terça-feira, 31 de agosto de 2021

Reconfiguração do ex-Museu Romântico do Porto gera polémica e mobiliza petição de protesto

 





MUSEUS

Reconfiguração do ex-Museu Romântico do Porto gera polémica e mobiliza petição de protesto

 

São já mais de 800 os signatários que exigem a resposição da decoração oitocentista do museu da Quinta da Macieirinha. Nuno Faria, director artístico do Museu da Cidade, defende a opção tomada, mas demarca-se do tom “provocatório” de um post da autarquia que terá atiçado as críticas nas redes sociais.

 

Luís Miguel Queirós

31 de Agosto de 2021, 7:20

https://www.publico.pt/2021/08/31/culturaipsilon/noticia/reconfiguracao-exmuseu-romantico-porto-gera-polemica-mobiliza-peticao-protesto-1975772

 

A nova exposição permanente do Museu Romântico, agora rebaptizado Extensão do Romantismo do Museu da Cidade, "despejou" a sua reconhecível decoração oitocentista

 

Agora rebaptizado Extensão do Romantismo do Museu da Cidade, o antigo Museu Romântico era possivelmente o mais visitado dos museus municipais do Porto, o que em boa medida se ficava a dever às muitas turmas do ensino secundário que lá iam ver como era a atmosfera doméstica de uma casa da alta burguesia portuense no período romântico. Seria de espantar, portanto, que uma reconfiguração radical do espaço e do seu conceito, com o esvaziamento de quase todas as peças que integravam a colecção exposta, não causasse polémica, como efectivamente causou, e que foi ainda atiçada pelo registo de um post da autarquia publicado sábado à tarde na página de Facebook da Feira do Livro do Porto, no qual se afirmava: “Se conhecia o anterior Museu Romântico da Macieirinha, prometemos que este novo espaço nada tem a ver com o local que outrora visitou.” 

 

Nuno Faria, director artístico do Museu da Cidade e curador da exposição que inaugurou a nova Extensão do Romantismo — tendo como peça central o Herbário de Júlio Dinis, a mostra inclui reinterpretações de obras da história da pintura e peças de artistas portugueses contemporâneos que estabelecem um diálogo particularmente intenso com o ideário romântico —, defende a opção agora concretizada de cortar radicalmente com a proposta museológica que se mantinha mais ou menos inalterada desde a criação do Museu romântico em 1972, e que evocava a passagem do rei Carlos Alberto da Sardenha, que viveu algum tempo na Quinta da Macieirinha, ao mesmo tempo que recriava os ambientes domésticos da elite burguesa oitocentista.

 

“Não era uma casa-museu, ninguém viveu ali daquela maneira, era uma construção ficcional, a concepção do Estado Novo do que era uma casa burguesa do século XIX”, argumenta Faria em declarações ao PÚBLICO. “Esteve 50 anos assim e as coisas evoluem e passam por transformações”, observa, acrescentando que o projecto actual pretende designadamente dar visibilidade aos escritores, artistas visuais e músicos românticos, sobretudo portuenses. 

 

O responsável do Museu da Cidade demarca-se no entanto da publicação no Facebook, que atribui a alguém que não integra a equipa do museu da Cidade e que considera “ofensiva e provocatória”. Além de ter originado perto de 400 comentários, quase todos de desagrado, o post é também citado numa petição lançada na Internet e que ontem ao final do dia tinha já mais de 800 assinaturas, incluindo figuras como o ex-ministro da Cultura Luís Filipe Castro Mendes, a antiga directora-geral de Serralves, Odete Patrício, ou o historiador Gaspar Martins Pereira.

 

Lançada pela criadora do site Memórias da Casa Antiga, a arquitecta Ana Motta Veiga, também vice-presidente da direcção nacional do Chega, a petição exige “a reposição da decoração interior oitocentista do Museu Romântico da Quinta da Macieirinha no Porto”, afirmando que “provocou espanto e reacção imediata dos portuenses o orgulho com que a Câmara Municipal do Porto anunciou que desfez” a anterior exposição permanente ali instalada. E cita a referida página de Facebook: “O espaço despiu-se dos adereços de casa burguesa oitocentista e vestiu-se de contemporaneidade.” Uma frase que cita quase textualmente o texto de apresentação da Extensão do Romantismo no jornal da Feira do Livro, mas que Nuno Faria diz ter sido retirada do contexto. 

 

A polémica chegou já também à disputa eleitoral autárquica, com a candidatura do social-democrata Vladimiro Feliz a convocar os media para uma conferência de imprensa esta terça-feira, cujo anunciado tema é: “Museu do Romântico: Estão a destruir o conceito deste museu!!!”. 

 

Um acervo em formol?

Vários dos comentários negativos a esta reconfiguração do Museu Romântico que entretanto surgiram nas redes sociais lembram que o espaço sofrera uma remodelação recente, financiada com fundos europeus, e para a qual o cenógrafo Tito Celestino e a equipa técnica da Câmara do Porto desenharam uma solução museográfica que mantinha o ambiente de época que sempre marcou o museu.

 

O museu reabrira em Fevereiro de 2018, após esta intervenção, que Nuno Faria diz ter sido aproveitada, assegurando ainda que as peças agora retiradas da casa “voltarão a ser mostradas”, neste e noutros espaços do Museu da Cidade, ainda que “não da mesma maneira”. É o caso, exemplifica, de uma colecção de têxteis que nunca foi integralmente exposta. 

 

Todas as peças que pertencem ao município “estão devidamente acondicionadas” e o seu inventário deverá ser finalizado em breve, explica o curador. Só algumas peças em depósito têm vindo a ser devolvidas aos seus proprietários ou respectivos herdeiros, um processo, assegura, que já estava em curso quando chegou à equipa do Museu da Cidade. 

 

“Preservar a memória das coisas, dos objectos, dos hábitos, das tradições, não passa necessariamente por encapsulá-las, preservá-los em formol, congelá-las num tempo já passado, já sem vida, já sem corpos, sem respiração”, argumenta Nuno Faria numa entrevista entretanto publicada no site da autarquia. O curador assume uma perspectiva muito crítica da última remodelação, que teria tornado o museu “um lugar que exercia verdadeiro distanciamento social”, já que os alunos das escolas eram confrontados com “uma certa forma de vida (…) da alta burguesia” cuja inacessibilidade era vincada pelo facto de o acesso às salas estar vedado e só as poderem ver de fora. 

 

Nesta sua sua “nova era”, o museu, diz, “trabalhará em largo espectro sobre o Romantismo, ou os romantismos, no plural, quer artísticos, quer literários, quer musicais” e a Extensão do Romantismo será “ainda mais do que um espaço expositivo, um espaço performativo”, com “uma constante programação musical”. 

 

“Mudar da noite para o dia”

Mas esta visão está longe de ser consensual. Um dos signatários da petição, o historiador e professor Gaspar Martins Pereira, acha que “as colecções associadas a uma casa não se devem dispersar, porque ali têm um significado que lhes é dado pelo contexto e noutros museus perdem sentido, são objectos soltos”. 

 

Ao PÚBLICO, Martins Pereira defende que “um museu romântico deve preservar o espírito da época”, e que se o programa é encarar o Romantismo como realidade trans-histórica, então deveria ter-se encontrado outro espaço. Admitindo que o programa que existia poderia ser melhorado, contesta o radicalismo da solução. “As coisas parecem mudar da noite para o dia só porque passa pela cabeça de alguém fazê-lo, e isso incomoda-me, porque estamos a falar de estruturas da cidade”, diz. E lembra que quando Rui Moreira anunciou a requalificação concluída em 2018 “a intenção era manter o espírito do Museu Romântico”. 

 

Gaspar Martins Pereira não é de resto um adepto do museu polinucleado, “que anda a ser discutido há não sei quantas décadas”, advogando que “o Porto tem dimensão e carácter para ter um grande museu da cidade”. E lamenta que a concessão do edifício da Alfândega ao Museu dos Transportes tenha inviabilizado o lugar que considerava ideal para vir a albergar esse museu. 

 

Já Luís Raposo, presidente da secção europeia do Conselho Internacional dos Museus (ICOM, na sigla inglesa), só conhece de fotografias a nova encarnação do museu, mas acha que a anterior “entrava na categoria das casas-museu”, nas quais o edifício é “indissociável” do seu conteúdo, “incluindo o mobiliário, a pintura de paredes e tudo o que constitui o ambiente próprio da casa”. Considera por isso esta reconfiguração “um erro crasso do ponto de vista museológico” e “um disparate do ponto de vista da política cultural”, já que, observa, os museus de arte contemporânea são hoje “uma moda que se repete por todo o mundo” e “o Porto deve pensar se quer repetir mais do mesmo, ainda por cima quando já dispõe de tão bons espaços para arte contemporânea, a começar por Serralves.

 

“A ideia de fazer dialogar os passados com os presentes é uma aproximação correcta e da qual não podemos prescindir”, diz o arqueólogo, observando que “também o Classicismo, como o Romantismo, ressurge em todas as épocas” e faz sentido relê-lo à luz dos vários presentes. “Mas o problema é quando isso é feito com desrespeito por esse passado, e em lugares onde existe um adquirido que os torna imagem de marca do ambiente de uma época”, argumenta.

 

Nuno Faria mantém que é neste espaço que faz sentido “trabalhar mais directamente com a história do Romantismo” e que a opção tomada se baseia “numa visão do que achamos que um museu deve ser”. E se há quem ache que o projecto “é mais ou menos fiel a uma ideia de Romantismo no Porto, muito bem, vamos lá discutir isso”. Mas rejeita acusações de falta de legitimidade. “Isto está a ser discutido há muito tempo, foi apresentado ao Conselho Municipal de Cultura e ao executivo, não é uma coisa clandestina nem feita só por um director artístico.”

 

E também há na cidade quem aprecia o que tem sido feito no âmbito do projecto do Museu da Cidade. Manuela Monteiro, da galeria e fórum Mira, em Campanhã, lamenta “a discussão desabrida e furiosa nas redes sociais”, acha que o trabalho da equipa do Museu da Cidade está a “tentar trazer a uma dinâmica diferente, com projectos que são benfazejos porque acordam alguns lugares”, entre os quais inclui o do antigo Museu do Romantismo, que visitou frequentemente com turmas escolares e que acha que “estava um bocado congelado” e não emocionava os alunos.

 

“Tenho uma perspectiva optimista e acho que as pessoas que estão a trabalhar nisto são sérias”, diz. “O que teria sido necessário era explicar melhor o que se está a fazer antes de sermos informados por um post agressivo nas redes sociais.”




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