domingo, 1 de agosto de 2021

Reconstruir melhor

 



ANÁLISE

Reconstruir melhor

 

Reconstruir melhor passa naturalmente por melhorar a performance da economia. Mas isso não chega. Tem de passar também por uma melhor redistribuição da riqueza, que proteja melhor os mais fracos, que crie melhores oportunidades para todos.

 

Teresa de Sousa

1 de Agosto de 2021, 6:15

https://www.publico.pt/2021/08/01/mundo/analise/reconstruir-melhor-1972603

 

1. Se esta pandemia que nos atingiu a todos, independentemente no lugar onde nascemos e vivemos, pode ter tido alguma coisa de bom foi ter sublinhado a nossa comum condição humana. É verdade que o sofrimento que causou não foi – nem é – igual no mundo inteiro. É mais fácil suportá-la para quem vive em países desenvolvidos, que dispõem de toda a espécie de recursos para minimizar os seus efeitos devastadores na vida e na saúde ou na economia. A Economist lembrava que, se excluirmos a China, os países que não são ricos representam 68 por cento da população mundial, mas 85 por cento das mortes por covid-19. Nesses países, apenas 5 por cento das pessoas com mais de 12 anos estão vacinadas, para valores incomparavelmente mais altos nos Estados Unidos e na Europa.

 

Há um ano, chegámos a acreditar que o pior já tinha passado. Não foi assim. Todos os dias, a divulgação de mais um estudo científico vem demonstrar que estamos muito longe de ter certezas sobre natureza do vírus, a sua capacidade de adaptação ou os seus efeitos de longo prazo sobre a saúde das pessoas infectadas. Todos os dias, surgem novas previsões sobre as consequências económicas e sociais da pandemia nas várias regiões do mundo. As crianças resistiram melhor do que ninguém ao vírus, mas não às suas consequências sociais. No final do ano passado, mais 142 milhões de crianças tinham caído abaixo do limiar da pobreza. Com as escolas fechadas, as famílias empobrecidas, os frágeis sistemas de saúde levados ao limite, o seu futuro ficou ainda mais comprometido. Não faltam previsões a anunciar que a pandemia vai aumentar o fosso entre os países mais desenvolvidos e os outros. Desde o início deste século, as economias emergentes estavam a aproximar-se progressivamente das economias desenvolvidas. Diz a mesma revista britânica que a pandemia travou esse movimento e que o mais provável é que voltem a ficar para trás. 

 

2. Citando Edgar Morin, reflectindo sobre a pandemia ainda em Abril do ano passado, estamos a viver um “vendaval de incertezas” que têm um único mérito: abrir a perspectiva de mudança para um mundo mais equilibrado, mais justo, mais solidário. Morin nunca desistiu de imaginar esse mundo, mesmo que com os pés perfeitamente assentes na terra.  É por isso que não está muito optimista.

 

Noutra entrevista, em Dezembro de 2020, a propósito do seu centésimo aniversário – é verdade, o filósofo e sociólogo francês acaba de completar um século, podendo dizer-se com justiça que já passou por tudo –, Morin dizia que, antes da pandemia, vivíamos uma “conjuntura regressiva”, que definia como “crise da democracia, novas perseguições das minorias religiosas, hegemonia do lucro, devastações económicas que suscitaram revoltas populares – quase todas reprimidas –, domínio de um pensamento assente no cálculo e na hiperespecialização, que torna impossível conceber e compreender a complexidade dos problemas humanos, tanto individuais como nacionais e planetários”. Podemos não nos identificar totalmente com esta descrição. Mas identificamo-nos com o que diz a seguir. As esperanças de um grande despertar ecológico, de uma reforma profunda da globalização, estavam em recuo em toda a parte. Há uma pequena possibilidade de reverter esta tendência.

 

3. Vem tudo isto a propósito do que está ao nosso alcance fazer no universo restrito da nossa comunidade nacional. Em primeiro lugar, podemos recordar o sofrimento de tantos que, entre nós, passaram pela perda e pela doença. Aproximamo-nos de um milhão de casos e de 18 mil vítimas mortais.

 

Um grupo de cidadãos das mais variadas proveniências sociais e políticas resolveu lançar uma iniciativa, de que já falei há uma semana, para que colectivamente possamos fazer o luto do sofrimento por que passamos desde Março de 2020. São as Jornadas da Memória, que propõem para os dias 22, 23 e 24 de Outubro. Contam com a adesão do Presidente da República e do Presidente da Assembleia da República. A Associação Nacional das Freguesias e a Associação Portuguesas de Bombeiros Voluntários já se associaram à iniciativa, que não é muito mais do que propor uma data para que cada um de nós, cada associação, freguesia, município, escola ou instituição, organize a sua própria forma de lembrar as vítimas da pandemia.

 

Seria pouco fazer o luto se não conseguíssemos juntar-lhe alguma esperança. É também este o propósito desta iniciativa: pensar o que podemos aprender desta tragédia e tentar - pelo menos, tentar – construir um país mais justo, mais solidário, menos desigual, mais desenvolvido.

 

4. Se olharmos para os debates que a pandemia desencadeou na maioria das democracias, é isso que está a acontecer em todos os quadrantes políticos, nas academias, na grande imprensa. A ideia é simples: o que é que aprendemos com esta destruição humana, social e económica e como podemos reconstruir melhor. Os três “B” de Joe Biden: “Build Back Better”. Não numa perspectiva fechada, mas olhando também para o resto do mundo, onde os recursos para a reconstrução são menos abundantes. Lembrando até que ponto a pandemia revelou a nossa comum humanidade.

 

Os eixos desse debate podem servir-nos de orientação. Se o capitalismo tem sido o sistema económico mais resistente e mais eficaz ao longo dos tempos, isso deve-se, em primeiro lugar, à sua enorme capacidade de transformação. Só desde os anos 1930, primeiro nos EUA e depois na Europa, vivemos dois grandes períodos em que o sistema capitalista revelou uma grande capacidade de renovação. O primeiro nasceu com o New Deal rooseveltiano, depois da Grande Depressão. O laissez-faire dos mercados deu lugar a uma forte intervenção do Estado para garantir mais protecção dos cidadãos e maior justiça social. Na Europa, o keynesianismo foi a tradução desse desiderato, traduzindo-se, depois da guerra, na criação dos poderosos Estados Sociais europeus. A estagnação económica dos anos 1970 e 1980, com os efeitos negativos do excesso de intervenção do Estado nas economias e do poder excessivo dos sindicatos em alguns países, levou à revolução conservadora e liberal de Thatcher e de Reagan, abrindo uma nova era em que os mercados voltaram progressivamente a reinar e se começou a pôr em causa alguns excessos do Estado Social. Foi a era do neoliberalismo, ao qual a crise financeira e a Grande Recessão, no início da década passada, deram a primeira machadada, muito longe, no entanto, de ser fatal. Convém lembrar que foram as garantias do Estado Social e a intervenção inicial dos governos que impediram que a Grande Recessão se transformasse numa Grande Depressão. Provavelmente, a crise pandémica, a maior desde a II Guerra, abrirá um novo período cujos contornos ainda não conseguimos antever, mas cujo resultado tem de ser no sentido uma sociedade menos desigual e mais solidária. Não é nada de novo nem de extraordinário.

 

5. A pandemia revelou coisas que muitas vezes preferimos ignorar. Por exemplo, como o trabalho invisível e pouco valorizado de milhares e milhares de pessoas foi fundamental para que a sociedade continuasse a funcionar durante os períodos de confinamento. A vida das famílias foi condicionada pelas condições da respectiva habitação. É muito diferente trabalhar de casa e acompanhar as aulas virtuais dos filhos quando se tem espaço ou não se tem. É verdade que as medidas tomadas pelo Governo para apoiar as famílias, as empresas e o emprego foram decisivas para minorar os efeitos mais dramáticos da crise. Mas isso não escondeu uma realidade que é demasiado injusta e demasiado desigual para demasiadas pessoas.

 

Reconstruir melhor passa naturalmente por melhorar a performance da economia. Mas isso não chega. Tem de passar também por uma melhor redistribuição da riqueza, que proteja melhor os mais fracos, que crie melhores oportunidades para todos. A pandemia também sublinhou a traço grosso quais são os dois instrumentos fundamentais para garantir menos desigualdade e mais oportunidades – o SNS e a escola pública. Não há um só modelo de organização para estes dois pilares sociais, mas que o direito à saúde tem de ser universal e que uma boa educação pública tem de garantir que cada um encontre a melhor forma de realizar as suas capacidades e os seus desejos, esta pandemia mostrou-o para lá de qualquer dúvida. O Estado Social fez de novo a sua prova de vida. Cabe-nos a nós garantir que a sociedade em que queremos continuar a viver seja melhor para todos do que aquela que tínhamos até à pandemia. Como diz também Morin, mais humana e mais humanista.

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