infraestruturas agora no Congresso são uma notícia muito mais importante do que a retirada do Afeganistão. Os investimentos em infraestrutura, tecnologia, investigação e educação são necessários para manter a vantagem competitiva do país e acompanhar o ritmo da China.

 

Estes investimentos também prometem melhorias nas condições de vida dos trabalhadores americanos que, por seu lado, podem ajudar a reparar a política nacional e reconstruir o centro político. Superar a polarização que fez da política americana tão tóxica irá, com sorte, reduzir o isolacionismo e a xenofobia que nos últimos anos prejudicaram a condução da política externa dos EUA. Reclamar o tipo de governação estável e intencional requer a reconstrução das fundações bipartidárias do internacionalismo americano.

 

Ao olhar para além da retirada, os Estados Unidos devem fazer tudo o que esteja ao seu alcance para continuar a retirada de afegãos ameaçados, aliviar o sofrimento humanitário, e pressionar os taliban a governar de forma responsável e humana. Mesmo assim, a evacuação caótica de Cabul, incluindo o horroroso ataque terrorista fora do aeroporto, irá ficar gravada como um dos episódios mais negros da actuação dos EUA no estrangeiro. Mas as probabilidades parecem altas de que à medida que o Afeganistão segue em frente e procura construir um novo equilíbrio político, a retirada dos EUA do país – tal como a retirada do Vietname – irá abrir um período de renovação do poder e da posição da América.

 

Exclusivo Público / Washington Post

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