domingo, 1 de maio de 2016

Uma concessão polémica uniu o Algarve contra o petróleo



Uma concessão polémica uniu o Algarve contra o petróleo

A perspectiva de prospecção e de exploração de petróleo dentro de zonas protegidas gerou uma aliança inesperada na região entre autarcas, ambientalistas, empresários, cidadãos e estrangeiros. Os protestos concentram-se contra as sondagens em terra e contra os riscos do petróleo de xisto.

Luciano Alvarez e Idálio Revez / 1-5-2016 / PÚBLICO

Na fachada do edifício da Câmara de Aljezur está pregada uma enorme cruz vermelha com a seguinte inscrição: “Petróleo e gás no Algarve? Não! Obrigado.” O presidente, José Amarelinho, conta que a ideia partiu do grupo Preservar Aljezur, um movimento cívico de locais contra o petróleo. “Com muito orgulho, exibimos este símbolo que representa, também, a nossa posição”, declara o autarca, que é socialista.

Por estes dias, é assim no Algarve, políticos e ambientalistas do mesmo lado, uma singular aliança que não fica por aqui. De Aljezur a Vila Real de Santo António, do litoral às zonas serranas, aos autarcas dos 16 municípios e aos ambientalistas juntam-se os empresários, cidadãos em geral e estrangeiros a viverem na região. Dizem “não” à prospecção de petróleo e gás natural no Algarve.
As pesquisas petrolíferas em Portugal datam dos anos 1940. O presidente da Entidade Nacional para o Mercado de Combustíveis (ENMC), Paulo Carmona, afirma que tudo não tem passado de “indícios”, apenas com utilidade para o conhecimento científico. Mas as empresas concessionárias — Repsol, ENI, Galp, Partex e Portfuel — continuam a investir milhões à procura de algo que dizem não ter interesse comercial.
A indústria do petróleo espanhola aproximou-se do Algarve, de forma mais persistente, quando a Repsol, há 18 anos, deixou de retirar gás da bacia de Cádis. Ao fim de 40 anos de actividade nessa zona, a companhia deu por terminada a exploração. Assim, subiu o interesse pelos hidrocarbonetos da costa algarvia, geograficamente inserida na mesma zona geológica da vizinha Espanha.
A queda dos preços do crude nos mercados internacionais, nos últimos anos, não ajudou a pôr em prática as propostas que defendiam uma passagem rápida à fase de exploração, dando seguimento às pesquisas que decorrem desde os anos 1940. As circunstâncias acabaram por forçar as parcerias entre consórcios, com vista a diminuir os riscos do investimento nesta actividade.
No final do mandato do Governo de Passos Coelho, em Setembro, Sousa Cintra, empresário com historial no sector do imobiliário turístico, surpreendeu ao aparecer como industrial dos petróleos, de forma isolada, através da empresa Portfuel, com licença para explorar, em terra, os blocos de Aljezur e Tavira — correspondem a 2300 quilómetros quadrados, 46% da área do Algarve. A Portfuel adquiriu os direitos de concessão por “negociação directa” dez dias antes das eleições legislativas.
Das 15 concessões atribuídas pelo Estado e com contratos assinados em 2007, 2011 e 2013, a que foi entregue a Sousa Cintra é a que menos pagará ao Estado, no caso de vir a comercializar petróleo e gás: entregará 3% da receita nos primeiros cinco milhões de barris, podendo chegar aos 8%, depois de deduzidas todas as despesas.
Sousa Cintra começou paralelamente a fazer furos para, alegadamente, captar água, no lugar do Perdigão, em Aljezur, dentro da área de concessão. A empresa autorizada para tal é a Domus Verde, Empreendimentos Imobiliários, controlada por si através de outra empresa.
As licenças foram atribuídas pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) à Domus Verde com a justificação de que necessitava de água para o cultivo de hortícolas. O primeiro furo, a 14 de Novembro, não teve êxito. A quantidade e qualidade da água, ferrosa, não foi o desejado pelo investidor. A 16 de Março, a empresa fez uma nova captação, com água em abundância.
A população local interrogouse: o empresário quer água ou petróleo? A presença de um geólogo da Portfuel a acompanhar os trabalhos adensou as suspeitas.
A população, diz o autarca de Aljezur, “desconfiou, e bem, de que podia ser uma forma mascarada de se já estar a dar início à pesquisa de hidrocarbonetos”. A média da profundidade de furos da zona, acrescenta, varia entre 50 e 100 metros. A licença da Domus Verde permitia-lhe chegar a 500 metros.
“Batata-doce de ouro”
Os populares suspeitaram de que os furos não se destinavam a alimentar a rega do cultivo da batata-doce de Aljezur, como é tradição no concelho. É que, quando chegar a fase da exploração de hidrocarbonetos, com o recurso ao fracking, vão ser necessárias grandes quantidades de água, numa região em desertificação. Luís Ribeiro, professor no Instituto Superior Técnico e um dos contestatários, estima um gasto “entre 7,5 e 39 milhões de metros cúbicos de água” por cada furo. O autarca socialista acrescenta que, por enquanto, a Entidade Nacional para o Mercado dos Combustíveis só autorizou pesquisas à superfície, através de sonar. Entretanto, a Plataforma Algarve Livre de Petróleo (PALP), que junta grupos ambientalistas e está aberta a cidadãos, apresentou uma queixa à Inspecção-Geral da Agricultura, do Mar, Ambiente e Ordenamento do Território, sugerindo que a pretensa actividade agrícola poderia ocultar interesses relacionados com hidrocarbonetos. Por sua vez, a APA ordenou uma “acção inspectiva extraordinária”. Na quarta-feira, o director regional desta entidade de fiscalização ambiental, Sebastião Teixeira, mandou suspender a continuação da execução do furo, quando ia nos 380 metros de profundidade.
“A medição do caudal de 30 metros cúbicos/hora revelou ser mais do que suficiente para a rega”, justificou este responsável, em declarações ao PÚBLICO, acrescentando que o primeiro furo ficara pelos 150 metros por “apresentar água de má qualidade”. E assim, a meio da semana, a máquina perfuradora abandonou a propriedade.
Um grupo de activistas do movimento cívico Preservar Aljezur aguardava o momento. Depois de um coro de aplausos, abrem-se sorrisos de satisfação, mas fica no ar a pergunta: será que Cintra desistiu, também, da pesquisa e captação de petróleo e gás? Quem o conhece, assegura que o homem que lutou para urbanizar Vale da Telha e outras zonas protegidas da Costa Vicentina não estará disposto a recuar voluntária e gratuitamente. “Homem de negócios”, lembra Miguel Braz, membro do Preservar Aljezur, evocando os milhares de euros gastos a fazer as captações de água, “deve querer aqui produzir batata-doce de ouro”, ironiza.
Vinda de casa, a vizinha do terreno do dono da Portfuel Helena Fernandes, de 79 anos, aproxima-se. Vestida de negro, adivinha-se a vida de sacrifícios nos passos miúdos e na curvatura das costas. “Sempre aqui vivi, agarrada à enxada.” A filha Otília é a terceira geração de uma família de agricultores. Não possuem automóvel, mas nos últimos meses do que mais têm ouvido falar é que à sua porta pode nascer um poço de petróleo. “O carro são as nossas pernas”, conta Helena, acrescentando que gostaria de “voltar a dormir descansada”, sem pensar no que lhes poderá acontecer. Helena pede para não ser fotografada, tem medo de ser reconhecida e algo possa acontecer.
“Boa viagem, e não voltem mais”, grita o inglês John Hinsley, um músico que se queixa de que o ruído lhe virou do avesso a harmonia em que trabalhava. “Não posso aqui viver”, protesta.

Há um mês, e após queixas dos ambientalistas, o secretário de Estado do Ambiente, Carlos Martins, foi ao Perdigão. Filipe Costa, também activista do Preservar Aljezur, disse “estranhar” o facto de se ter aproximado da propriedade de Sousa Cintra, mas não ter entrado para ver o que se passava. Porém, ressalva que, acompanhado da GNR, “não fugiu ao diálogo com as pessoas que o aguardavam”.

Governo quer respaldo da PGR para rescindir contratos com Sousa Cintra por incumprimento
Pedido de parecer ao conselho consultivo da PGR questiona validade do despacho com que Moreira da Silva atribuiu concessões de petróleo à empresa de Sousa Cintra

O Governo já tem argumentos para rescindir os contratos de concessão com a Portfuel por violação de deveres contratuais, mas quer que a Procuradoria-Geral da República (PGR) confirme que estas falhas estão devidamente fundamentadas do ponto de vista legal para quebrar os contratos sem correr o risco de ter de vir a pagar indemnizações. O PÚBLICO sabe que esta é uma questão levantada pelo secretário de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches, num pedido de parecer enviado este mês ao conselho consultivo da PGR.
A sociedade de José Sousa Cintra tem, desde Setembro, a concessão de direitos de prospecção, pesquisa, desenvolvimento e produção de petróleo em terra ( onshore) em quase todo o Algarve. A polémica sobre os contratos atingiu novas proporções no últimos dias, mas o empresário diz “não conseguir compreender” as razões de tanto ruído.
Em declarações ao PÚBLICO, Sousa Cintra atribuiu a contestação “a gente sem escrúpulos que quer instrumentalizar as pessoas”, e assegurou que os contratos “são para manter”. A Portfuel, empresa deficitária, constituída em 2013, está a “cumprir todas as obrigações, com todo o rigor”, assegurou.
Aos olhos do Governo, segundo as informações recolhidas pelo PÚBLICO, a empresa não só está já em incumprimento (porque não entregou a apólice de seguro obrigatória, nem entregou atempadamente a caução que lhe era exigida) como entende que a sua candidatura foi aceite sem cumprir requisitos legais. Por isso, Seguro Sanches considera que há margem para determinar a nulidade ou anulabilidade dos contratos e questionou para isso os serviços liderados pela procuradora-geral, Joana Marques Vidal. Pode o despacho (de Junho) do anterior ministro do Ambiente e da Energia, Jorge Moreira da Silva, que autoriza as assinaturas dos contratos ser declarado nulo ou anulado? Se assim for, pode essa nulidade ou anulabilidade repercutir-se nos actos subsequentes, ou seja, nas minutas e contratos de concessão assinados com a Portfuel em Setembro de 2015?
Caberá ao conselho consultivo da PGR esclarecer o Governo e o relógio está a contar. A nulidade dos contratos celebrados com Sousa Cintra — que seria, para o Estado, a via mais fácil — tem de ser determinada até ao início de Junho, por correr prazos legais, por isso o pedido de parecer tem carácter de urgência.
O PÚBLICO apurou que este pedido foi já enviado ao Parlamento, em resposta aos deputados do PS, PCP e Bloco de Esquerda, depois de, na quinta-feira, o antigo ministro do Ambiente e da Energia Jorge Moreira da Silva e o antigo secretário de Estado da Energia Artur Trindade terem sido ouvidos numa comissão conjunta de Economia e Ambiente.
Aos parlamentares, os ex-governantes salientaram que o actual contrato apenas garante a Sousa Cintra as autorizações para a pesquisa e prospecção. A Portfuel “não pode fazer nada no terreno sem autorização e só ao fim de oito anos é que o Estado vai ter de decidir se quer passar para a fase de exploração”, caso seja encontrado petróleo, disse Moreira da Silva. “A concessão não dá licença para produzir, nem explorar”, sublinhou Artur Trindade. Neste momento, Sousa Cintra apenas pode “fazer estudos que não tenham qualquer interferência com o solo” e quando quiser passar à fase de perfuração terá de iniciar “processos de licenciamento que incluem consultas públicas e avaliações de impacto ambiental”.
Se não cumprir os requisitos a que está obrigado, “perde o contrato, perde a caução e ainda indemniza o Estado”, acrescentou o ex-secretário de Estado, frisando que a obrigação do Governo e da Entidade Nacional para o Mercado de Combustíveis (ENMC) é a de “continuar a escrutinar” a Portfuel.

Na mesma linha, Moreira da Silva comentou a decisão da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) de travar um furo de água de outra sociedade de Sousa Cintra, a Domus Verde, por suspeitar de que pudesse estar ligado à pesquisa petrolífera. “Foi suspenso e muito bem”, disse o ex-ministro. ( …)  

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