OPINIÃO
Da utilidade das posições do PCP sobre a guerra na
Ucrânia
Porque é que não se ouvem ainda as sirenes da polícia à
porta da Soeiro Pereira Gomes? Porque, felizmente, o povo é mais sensato do que
os caçadores de discursos de ódio e alguns artigos do Código Penal.
João Miguel
Tavares
28 de Abril de
2022, 0:38
https://www.publico.pt/2022/04/28/opiniao/opiniao/utilidade-posicoes-pcp-guerra-ucrania-2004081
A jornalista
Fernanda Câncio teve uma ideia curiosa: ir perguntar a vários juristas se a
posição do PCP sobre a guerra na Ucrânia poderia ser considerada uma forma de
discurso de ódio. O artigo que publicou no DN chama-se precisamente: PCP.
Acusar Ucrânia de ‘genocídio’ e ‘limpeza étnica’ é discurso de ódio? A questão
tem a seguinte pertinência: se a resposta for afirmativa, as opiniões sobre o
conflito ucraniano de Jerónimo de Sousa, Paula Santos, António Filipe, João
Oliveira, Miguel Tiago ou dos editorialistas do Avante! deixam de ser apenas
abjectas e chalupas para passarem a ser criminosas, caindo sob a alçada do
artigo 240.º do Código Penal.
À partida, esta
ideia de Fernanda Câncio pode parecer tão chalupa como as posições do PCP, mas
o número 240 do Código Penal, garantem alguns dos juristas ouvidos no texto,
está do seu lado. Diz assim, no ponto 2 (perdoem-me o corte e costura): “Quem,
publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação, nomeadamente através da
apologia, negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou
contra a paz e a humanidade (…) difamar ou injuriar (…) grupo de pessoas por
causa da sua (…) origem (…) nacional (…) é punido com pena de prisão de 6 meses
a 5 anos.” Ora, o PCP está a negar crimes de guerra? Está (às vezes até a
própria existência de uma invasão e de uma guerra). As vítimas são um grupo de
pessoas com uma determinada origem nacional? São. É injurioso afirmar que foram
os ucranianos a começar a guerra em 2014 ou que o seu governo está tomado por
neonazis? É, muito. Logo, segundo a lei portuguesa, o PCP pode estar a difamar
e a promover um discurso de ódio contra a Ucrânia? Pode.
Então porque é
que não se ouvem ainda as sirenes da polícia à porta da Soeiro Pereira Gomes?
Porque, felizmente, o povo é mais sensato do que os caçadores de discursos de
ódio e alguns artigos do Código Penal. Não se trata apenas de o PCP ter direito
à liberdade de expressão e, enquanto partido, não lhe deverem ser cerceadas as
suas opiniões políticas – trata-se de essas opiniões, seja a propósito da
Ucrânia, da Venezuela, de Cuba ou da Coreia do Norte, desempenharem uma função
importante numa democracia liberal: são a lixeira das ideias que descartamos,
mas cuja existência é benéfica nas sociedades abertas, para que os seus
inimigos sejam reconhecidos, combatidos e vencidos.
Um verdadeiro democrata não quer tapar a boca ao PCP,
como não quer tapá-la ao Chega
As posições do
PCP, por mais vergonhosas que sejam, têm mais utilidade no espaço público
português do que a unanimidade absoluta, essa perigosa beatitude onde nunca
somos confrontados com a dissensão, nem necessitamos de exercitar a força das
nossas convicções. Já muitas vezes defendi isto a propósito das inúmeras
posições repugnantes de André Ventura – e tive de aguentar com as bocas
foleiras sobre a minha alegada paixão pelo Chega. Continuo a defender a
mesmíssima coisa para o PCP – e mal posso esperar que me comecem a chamar
comunista.
Um verdadeiro
democrata não quer tapar a boca ao PCP, como não quer tapá-la ao Chega. Um
verdadeiro caçador de discursos de ódio, se quer muito tapar a boca ao Chega, é
natural que agora também queira tapá-la ao PCP. Ambos são coerentes. Prefiro a
coerência dos primeiros. Ouvir Jerónimo a falar da Ucrânia ou Ventura dos
ciganos dá a volta a qualquer tripa. Mas eles têm o papel inestimável de eu
poder dizer aos meus filhos: “Estão a ouvir aqueles dois senhores? Quando forem
grandes, façam-me o favor de nunca se parecerem com eles.”
O autor é
colunista do PÚBLICO
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