sexta-feira, 1 de abril de 2022

Era uma vez... um oligarca russo com 242 euros

 



OPINIÃO

Era uma vez... um oligarca russo com 242 euros

 

Investindo os recursos necessários, consegue-se desenrolar pelo menos parte do fio à meada e identificar transações dos oligarcas russos que violam as sanções.

 

Susana Peralta

1 de Abril de 2022, 6:32

https://www.publico.pt/2022/04/01/opiniao/opiniao/oligarca-russo-242-euros-2000946

 

O Senado dos Estados Unidos da América publicou em 2020 o relatório de um inquérito à aplicação das sanções a oligarcas russos na sequência da anexação da Crimeia em 2014, que concluiu que houve várias falhas na aplicação das sanções.

 

Uma parte substancial do relatório é dedicado ao case study dos irmãos Arkady e Boris Rotenberg, cuja proximidade com Putin lhes valeu 7 mil milhões de dólares de contratos públicas na altura dos Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi. A empresa de Arkady Rotenberg foi ainda encarregada de construir a ponte que liga o território continental da Federação Russa à anexada península da Crimeia. O Senado conclui que estes irmãos transferiram 120 milhões de dólares para a Rússia nos quatro dias que se seguiram à ordem executiva de Obama relativa às sanções. Também continuaram a operar no mercado financeiro norte-americano, com transações que totalizaram mais de 91 milhões de dólares. Tudo através de empresas-fachada, claro. Compraram, ainda, arte em galerias e leiloeiras especializadas de Nova Iorque, no valor de 18,4 milhões de dólares, nos meses seguintes às aplicações das sanções. Arkady e Boris não foram em passeio citadino num sábado de manhã às galerias para comprar as obras – recorreram a um intermediário, que comprou para empresas-fachada, que tinham por beneficiários últimos os irmãos Rotenberg.

 

 

O relatório foca-se no mercado da arte, considerado um paraíso de opacidade que permite contornar as sanções; mas os redatores avisam: “se os ricos oligarcas russos conseguem comprar milhões em arte para investimento ou gozo pessoal enquanto estão sancionados, conclui-se que os seus negócios ou recursos escondidos também podem continuar a ter acesso ao sistema financeiro dos EUA”.

 

Como fazem os super-ricos? Organizam a sua vida em torno de uma teia de empresas e testas de ferro, encadeadas umas nas outras, o que dificulta à galeria de arte, intermediário financeiro ou agente imobiliário perceber que está a transacionar com o oligarca fulano ou beltrano. Muitas vezes, infelizmente, facilita-lhes a vida para fingir que não sabem. Assim os oligarcas conseguem esconder a propriedade de ativos financeiros (contas em bancos, participações em fundos de investimento), mobiliários (jatos privados, barcos milionários), ou imobiliários (casas e apartamentos de luxo em vários pontos do globo). Exemplos destes estratagemas abundam na história dos irmãos Rotenberg. Emails divulgados pelos Panama Papers, o leak do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação de 2016, identificavam ligações entre os irmãos e nove empresas offshore. Arkady transferiu os negócios para o filho, Igor, dois meses depois da aplicação das sanções. O conselheiro de arte sediado em Moscovo, Gregory Baltser, naturalizado cidadão americano, comprou arte em nome dos Rotenberg.

 

A primeira moral desta história é a dificuldade intrínseca à aplicação das sanções a este tipo de indivíduos. A teia faz com que “rastrear a propriedade das empresas-fachada anónimas” seja difícil, como reconhece o relatório do Senado, logo no sumário executivo. A segunda moral da história é que, investindo os recursos necessários, se consegue desenrolar pelo menos parte do fio a esta meada, e assim identificar transações que violam as sanções.

 

Com o objetivo de não repetir os erros que, desde 2014, foram permitindo aos oligarcas russos sancionados continuar a sua vida luxuosa, o Departamento de Justiça dos EUA criou no início de março a task-force KleptoCapture que, segundo o procurador-geral, não deixará “nenhuma pedra por levantar” no esforço de investigar estas ligações perigosas.

 

Vem isto a propósito de uma carta, da qual sou co-signatária, que foi enviada na terça-feira ao primeiro-ministro António Costa, apelando a que a primeira medida do XXIII Governo Constitucional, que tomou posse na quarta-feira, fosse a criação de uma task-force com estas características. A carta é também assinada por Ana Gomes, ex-deputada ao Parlamento Europeu, Bárbara Rosa, co-diretora artística do Festival Política, Luís Aguiar-Conraria, professor de Economia na Universidade do Minho, Maria José Morgado, procuradora-geral adjunta jubilada, Óscar Afonso, do Observatório de Economia e Gestão da Fraude, Nuno Barroso, presidente da Associação Profissional dos Inspetores Tributários e da Rede Ibero-Americana de Auditores Fiscais, Paulo de Morais, João Paulo Batalha e Maria Teresa Sorrenho, respetivamente presidente e vice-presidentes da Frente Cívica, Luís de Sousa, professor do Instituto de Ciências Sociais, e Susana Coroado, presidente da Transparência Internacional Portugal.

 

E porque precisamos da task-force? Porque os métodos dos oligarcas são iguais em todo o mundo. Por essa razão, a decisão do Conselho Europeu de 2014 referente às sanções que se seguiram à anexação da Crimeia refere “todos os fundos e recursos económicos pertencentes, na posse ou que se encontrem à disposição ou sob controlo” – o que vai além da simples propriedade direta, como é bom de ver. E continua assim: “de pessoas singulares (...) assim como das pessoas singulares ou coletivas, entidades ou organismos a elas associadas” – ou seja, testas de ferro, Igor Rotenberg e familiares que tais, empresas-fachada.

 

A task-force que sugerimos deverá ser liderada pela PGR, integrando elementos do Gabinete de Recuperação de Ativos e da Unidade de Informação Financeira da Polícia Judiciária, da Autoridade Tributária e Aduaneira e do Banco de Portugal. Para ser efetiva, tem de ser dotada de autonomia e meios para poder levar a cabo a sua missão, incluindo acesso às fontes de informação indispensáveis, isto é, os Registos Comercial, Predial e Automóvel, o Registo Central dos Beneficiários Efetivos, os registos da Zona Franca da Madeira. E também, claro, das aeronaves e embarcações registadas, incluindo no Registo Internacional de Navios da Madeira. Ficaria encarregue da comunicação com os organismos internacionais de cooperação no domínio da justiça (como o Eurojust e a Europol), mas também com as task-forces internacionais entretanto criadas para aplicar as sanções aos oligarcas russos: “Freeze and Seize”, da Comissão Europeia, e “Russian Elites, Proxies and Oligarchs”, uma cooperação entre a UE, EUA, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Japão e Reino Unido. E, claro, produziria relatórios periódicos, a serem discutidos no Parlamento agora empossado.

 

O resultado de não atacarmos este problema com as unhas que ele requer está a vista – passado um mês, temos notícia do congelamento de uma única conta bancária, no valor de 242 euros. Até agora, o primeiro-ministro, ocupado com a posse do Governo, não teve tempo de nos responder. Nem nos consta que algum jornalista, na azáfama mediática dos últimos dois dias, lhe tenha perguntado se pretende aceitar a nossa sugestão. Não quero aqui falar pelas co-signatárias e co-signatários ilustres que assinaram a carta comigo. Mas, pela minha parte, continuo à espera. Prefiro essa esperança – porventura vã – a acreditar na história da carochinha do oligarca pobre que só tinha 242 euros no banco.

 

A autora é colunista do Público e escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sem comentários: