quarta-feira, 28 de julho de 2021

Batalha pelo passado

 



OPINIÃO

Batalha pelo passado

 

Esta batalha pela memória histórica é fastidiosa. Mas é também, num país como Portugal, provavelmente inevitável.

 

Maria João Marques

28 de Julho de 2021, 0:10

https://www.publico.pt/2021/07/28/opiniao/opiniao/batalha-passado-1972063

 

A morte de Otelo Saraiva de Carvalho foi só o último episódio dessa característica do mundo das primeiras décadas do século XXI: fazer a luta política e ideológica no presente usando o passado. Já se notava, por cá, com as discussões sobre o passado colonial e os Descobrimentos, bem como o papel de Portugal no tráfico de escravos transatlântico. Em boa verdade, é sintoma de uma sociedade que vê os seus problemas mais imediatos resolvidos e se sente com níveis de bem-estar consideráveis – a ponto de julgar fundamental discutir eventos de há muitas décadas ou séculos. Uma comunidade que vê em perigo o sustento material, sem acesso a bens básicos (alimentares, de educação ou de cuidados de saúde) e com as perspetivas de futuro comprometidas para si e para os seus filhos, não dedica intermináveis entradas nas redes sociais e colunas de opinião a temas incontornáveis como uns arbustos nuns jardins de Belém.

 

Assim – como se não estivéssemos numa pandemia e numa crise económica que terá a recuperação mais comprometida do que pensávamos inicialmente –, temos com regularidade tribos opostas que se guerreiam. Uma querendo glorificar os Descobrimentos, tornando-os no acontecimento dourado e impoluto que nunca foi. Outra pretendendo reduzir os Descobrimentos ao crime da escravatura e do comércio de escravos – e, sobretudo, à necessidade contínua de expiação desse pecado, como se cada um dos portugueses tivesse em 2021 escondido na dispensa um escravo trazido de outras paragens em barcos de madeira. Não há capacidade para ver um tema na globalidade. Não se pode reconhecer o esforço pioneiro e a valentia dos navegadores portugueses, louvar-se o encontro de culturas que, de facto, lançou uma época de globalização e mudou o mundo e, ao mesmo tempo, reconhecer o crime contra a humanidade que foi o tráfico de escravos e os malefícios do colonialismo (sobretudo do colonialismo serôdio como o português). Não, a argumentação tem de ser polarizada, tribalizada, a preto e branco, o meu lado contra o teu – em suma, infantilizada.

 

Com o 25 de abril e a ditadura do Estado Novo ocorre batalha semelhante. A reabilitação do Estado Novo anda a passear por aí, em sinergia com o crescimento da Nova Direita – que não está só no Chega. Simultaneamente, enquanto mostra conviver sem sobressaltos com os cantos mais negros dos quase cinquenta anos de ditadura, esta Nova Direita escandaliza-se tremendamente com os (reconhecidos) excessos do PREC como se fossem esses, e só, os crimes que importa iluminar. A esquerda, pelo seu lado, na senda da tal infantilização da discussão pública, faz por endeusar as personalidades que resistiram ao Estado Novo e se arriscaram no 25 de abril. Tentam impor uma verdade oficial santificadora até das personagens com falhas impossíveis de ignorar – como Otelo Saraiva de Carvalho.

 

O estratega político-militar e "um símbolo" da Revolução dos Cravos. O militar que ajudou a derrubar a ditadura e o homem julgado, condenado e amnistiado pelo envolvimento na rede terrorista das FP25. Otelo Saraiva de Carvalho morreu este domingo, em Lisboa, aos 84 anos.

 

Esta batalha pela memória histórica é fastidiosa. Mas, provavelmente, inevitável. Na verdade, o Estado Novo (com PIDE e guerra colonial à mistura) foi um período traumático da história portuguesa e nunca devidamente purgado e exorcizado. Mais: não existiu – ou, pelo menos, não conheço – nenhuma reflexão de algum relevante ator do Estado Novo onde expressasse somente pesar pelo envolvimento no regime e pelos seus atos em concreto. Os testemunhos que conheço destinam-se sobretudo a lavar a imagem, explicar condicionantes, contextualizar, evidenciar os eventuais efeitos positivos da sua atuação, alijar responsabilidades.

 

Há uns anos, a estudar o período da Revolução Cultural chinesa, dei conta de peculiares evocações que se fizeram desse tempo também (muito) traumático. São conhecidos os livros de memórias escritos por mulheres (curiosamente quase só mulheres) expatriadas que testemunharam como viveram o período. Cisnes Selvagens, de Jung Chang, é o mais famoso; mas são mais interessantes outros, como Spider Eaters, de Rae Yang (agora professora numa universidade americana). Yang, vinda da aristocracia do Partido Comunista Chinês e guarda vermelho da Revolução Cultural, candidamente conta a sua participação no assassinato de um exibicionista e alegado violador (ninguém sabia, na verdade) em Cantão, o espancamento de uma colega com problemas mentais nascida numa família capitalista ou as invasões das habitações dos inimigos da revolução e de Mao (que eram todos os que calhavam). Claro que Rae Yang também foi ela própria vítima da Revolução Cultural noutros momentos, mas não foge à responsabilidade (e à fealdade) do que fez.

 

A partir de 2010 (trinta e quatro anos após o fim desta quase guerra civil), e até o PCC suprimir estas veleidades introspetivas poucos anos depois, vários ex guardas vermelhos da Revolução Cultural (então estudantes) pediram perdão publicamente às suas vítimas através da comunicação social chinesa. Um site organizou mesmo um concurso para estes pedidos de perdão (mas o PCC reparou e terminou a brincadeira antes de começar). Os pedidos de perdão públicos vieram até da elite do PCC, como o do filho do mítico general Chen Yi.

 

É certo que Portugal é um país pouco amigável para assunções públicas de erros. Para confissões de cumplicidade. Não temos a casualidade de outros povos a lidar com falhanços – que noutros países são ensinamentos e por cá vergonhas a nunca mais mencionar. Por outro lado, curiosamente para país maioritariamente católico, preferimos despejar desprezo em cima de quem tem a coragem de confessar erros do que perdoar. Donde, não temos nenhum testemunho de um inspetor da PIDE que se arrependeu e conta o que fez. Os burocratas cúmplices continuaram como se nada fosse. Os políticos tiveram um exílio descansado ou reciclaram-se sem demasiados problemas de consciência. Aparentemente, toda a gente julga que agiu bem e que esteve no seu melhor.

 

Pelo tempo que passou, já não teremos testemunhos confessionais destes. Teriam talvez permitido uma discussão menos teórica e tribal, desde logo por mostrar as complexidades (e a humanidade falível) de quem serviu o Estado Novo. E a possibilidade de redenção. Também é provável que não tenhamos os filhos ou os netos contando histórias de pais e avós complexos e com passados longe de perfeitos, como sucedeu com vários descendentes de nazis que assumiram a história familiar. Neste país não se faz isso.

 

Ficamos, então, com as batalhas tribais sobre o passado. Que prometem acicatar-se por qualquer evento e sem pacificação útil para o presente.

 

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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