EDITORIAL
O egoísmo dos humanos contra a crise climática
Tão dramática como a ameaça do aquecimento global é a
constatação de que a solução para o mitigar vai exigir uma daquelas revoluções
que raramente acontecem sem conflito.
Manuel Carvalho
9 de Agosto de
2021, 21:30
https://www.publico.pt/2021/08/09/sociedade/editorial/egoismo-humanos-crise-climatica-1973586
Fome no Sul de
Madagáscar; aquecimento brutal na costa da América do Norte voltada para o
oceano Pacífico, onde os mexilhões cozeram com o calor; cheias para lá do
registo da memória na Alemanha; incêndios descontrolados na tundra siberiana.
Um breve elenco dos fenómenos da crise climática das últimas semanas basta para
duas constatações terríveis: os impactes do aquecimento global não são um
augúrio vago do futuro; apesar destas evidências, a humanidade continua sem ser
capaz de reagir à maior ameaça à sua sobrevivência pelo menos depois da
invenção da escrita. O último relatório do Painel Intergovernamental para as
Alterações Climáticas (IPCC) dá-nos conta dessa impotência e dos seus custos.
A crise climática
está nos discursos políticos e entrou nas decisões das empresas mais
responsáveis. Nenhuma projecção inteligente do futuro próximo omite as suas
consequências. Só governos liderados por lunáticos negacionistas e
irresponsáveis, como Jair Bolsonaro, recusam olhar o problema de frente e
procurar caminhos para chegar depressa à neutralidade carbónica que nos separa
da catástrofe. Mas, ainda assim, apesar de tantas palavras, de tanta urgência,
de tanta certeza, a humanidade continua inconscientemente à espera que algo de
milagroso aconteça – que o problema se resolva por si; que tudo não passe de um
momento; que o planeta se regenere como em outras idades geológicas.
A paralisia,
porém, não radica apenas numa espécie de fé. O que a justifica é também a noção
de que a resposta necessária contra a catástrofe exige dos políticos, dos
gestores e de todos nós uma mudança de hábitos que pode estar para lá do que é
possível. É preciso falar sem meias-palavras: o recuo nas emissões de CO2 ou de
metano implica um recuo civilizacional. Implica que se consuma menos carne, que
se viaje menos, que se comprem menos televisões ou computadores. Implica uma
travagem no modelo de economia e de sociedade voltado para a riqueza e o
crescimento contínuo. Ou, por outras palavras, requer a austeridade e a
frugalidade que as sociedades ocidentais apenas aceitaram na sequência de
pandemias, guerras ou cataclismos naturais.
Tão dramática
como a ameaça do aquecimento global é, por isso, a constatação de que a solução
para o mitigar vai exigir uma daquelas revoluções que raramente acontecem sem
conflito. Deixe-se o romantismo dos que acreditam que o desafio depende de um
acto de vontade e comece-se a encarar a realidade crua. Nada no futuro será
fácil – mesmo que a escolha seja óbvia. Ou a humanidade é capaz de temperar o
egoísmo inerente à sua condição, que serviu de mola ao progresso, e assume o
desafio de gerir a crise, ou terá de enfrentar os seus custos num caos que
se adivinha aterrador.
Sem comentários:
Enviar um comentário