Polónia:
não é preciso ser muçulmano para ser vítima de islamofobia
ANA CRISTINA PEREIRA
08/05/2016 - 09:13
Apesar
de serem poucos, portugueses que trabalham ou estudam na Polónia não
escapam à intolerância que afecta sobretudo os migrantes oriundos
de África ou do Médio Oriente. Recolhemos alguns testemunhos.
João Paulo Presa já
nem liga. Ainda esta semana, ia a caminhar, sozinho, numa movimentada
rua de Lodz, cidade média do centro da Polónia e, ao atravessar a
rua, passou por um grupo de rapazes que se uniu num coro: “white
power” (poder branco), “Polska dla polakow” — “Polónia
para os polacos.” Ignorou. Seguiu o seu caminho.
Não quer alarmismo.
Não vive “um clima de terror”. Gosta de morar naquele país, que
o acolhe desde 2009. Trabalha numa multinacional, no sector de
contabilidade e finanças, e até convive “mais com polacos do que
com portugueses”, mas os insultos de teor racista ou xenófobo
fazem parte do seu dia-a-dia. Já lhe aconteceu, várias vezes, ir
com uma rapariga e ouvir alguém perguntar-lhe: “Como tem coragem
de andar com um preto sujo?”
Apesar de, no mês
passado, notícias darem conta de um suposto ataque racista a um
estudante português, esta não é uma reacção específica contra
portugueses, cuja presença, quase nula até à entrada da Polónia
na União Europeia, em 2004, permanece insignificante. Há 1661
registados na secção consular de Portugal em Varsóvia (muitos
quadros superiores integrados em grandes empresas) e cerca de mil
estudantes a fazer intercâmbio (neste momento, estão 956, segundo a
Agência Nacional Erasmus+ Educação e Formação). É um sintoma de
uma intolerância que afecta mais migrantes oriundos de África ou do
Médio Oriente, mas pode atingir até polacos com fisionomia
diferente da estereotipada.
“Tenho colegas
portugueses, brancos, que por usarem barba são confundidos com
árabes e insultados”, diz João Paulo Presa, que mais parece o
músico norte-americano Lenny Kravitz.
Estava a jantar. O
restaurante estava vazio. Um grupo de polacos sentou-se à mesa
comigo. Cuspiram no meu prato.
José Carvalho
Pereira
Aumentam os crimes
de ódio
De acordo com um
inquérito feito em 2013 pelo Centro de Investigação sobre
Preconceito, da Universidade de Varsóvia, 69% dos polacos não
queriam não brancos a viver no país. Desde então, o ambiente
piorou. E isso não se nota apenas nos protestos contra o acolhimento
de refugiados, que têm levado milhares de pessoas a desfilar pelas
ruas de diversas cidades da Polónia.
Reflecte-se na
estatística criminal. “A Procuradoria-Geral da República registou
835 crimes de ódio em 2013. Em 2015, 1548. As vítimas são,
sobretudo, pessoas de etnia cigana (236), judeus (208), muçulmanos
(192) e negros (166). Os muçulmanos e os negros são muito raros na
Polónia, pelos que estes números são surpreendentemente altos”,
aponta Michal Bilewicz, membro daquele centro de investigação, numa
entrevista por e-mail.
Que se passa? A
economia polaca tem crescido a um ritmo superior à média da União,
mas nem toda a gente tem tirado proveito do “milagre económico”.
“As pessoas sentem que a sua situação não está a melhorar tanto
quanto esperavam e procuram bodes expiatórios”, diz Bilewicz. “Têm
medo de ter de partilhar recursos materiais com migrantes muçulmanos.
E esse medo mistura-se com o sentimento de superioridade étnica e
com a retórica islamofóbica presente nos media (particularmente
online) e no discurso político.”
Correu mundo a capa
da revista wSieci com uma imagem de uma mulher branca, vestida com a
bandeira da UE, agarrada por mãos negras. “A violação islâmica
da Europa”, lia-se, em letras carregadas. E o discurso de ódio
propagou-se de tal forma na Internet, que o Gazeta Wyborcza, um
importante jornal nacional, decidiu impedir comentários a notícias
sobre refugiados.
A Polónia é um
país homogéneo. “O preconceito é sempre maior nas áreas
etnicamente homogéneas”, avisa Bilewicz. “As pessoas não têm
oportunidade de ter, por exemplo, vizinhos ou colegas de escola de
outras etnias.” São mais permeáveis ao discurso de ódio.
Não vivi situações
com gravidade, mas tive algumas situações ridículas como cidadãos
polacos benzerem-se ao perceberem que era estrangeiro, por estar a
falar outra língua, como se estivessem a proteger-se de algo mau.
Pedro Bento
Não é só a
extrema-direita. “Os políticos de quase todos os partidos estão a
servir-se da islamofobia para atrair eleitores”, avalia Bilewicz.
Exemplo flagrante é Jaroslaw Kaczynski, líder do partido Lei e
Justiça, conservador, nacionalista, agora no poder. “Afirmou que
os muçulmanos são fonte de doenças e parasitas. Com isso,
alimentou o medo e levantou dúvidas sobre as intenções do Governo
anterior, que concordara em acolher refugiados.”
Os jovens não estão
imunes. “A nossa investigação sobre as eleições de 2015 mostra
que o voto jovem (que incidiu particularmente em três partidos de
direita) foi motivado pelo medo de muçulmanos”, sublinha. E, no
seu entender, isto tem muito a ver com a “epidemia de discurso de
ódio” na Net.
“Estás na
Polónia, falas polaco”
O PÚBLICO procurou
nos últimos dias, entre portugueses, testemunhos dessa intolerância.
Dezenas de e-mails foram chegando em resposta aos apelos lançados
via correio interno, via departamentos de mobilidade de várias
faculdades da Universidade do Porto e via grupo do Facebook
“Comunidade Portuguesa na Polónia”.
Houve quem
escrevesse só para manifestar desagrado por se estar a prestar
atenção a este assunto, até porque a intolerância, em particular
a islamofobia, tem crescido em toda a Europa. E até quem se
esforçasse para desculpar reacções negativas, argumentando, por
exemplo, que alguns estudantes Erasmus exageram no consumo de bebidas
alcoólicas e se tornam histriónicos. Houve quem escrevesse para
dizer que nunca se sentiu discriminado e o quanto aprecia a vida na
Polónia. E quem tivesse escrito para partilhar desconforto ou
episódios concretos, amiúde pedindo salvaguarda da identidade, não
vá algum extremista identificar o autor e exercer represálias.
O conhecimento da
língua pode fazer diferença. “Por vezes sentimos que não
cooperam muito connosco”, disse, por exemplo, Marco Cerqueira, 27
anos, especialista em novas tecnologias. “Não vivi situações com
gravidade, mas tive algumas situações ridículas como cidadãos
polacos benzerem-se ao perceberem que era estrangeiro, por estar a
falar outra língua, como se estivessem a proteger-se de algo mau”,
contou Pedro Bento, aluno do mestrado na Faculdade de Belas Artes da
Universidade do Porto, que já este ano lectivo fez um estágio em
Cracóvia.
Estava em Cracóvia,
numa viagem organizada pela faculdade, quando, na principal praça da
cidade, surgiu uma manifestação nacionalista. A baixa turística
encheu-se de skinheads. Como o nosso grupo era constituído por
muitos alunos turcos, os professores que estavam connosco levaram-nos
para o hotel.
Diogo Moreira
A intolerância não
é sentida de igual modo em toda a parte. “Em Portugal temos o
litoral e o interior, na Polónia temos os grandes centros e as
cidades periféricas. As mentalidades nas cidades periféricas, como
as do interior, são muito mais retrógradas”, comentou Gustavo
Galos, 28 anos, analista financeiro, que já viveu em Lisboa, em
Évora, em Cracóvia e agora vive em Lodz e não sofreu qualquer
ataque “para além do habitual: ‘Estás na Polónia, falas
polaco’”.
Duas vezes atacado
José Carvalho
Pereira, um gestor de projectos de 33 anos, sente-se bem em Varsóvia,
onde mora desde 2010. “É possível que as pessoas possam ter algum
desconforto ao partilhar o metro comigo caso ande um pouco mal
vestido, mas será tudo. No meu ponto de vista, as pessoas de
Varsóvia aprenderam a viver com estrangeiros e, em geral, tratam os
outros por igual.”
O mesmo não diz de
Bialystok, onde fez Erasmus no ano lectivo 2006-2007 e aonde, a certa
altura da sua vida, regressava com uma frequência quase semanal. Por
duas vezes foi atacado. O pior aconteceu-lhe há dois anos. “Estava
a jantar. O restaurante estava vazio. Um grupo de polacos sentou-se à
mesa comigo. Cuspiram no meu prato. O que estava sentado ao meu lado
começou a cabecear-me e a dar-me socos. Isto estava a acontecer com
o staff do restaurante a olhar, sem fazer nada.”
Quando conseguiu
fugir, correu para o balcão, em busca de protecção. “Pedi à
empregada para chamar a polícia, pedido que me foi rejeitado. Pedi
para me chamarem um táxi, pedido que também me foi rejeitado.
Chamei o táxi e, até o táxi chegar, fiquei ao pé do balcão, pois
tinha receio que a situação piorasse lá fora.”
Ao andar na rua, não
me sentia bem-vindo.
André Morais
Incitado a procurar
um porquê para aquele ataque, escreveu: “A fisionomia/cor da pele
creio que é um motivo muito forte. Eu não tenho pele escura, até
porque nos últimos anos não tenho ido à praia, mas não é tão
pálida como a dos polacos, é ligeiramente mais escura. A cor dos
cabelos (castanho muito escuro) e dos olhos (castanhos) é muito
diferente. E a fisionomia também é claramente diferente da deles.”
Bialystok é um dos
pontos negros. Não é inusitado a minoria não-eslava, que
representa menos de 1% da população, sofrer ataques. Membros da
extrema-direita pintaram suásticas pela cidade, inclusive em sítios
históricos judeus. Há pouco, a universidade recomendou aos
estudantes estrangeiros que não saíssem enquanto decorria um evento
nacionalista.
Os ataques, explica
Bilewicz, são perpetrados, na maior parte das vezes, por “jovens
inspirados pelos movimentos de extrema-direita e pela subcultura do
futebol”. E a sociedade nem sempre reage. “Os protestos
antifascistas são muito menos numerosas do que eram há 5 ou 10
anos. Não temos um movimento antifascista forte e numeroso como tem,
por exemplo, a Alemanha.”
Tomar precauções
As autoridades
conhecem os momentos de maior risco. E a informação passa. No dia
11 de Novembro de 2015, Dia da Independência, os professores pediram
cuidado aos estudantes estrangeiros como Cristiana Santos, estudante
de Línguas e Relações Internacionais da Universidade do Porto, que
fez Erasmus em Varsóvia. A rapariga, de 19 anos, não saiu de casa.
Não é por acaso
que a Polónia é o segundo mais popular destino de Erasmus dos
portugueses. A experiência pode ser muito positiva. O tempo pode
esgotar-se sem qualquer sobressalto. Diogo Moreira, estudante
Ciências da Comunicação, fez Erasmus em Poznan este ano e só uma
vez não se sentiu seguro. “Estava em Cracóvia, numa viagem
organizada pela faculdade, quando, na principal praça da cidade,
surgiu uma manifestação nacionalista. A baixa turística encheu-se
rapidamente de skinheads e very lights vermelhos, o que tornou a
situação bastante intimidatória. Como o nosso grupo era
constituído por muitos alunos turcos, os professores que estavam
connosco levaram-nos para o hotel onde estávamos alojados.”
Nas últimas décadas
temos tido ‘anti-semitismo sem judeus’ e agora temos ‘islamofobia
sem muçulmanos’.
Michal Bilewicz
A aparência conta
mesmo. Que o diga, por exemplo, André Morais, estudante de Design da
Imagem, de 26 anos, que fez Erasmus em Lodz. Usa barba e cabelo
comprido. “Ao andar na rua, não me sentia bem-vindo.” Entre
Setembro e Fevereiro, viu várias manifestações, anunciadas como
“anti-islamização da Europa, em que se acabava por defender a
saída da Polónia da União Europeia e a saída dos imigrantes da
Polónia”. Participou em contra-manifestações, muito mais
pequenas. A certa altura, ele e outros estrangeiros atiraram-lhes
pela janela balões coloridos com mensagens como: “Mesmo assim,
gostamos de vocês.”
Bilewicz teme que
tudo se possa agravar. O Governo acaba de anunciar o fim do Conselho
para a Prevenção da Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas
Conexas de Intolerância, de que ele era membro.
“Dedicámos muito
tempo pro bono a esse serviço público e agora vemos tudo ser
destruído por uma decisão da nova primeira-ministra”, Beata
Szydlo, lamenta. “Isto é demonstrativo da actual política do
governo. Jaroslaw Kaczynski já disse abertamente que não vai apoiar
qualquer forma de punição legal do discurso do ódio. Isso
significa, basicamente, que a Polónia não vai acatar as
recomendações políticas do Conselho da Europa e das Nações
Unidas, que tanto apelam a que se proteja as minorias do discurso de
ódio.”
Lembra-lhe a
Hungria. “Lá os políticos também se servem de retórica
anti-imigrantes e os meios de comunicação social também estão a
difundir informações sobre violência a envolver minorias. A única
diferença é que a Hungria é um país de trânsito de migrantes do
Oriente Médio para a Alemanha e para a Europa do norte e ocidental.
A Polónia não é.”
A Europa partiu-se
entre os que aceitam e os que não aceitam acolher mais refugiados e
já há quem diga que os muçulmanos são os novos judeus. “O
preconceito anti-semita permanece embora as comunidades judaicas
sejam muito pequenas”, salienta. Na Polónia são 10 mil numa
população de 36 milhões. Depois da Segunda Guerra Mundial, saíram
em massa. Na sequência das perseguições anti-semitas de 1968,
saíram muitos outros. “Nas últimas décadas temos tido
‘anti-semitismo sem judeus’ e agora temos ‘islamofobia sem
muçulmanos’”, remata.
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