A
reversão mais valiosa para o futuro: acabar com o Acordo Ortográfico
JOSÉ PACHECO
PEREIRA 07/05/2016 - PÚBLICO
Limbo
por limbo, mais vale corrigir o mais depressa possível aquele que é
de centenas de milhares, em vez de forçar o de milhões.
As declarações do
Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa sobre o Acordo
Ortográfico são uma das últimas janelas de oportunidade para que
se feche em Portugal toda uma história de medíocre engenharia da
língua, sem nenhuma vantagem nem mérito, cuja manutenção, por
inércia e quase só por inércia, tornará Portugal e a cultura
portuguesa mais débeis, menos influentes e mais isolados. Se há
“reversão” que se exige do governo é a do Acordo Ortográfico,
obra de políticas de facilidade, destinadas a resolver problemas
complexos com um truque de engenharia política imposto por
governantes cuja relação com a língua e a cultura portuguesa é,
para não dizer outra coisa, de bastante indiferença. As
divergências de ortografia com o Brasil, o grande argumento para o
Acordo, têm a ver com coisas muito diferentes de uma norma. Têm a
ver com a pujança do português do Brasil, empurrado por uma
sociedade dinâmica e aberta a muitas outras línguas e influências,
que nunca conseguiremos domar com um Acordo deste tipo. Bem pelo
contrário, é bom para o português como língua que ele tenha como
locomotiva o Brasil, que nos enriquece pela sua diferença, enquanto
que o português de Portugal pode permanecer o cânone cultural da
língua, fiel às suas origens latinas, e transportando uma história
que vale muito mais para a cultura brasileira do que uma variante
mortiça da ortografia abrasileirada, escrita a contragosto e sem
chama. O português é o português e é uma enorme vantagem
cultural, mesmo no mercado competitivo da cultura, que ele permaneça
na sua ortografia fiel às suas origens latinas. O Acordo é mais um
dos aspectos do desprezo pela cultura das humanidades que
caracterizou estes últimos anos. De Santana Lopes e Sócrates a
Passos Coelho e, se não fizer nada, a Costa.
O Acordo Ortográfico
é um monumento de ambiguidade às relações entre Portugal e os
países onde se fala a língua portuguesa, que ninguém desejou nem
pediu e que acabou por servir para gerar enormes efeitos perversos,
que se arriscam a cair apenas sobre Portugal, visto que no Brasil, em
Angola, Moçambique, Cabo Verde, Timor, o caminho seguido é deixar o
Acordo apenas na sua condição de papel. Para fazer esta “reversão”
basta apenas tornar a sua aplicação facultativa, e logo a seguir a
força colectiva da recusa ao Acordo isolará a minoria que o
defende. O Acordo só existe em Portugal pelo absurdo de termos
governos que o têm querido impor isoladamente a nível nacional, o
que é o melhor exemplo do seu falhanço como acordo internacional,
que não obriga ninguém visto que vários signatários resolveram
não o aplicar, o que o torna caduco.
Acabar com o Acordo
já tem custos, custos que de há muito foram anunciados e previstos
e que poderiam e deveriam ter sido evitados. Os custos são de duas
ordens: uma, a mais grave, o facto de uma geração de crianças e
jovens ter sido educada com as regras do novo acordo, processo que se
agravou pelo facto de os seus defensores terem estado a criar à
pressa um facto consumado, para tornar o Acordo inevitável e não se
poder andar para trás. Como o Acordo nunca seria implementado pelo
seu mérito nas escolas e no Estado, onde muito pouca gente o aceita
como seu, forçou-se a sua aplicação manu militari, com ameaças e
sanções mesmo que de legalidade muito contestável. Admito que isso
signifique que para uma faixa etária de portugueses a sua maneira de
escrever fique numa espécie de limbo, mas estão longe de ser a
maioria dos portugueses, jovens adultos e mais velhos, que nunca
seguiram as regras da nova ortografia. Por isso, limbo por limbo,
mais vale corrigir o mais depressa possível aquele que é de
centenas de milhares, em vez de forçar o de milhões. É o custo
desta operação de engenharia da língua pago pelos mais novos? É.
Mas iriam crescer num mundo em que a escrita de qualidade, os jornais
de referência, o português de todos os países africanos de língua
portuguesa, seria o da ortografia anterior ao Acordo. Já lá vamos
ao Brasil.
O segundo custo, o
de alterar de novo os manuais escolares e outros documentos em que se
forçou a aplicação do Acordo, também existe, mas os prejuízos a
médio e longo prazo do Acordo são muito maiores do que o custo
dessas alterações a curto prazo. O Estado pode ir corrigindo os
seus papéis pouco a pouco, e alguma forma de indemnização pode ser
dada às editoras de livros escolares. Já penso que as editoras que
se apressaram a correr a fazer livros com as regras do Acordo,
enquanto outras mantinham a antiga ortografia, ou porque se opunham
ao Acordo ou porque os seus autores não aceitavam as novas regras –
o que foi a regra – não devem receber qualquer indemnização.
Estavam prevenidas das muito sérias objecções que existiam quanto
à legalidade do Acordo, e aceitaram o risco.
Mas se se acabar com
o Acordo o mais depressa possível – e essa urgência é real para
evitar mais estragos do que os que já foram feitos – não se pode
ignorar os seus custos, não se pode deixar de dizer com clareza que
os custos da sua manutenção são muito maiores e particularmente
gravosos para um bem intangível, o da influência do português como
língua nacional de cultura e história. O que acontecerá, sem nunca
se resolver a divergência com o Brasil, será a divergência cada
vez mais acentuada entre o português que se escreve em Portugal e o
que se escreve nos PALOP. Com Angola, Moçambique, Cabo Verde sem
aplicar o novo Acordo, com o Brasil a escrever como muito bem lhe
apetece, ficará Portugal isolado numa variante ortográfica
empobrecedora, cujos efeitos serão tornar cada vez mais bizarra a
escrita do português.
Um dos argumentos
dos defensores do Acordo é que se trata apenas de mudar a ortografia
e isso não muda a língua. Foi o argumento com que se me respondeu
quando falei do abastardamento do português que, no meu ponto de
vista e no de muitos outros, resulta da aplicação das novas regras
ortográficas. Considero o argumento absurdo, como se na língua que
falamos e lemos – insisto, falamos e lemos – a imagem física das
palavras não contasse, e fosse o mesmo escrever aspeto e aspecto. As
palavras transportam uma dimensão cultural e na sua escrita não são
mera ortografia, como melhor do que ninguém João Guimarães Rosa
compreendeu, tratando a língua portuguesa como sentido, som, e
imagem.
O Acordo Ortográfico
não é ciência, nem lei, é política. Como política, é
prejudicial à nossa cultura a nível nacional e como elemento de
política externa é um acto político clamorosamente falhado e cujas
consequências do seu falhanço caem essencialmente sobre Portugal. O
Presidente teve a coragem de levantar o assunto, convinha agora dar
ao seu acto a força da opinião pública. Há muitas maneiras de o
fazer, e os juristas e constitucionalistas certamente que encontrarão
forma de dar expressão legal a esta “reversão”. Pode
considerar-se a sua caducidade visto que não está a ser aplicado
pelos outros signatários, “reverter” a sua imposição
administrativa, ou, levar os portugueses a pronunciarem-se em
referendo, mesmo que de forma não vinculativa, sobre o Acordo. Não
são os opositores do Acordo quem tem medo do referendo, bem pelo
contrário. Mas o tempo urge, visto que os defensores do Acordo pouco
mais têm a seu favor do que a inércia.
Sem comentários:
Enviar um comentário