ANÁLISE
Sair do Afeganistão irá melhorar a posição global dos EUA
a longo prazo
A retirada vai permitir que Biden realinhe as prioridades
estratégicas da nação de forma a reassegurar aliados e a travar adversários.
Também irá permitir que Washington se empenhe em desafios domésticos prementes.
Charles A. Kupchan
30 de Agosto de
2021, 22:45
Alguns dias
depois de os Estados Unidos terem retirado civis americanos e vietnamitas que
estavam em risco de Saigão, a 30 de Abril de 1975, Maxwell Taylor, antigo chefe
do Estado Maior, lamentou que “o final do Vietname” estivesse a “prejudicar a
nossa reputação de fiabilidade, enfraquecendo as nossas alianças, e expondo as
nossas fraquezas internas perante os nossos amigos e adversários”. Muitos
observadores partilharam a visão de Taylor de que a queda de Saigão prejudicou
irreversivelmente a credibilidade global da América.
Mas a decisão de
abandonar uma guerra perdida que se estava a tornar num albatroz político em
casa acabou por beneficiar a América, permitindo que Washington passasse a
gerir de forma mais eficiente as suas relações com a União Soviética e com a
China, bem como reconstruir internamente. Duas décadas depois da ignominiosa
evacuação de Saigão, o Muro de Berlim caiu, a União Soviética colapsou e os
Estados Unidos lideraram o fim da Guerra Fria.
O impacto da
queda de Cabul sobre o poder e a posição dos EUA parece destinado a seguir uma
trajectória idêntica. A curto prazo, o esforço caótico de evacuação em Cabul –
com origem na grosseira subavaliação por Washington da rapidez com que os
taliban iriam avançar – deverá dar um golpe à posição política da Administração
Biden interna e externamente. A morte de 13 membros das Forças Armadas dos EUA
e de pelo menos 180 outras pessoas num ataque terrorista na última quinta-feira
irá deixar uma sombra durante muito tempo sobre a retirada. Mas no prazo mais
longo, a decisão do Presidente Biden de acabar com a guerra de duas décadas no
Afeganistão irá provavelmente melhorar a posição da América no mundo,
realinhando as prioridades estratégicas da nação de forma a reassegurar aliados
e a travar adversários. Também irá permitir que Washington se empenhe em
desafios domésticos prementes, o que irá, por sua vez, beneficiar a posição
global dos Estados Unidos.
Esta previsão
optimista, que reflecte as lições aprendidas com a retirada do Vietname, vai
contra a corrente de muitas das previsões actuais. A direcção editorial do Wall
Street Journal acusou recentemente Biden de “destruir a NATO” e lamenta “o dano
que a sua saída desgraçada do Afeganistão causou às alianças da América e à sua
reputação”. De acordo com James Cunningham, que foi embaixador dos EUA no
Afeganistão entre 2012 e 2014, “os estragos à segurança dos Estados Unidos, dos
nossos aliados, e da região foi feito, tal como os estragos à credibilidade da
liderança dos EUA”.
A Administração
claramente falhou em não antecipar o colapso rápido do Governo e do Exército
afegão, pondo em risco muitos americanos, outros estrangeiros e parceiros
afegãos que ainda estavam no país quando Cabul caiu. Esta crítica mantém-se,
apesar de a evacuação coordenada por Washington ter conseguido retirar mais de
cem mil pessoas do país desde que os taliban assumiram o controlo.
Mas Biden estava
certo em querer pôr fim a uma missão falhada dos EUA que tentava alcançar um
objectivo impossível. Mesmo depois de 20 anos de apoio da coligação liderada
pelos EUA, o Afeganistão não mostrou sinais de coerência como um país funcional
e unitário, como o colapso abrupto das suas instituições estatais deixou claro.
Os Estados Unidos
alcançaram a missão primária no Afeganistão – dizimar a al-Qaeda e impedir que
o Afeganistão se tornasse numa rampa de lançamento para ataques contra os EUA
ou os seus aliados. E Biden sublinhou que, após a retirada, os Estados Unidos
reservam o direito de atacar terroristas que se mantenham ou se reorganizem no
Afeganistão. Foi o que aconteceu na sexta-feira e no domingo, quando Washington
levou a cabo bombardeamentos contra o braço do Daesh que assumiu
responsabilidade pelo ataque de quinta-feira. Mas mesmo que os EUA mantenham um
olho no Afeganistão, a retirada militar do país irá permitir que Washington
altere o seu foco estratégico de interesses periféricos no Médio Oriente para
os seus interesses primordiais no coração da Eurásia. Os aliados europeus e
asiáticos serão os beneficiários de um realinhamento estratégico adiado que
concentre mais atenção e recursos na China e na Rússia – os adversários da
América mais formidáveis.
Na verdade, tanto
a China como a Rússia irão colher benefícios de curto-prazo da retirada a
missão dos EUA no Afeganistão. A China provavelmente irá tentar aprofundar a
integração do país na sua Belt and Road Initiative – o vasto programa de
infraestruturas que Pequim está a construir por toda a Eurásia. E a Rússia irá
aumentar a sua influência no Afeganistão e na região.
Mas tanto a China
como a Rússia têm festejado silenciosamente enquanto os Estados Unidos passaram
grande parte das duas últimas décadas a andar pelo Afeganistão – bem como pelo
Iraque, Líbia e Síria. Estes poços sugaram os cofres dos EUA, tiraram muitas
vidas, dividiram o eleitorado e distraíram os EUA da sua prioridade tradicional
nas rivalidades entre grandes potências. Pequim e Moscovo estão prestes a ter
um duro despertar assim que os EUA se libertarem das “guerras intermináveis” do
Médio Oriente e começarem a pôr a China e a Rússia sob a sua mira.
Olhar para dentro
Sair do
Afeganistão também irá beneficiar o poder e a posição dos EUA porque faz parte
do esforço mais alargado de Biden em reconstruir as fontes internas de poder da
América. A “política externa para a classe média” de Biden significa, em parte,
gastar tempo e dinheiro em tratar de problemas em casa em vez do Afeganistão –
uma das principais razões pela qual acabar com a missão dos EUA merece um apoio
público avassalador. O custo da guerra no Afeganistão saldou-se em 20 mil
milhões de dólares (17 mil milhões de euros) por ano – cerca de 0,5% do
orçamento federal. Mas ao longo de vinte anos, a guerra custou cerca de 2,3
biliões de dólares (dois biliões de euros), com a factura total das “guerras
intermináveis” pós-11 de Setembro estimada em cerca de seis biliões (cinco
biliões de euros).
Dinheiro nesta
quantidade pode agora ser investido de forma mais produtiva na economia
interna. E como ter força em casa é a fundação para ter força no exterior, os
investimentos domésticos acabam por melhorar a posição global da nação. De
facto, no que respeita ao papel de longo prazo da América no mundo, as
políticas sociais e de infraestruturas agora no Congresso são uma notícia muito
mais importante do que a retirada do Afeganistão. Os investimentos em
infraestrutura, tecnologia, investigação e educação são necessários para manter
a vantagem competitiva do país e acompanhar o ritmo da China.
Estes
investimentos também prometem melhorias nas condições de vida dos trabalhadores
americanos que, por seu lado, podem ajudar a reparar a política nacional e
reconstruir o centro político. Superar a polarização que fez da política
americana tão tóxica irá, com sorte, reduzir o isolacionismo e a xenofobia que
nos últimos anos prejudicaram a condução da política externa dos EUA. Reclamar
o tipo de governação estável e intencional requer a reconstrução das fundações
bipartidárias do internacionalismo americano.
Ao olhar para
além da retirada, os Estados Unidos devem fazer tudo o que esteja ao seu
alcance para continuar a retirada de afegãos ameaçados, aliviar o sofrimento
humanitário, e pressionar os taliban a governar de forma responsável e humana.
Mesmo assim, a evacuação caótica de Cabul, incluindo o horroroso ataque
terrorista fora do aeroporto, irá ficar gravada como um dos episódios mais
negros da actuação dos EUA no estrangeiro. Mas as probabilidades parecem altas
de que à medida que o Afeganistão segue em frente e procura construir um novo
equilíbrio político, a retirada dos EUA do país – tal como a retirada do
Vietname – irá abrir um período de renovação do poder e da posição da América.
Exclusivo Público / Washington Post
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