MUSEUS
Reconfiguração do ex-Museu Romântico do Porto gera
polémica e mobiliza petição de protesto
São já mais de 800 os signatários que exigem a resposição
da decoração oitocentista do museu da Quinta da Macieirinha. Nuno Faria,
director artístico do Museu da Cidade, defende a opção tomada, mas demarca-se
do tom “provocatório” de um post da autarquia que terá atiçado as críticas nas
redes sociais.
Luís Miguel
Queirós
31 de Agosto de
2021, 7:20
A nova exposição
permanente do Museu Romântico, agora rebaptizado Extensão do Romantismo do
Museu da Cidade, "despejou" a sua reconhecível decoração oitocentista
Agora rebaptizado
Extensão do Romantismo do Museu da Cidade, o antigo Museu Romântico era
possivelmente o mais visitado dos museus municipais do Porto, o que em boa
medida se ficava a dever às muitas turmas do ensino secundário que lá iam ver
como era a atmosfera doméstica de uma casa da alta burguesia portuense no
período romântico. Seria de espantar, portanto, que uma reconfiguração radical
do espaço e do seu conceito, com o esvaziamento de quase todas as peças que
integravam a colecção exposta, não causasse polémica, como efectivamente
causou, e que foi ainda atiçada pelo registo de um post da autarquia publicado
sábado à tarde na página de Facebook da Feira do Livro do Porto, no qual se
afirmava: “Se conhecia o anterior Museu Romântico da Macieirinha, prometemos
que este novo espaço nada tem a ver com o local que outrora visitou.”
Nuno Faria,
director artístico do Museu da Cidade e curador da exposição que inaugurou a
nova Extensão do Romantismo — tendo como peça central o Herbário de Júlio
Dinis, a mostra inclui reinterpretações de obras da história da pintura e peças
de artistas portugueses contemporâneos que estabelecem um diálogo
particularmente intenso com o ideário romântico —, defende a opção agora
concretizada de cortar radicalmente com a proposta museológica que se mantinha
mais ou menos inalterada desde a criação do Museu romântico em 1972, e que
evocava a passagem do rei Carlos Alberto da Sardenha, que viveu algum tempo na
Quinta da Macieirinha, ao mesmo tempo que recriava os ambientes domésticos da
elite burguesa oitocentista.
“Não era uma
casa-museu, ninguém viveu ali daquela maneira, era uma construção ficcional, a
concepção do Estado Novo do que era uma casa burguesa do século XIX”, argumenta
Faria em declarações ao PÚBLICO. “Esteve 50 anos assim e as coisas evoluem e
passam por transformações”, observa, acrescentando que o projecto actual
pretende designadamente dar visibilidade aos escritores, artistas visuais e
músicos românticos, sobretudo portuenses.
O responsável do
Museu da Cidade demarca-se no entanto da publicação no Facebook, que atribui a
alguém que não integra a equipa do museu da Cidade e que considera “ofensiva e
provocatória”. Além de ter originado perto de 400 comentários, quase todos de
desagrado, o post é também citado numa petição lançada na Internet e que ontem
ao final do dia tinha já mais de 800 assinaturas, incluindo figuras como o
ex-ministro da Cultura Luís Filipe Castro Mendes, a antiga directora-geral de
Serralves, Odete Patrício, ou o historiador Gaspar Martins Pereira.
Lançada pela
criadora do site Memórias da Casa Antiga, a arquitecta Ana Motta Veiga, também
vice-presidente da direcção nacional do Chega, a petição exige “a reposição da
decoração interior oitocentista do Museu Romântico da Quinta da Macieirinha no
Porto”, afirmando que “provocou espanto e reacção imediata dos portuenses o
orgulho com que a Câmara Municipal do Porto anunciou que desfez” a anterior exposição
permanente ali instalada. E cita a referida página de Facebook: “O espaço
despiu-se dos adereços de casa burguesa oitocentista e vestiu-se de
contemporaneidade.” Uma frase que cita quase textualmente o texto de
apresentação da Extensão do Romantismo no jornal da Feira do Livro, mas que
Nuno Faria diz ter sido retirada do contexto.
A polémica chegou
já também à disputa eleitoral autárquica, com a candidatura do social-democrata
Vladimiro Feliz a convocar os media para uma conferência de imprensa esta
terça-feira, cujo anunciado tema é: “Museu do Romântico: Estão a destruir o
conceito deste museu!!!”.
Um acervo em formol?
Vários dos
comentários negativos a esta reconfiguração do Museu Romântico que entretanto
surgiram nas redes sociais lembram que o espaço sofrera uma remodelação
recente, financiada com fundos europeus, e para a qual o cenógrafo Tito
Celestino e a equipa técnica da Câmara do Porto desenharam uma solução
museográfica que mantinha o ambiente de época que sempre marcou o museu.
O museu reabrira
em Fevereiro de 2018, após esta intervenção, que Nuno Faria diz ter sido
aproveitada, assegurando ainda que as peças agora retiradas da casa “voltarão a
ser mostradas”, neste e noutros espaços do Museu da Cidade, ainda que “não da
mesma maneira”. É o caso, exemplifica, de uma colecção de têxteis que nunca foi
integralmente exposta.
Todas as peças
que pertencem ao município “estão devidamente acondicionadas” e o seu
inventário deverá ser finalizado em breve, explica o curador. Só algumas peças
em depósito têm vindo a ser devolvidas aos seus proprietários ou respectivos
herdeiros, um processo, assegura, que já estava em curso quando chegou à equipa
do Museu da Cidade.
“Preservar a
memória das coisas, dos objectos, dos hábitos, das tradições, não passa
necessariamente por encapsulá-las, preservá-los em formol, congelá-las num
tempo já passado, já sem vida, já sem corpos, sem respiração”, argumenta Nuno
Faria numa entrevista entretanto publicada no site da autarquia. O curador
assume uma perspectiva muito crítica da última remodelação, que teria tornado o
museu “um lugar que exercia verdadeiro distanciamento social”, já que os alunos
das escolas eram confrontados com “uma certa forma de vida (…) da alta
burguesia” cuja inacessibilidade era vincada pelo facto de o acesso às salas
estar vedado e só as poderem ver de fora.
Nesta sua sua
“nova era”, o museu, diz, “trabalhará em largo espectro sobre o Romantismo, ou
os romantismos, no plural, quer artísticos, quer literários, quer musicais” e a
Extensão do Romantismo será “ainda mais do que um espaço expositivo, um espaço
performativo”, com “uma constante programação musical”.
“Mudar da noite para o dia”
Mas esta visão
está longe de ser consensual. Um dos signatários da petição, o historiador e
professor Gaspar Martins Pereira, acha que “as colecções associadas a uma casa
não se devem dispersar, porque ali têm um significado que lhes é dado pelo
contexto e noutros museus perdem sentido, são objectos soltos”.
Ao PÚBLICO,
Martins Pereira defende que “um museu romântico deve preservar o espírito da
época”, e que se o programa é encarar o Romantismo como realidade
trans-histórica, então deveria ter-se encontrado outro espaço. Admitindo que o
programa que existia poderia ser melhorado, contesta o radicalismo da solução.
“As coisas parecem mudar da noite para o dia só porque passa pela cabeça de
alguém fazê-lo, e isso incomoda-me, porque estamos a falar de estruturas da
cidade”, diz. E lembra que quando Rui Moreira anunciou a requalificação
concluída em 2018 “a intenção era manter o espírito do Museu Romântico”.
Gaspar Martins
Pereira não é de resto um adepto do museu polinucleado, “que anda a ser
discutido há não sei quantas décadas”, advogando que “o Porto tem dimensão e
carácter para ter um grande museu da cidade”. E lamenta que a concessão do
edifício da Alfândega ao Museu dos Transportes tenha inviabilizado o lugar que
considerava ideal para vir a albergar esse museu.
Já Luís Raposo,
presidente da secção europeia do Conselho Internacional dos Museus (ICOM, na
sigla inglesa), só conhece de fotografias a nova encarnação do museu, mas acha
que a anterior “entrava na categoria das casas-museu”, nas quais o edifício é
“indissociável” do seu conteúdo, “incluindo o mobiliário, a pintura de paredes
e tudo o que constitui o ambiente próprio da casa”. Considera por isso esta
reconfiguração “um erro crasso do ponto de vista museológico” e “um disparate
do ponto de vista da política cultural”, já que, observa, os museus de arte
contemporânea são hoje “uma moda que se repete por todo o mundo” e “o Porto
deve pensar se quer repetir mais do mesmo, ainda por cima quando já dispõe de
tão bons espaços para arte contemporânea, a começar por Serralves.
“A ideia de fazer
dialogar os passados com os presentes é uma aproximação correcta e da qual não
podemos prescindir”, diz o arqueólogo, observando que “também o Classicismo,
como o Romantismo, ressurge em todas as épocas” e faz sentido relê-lo à luz dos
vários presentes. “Mas o problema é quando isso é feito com desrespeito por
esse passado, e em lugares onde existe um adquirido que os torna imagem de
marca do ambiente de uma época”, argumenta.
Nuno Faria mantém
que é neste espaço que faz sentido “trabalhar mais directamente com a história
do Romantismo” e que a opção tomada se baseia “numa visão do que achamos que um
museu deve ser”. E se há quem ache que o projecto “é mais ou menos fiel a uma
ideia de Romantismo no Porto, muito bem, vamos lá discutir isso”. Mas rejeita
acusações de falta de legitimidade. “Isto está a ser discutido há muito tempo,
foi apresentado ao Conselho Municipal de Cultura e ao executivo, não é uma
coisa clandestina nem feita só por um director artístico.”
E também há na
cidade quem aprecia o que tem sido feito no âmbito do projecto do Museu da
Cidade. Manuela Monteiro, da galeria e fórum Mira, em Campanhã, lamenta “a
discussão desabrida e furiosa nas redes sociais”, acha que o trabalho da equipa
do Museu da Cidade está a “tentar trazer a uma dinâmica diferente, com
projectos que são benfazejos porque acordam alguns lugares”, entre os quais
inclui o do antigo Museu do Romantismo, que visitou frequentemente com turmas
escolares e que acha que “estava um bocado congelado” e não emocionava os
alunos.
“Tenho uma
perspectiva optimista e acho que as pessoas que estão a trabalhar nisto são
sérias”, diz. “O que teria sido necessário era explicar melhor o que se está a
fazer antes de sermos informados por um post agressivo nas redes sociais.”
Sem comentários:
Enviar um comentário