PCP. Acusar Ucrânia de "genocídio" e
"limpeza étnica" é discurso de ódio?
Dirigentes do PCP acusam a Ucrânia de "genocídio
programado" e "limpeza étnica" na região separatista do Donbass,
imputações que o Kremlin faz há muito sem respaldo das instâncias
internacionais, e que Putin repetiu para justificar invasão. Penalistas ouvidos
pelo DN admitem que estas afirmações podem ser discurso de ódio - e que o MP
deve abrir um inquérito.
Fernanda Câncio
23 Abril 2022 —
00:43
"Sem dúvida
que há uma difamação - e também se pode discutir se não existe um incitamento
ao ódio. Porque, no contexto em que estas afirmações são feitas, trata-se de
justificar a invasão segundo a cartilha da Rússia. Isto toca as fake news - que
são uma das formas do discurso do ódio."
Guerra Na
Ucrânia. Paula Santos (PCP): "A Revolução de Abril foi feita para
libertar-nos do fascismo e da guerra, é um insulto esta comparação"
A opinião é da
professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Nova de
Lisboa Teresa Quintela de Brito, a quem o DN pediu que apreciasse declarações
de dirigentes do PCP, incluindo o prospetivo candidato a secretário-geral João
Oliveira, que acusam a Ucrânia de cometer "genocídio" e "limpeza
étnica" na região do Donbass, onde se localizam as autoproclamadas
"repúblicas populares" de Donetsk e de Lugansk, e na qual decorre
desde 2014, na sequência da invasão e anexação da Crimeia pela Rússia, um
conflito armado. A penalista considera que, configurando "acusações com
base em dados consabidamente falsos, por razões puramente ideológicas e em claro
alinhamento político com a Rússia", são passíveis de procedimento
criminal.
É secundada pelo
também penalista, ex-presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos
Advogados e juiz ad hoc do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos Paulo Saragoça
da Matta: "Quem faz aquilo que o PCP está a fazer está a praticar aquilo a
que se chama retorsão: é a negação da existência de crimes contra a humanidade
praticados pela Rússia e ao mesmo tempo, com o propósito de justificar a
invasão russa, estão a difamar e caluniar a Ucrânia para justificar a retorsão.
Que tem um consequência jurídica importante: estão a dizer que houve uma
provocação prévia por parte da Ucrânia."
Em causa,
consideram ambos, poderá estar o cometimento, não de um mero crime de
difamação, dirigido a uma pessoa individualmente considerada e que exigiria
queixa do ofendido, mas do tipo criminal descrito no artigo 240º do Código
Penal (CP), "Discriminação e incitamento ao ódio e à violência".
Aliás, segundo Teresa Quintela de Brito, poderiam estar em causa duas
modalidades deste crime: a de difamação e injúria de um grupo de pessoas por
causa da sua origem nacional (os ucranianos, representados pelos seus líderes
políticos e militares); e a de incitamento ao ódio contra grupo de pessoas por
causa da respetiva origem nacional, tendo em conta o contexto em que são
proferidas (guerra entre a Rússia e a Ucrânia em alegada defesa de populações
prórrussas contra genocídio e limpeza étnica).
Saragoça da Matta
defende dever o Ministério Público (MP) abrir um inquérito às ditas declarações
(trata-se de um crime público, pelo que qualquer pessoa tem legitimidade para o
denunciar, e o MP para abrir inquérito por sua iniciativa): "Parece-me
claro que há fumos/indícios de preenchimento do tipo e tem de ser aberto um
inquérito. E há elevada probabilidade de o MP considerar que está preenchido o
tipo."
Esta posição não
é unânime entre os penalistas ouvidos pelo jornal - quer por considerarem que a
liberdade do discurso político deve poder incluir não só a falta de rigor como
até a mentira, quer por questões técnicas (pode um grupo nacional, representado
pelo seu governo, incluir-se nas identidades protegidas pelo tipo criminal em
causa?) - mas a maioria considera a questão interessante e discutível.
Admitindo que
"os conceitos técnicos de genocídio e crimes de guerra estão a ser
manipulados, de forma leviana, para efeitos políticos", um penalista
especialista na legislação internacional de direitos humanos adverte:
"Tenho muitas reservas em considerar que as alegações em causa vão para
além do discurso político inflamado." E lembra "um dos privilégios
dos nossos deputados é da imunidade da responsabilidade penal em relação à
tomada de posições políticas, por mais descabidas que sejam. Salvo se houver
incitamento ou ódio e à violência em relação a determinada raça, grupo
religioso ou étnico."
Outra especialista
neste ramo do Direito, que também prefere não ser identificada, reconhece haver
"certo tipo de condutas consideradas injuriosas ou difamatórias mas que
quando são praticadas no contexto da luta política podem ser aceitáveis."
Mas, prossegue, "é uma questão muito interessante, e nada descabida, a de
saber se aquelas alegações sobre genocídio e limpeza étnica podem ser
enquadráveis no artigo 240º. Porque são a tentativa de encontrar uma espécie de
causa justificativa para a intervenção russa. Pode por esse motivo fazer
sentido uma denúncia pelo crime de discriminação e incitamento ao ódio e à
violência. E se me pedissem para fazer uma queixa-crime sobre isto, daria
trabalho, mas conseguia fazê-la."
Putin:
"Certamente parece um genocídio"
Recorde-se que Vladimir
Putin usou, no seu discurso de 24 de fevereiro, a acusação de genocídio para
justificar aquilo que apelida de "operação militar especial" contra a
Ucrânia. Esta, disse, serve "para proteger quem, desde há oito anos,
enfrenta a humilhação e o genocídio perpetrados pelo regime de Kiev." Três
dias antes, a 21 de fevereiro, tinha descrito a situação naquela região como de
"horror e genocídio, que põe em risco quase quatro milhões de
pessoas".
Não foi, de
resto, a primeira vez que o presidente russo falou de genocídio a propósito da
Ucrânia: em 2019, afirmou que caso este país tomasse de novo conta da sua
fronteira com a Rússia, neste momento controlada pelas autoproclamadas
repúblicas, se seguiria um massacre de ucranianos de etnia russa à escala do de
Srebrenica (aludindo ao ocorrido em julho de 1995, quando tropas e
paramilitares sérvios mataram mais de oito mil bósnios muçulmanos, no que foi
classificado como crime de genocídio pelo Tribunal Penal Internacional).
Em dezembro de
2021, quando os EUA já o acusavam publicamente de planear a atual invasão,
Putin afirmou: "A russofobia é o primeiro passo para o genocídio. Sabemos
o que se está a passar no Donbass, e certamente parece um genocídio".
Voltaria a reafirmá-lo a 15 de fevereiro - "O que está a acontecer no
Donbass é genocídio" -, tendo, de acordo com o New York Times, diplomatas
russos posto a circular no Conselho de Segurança das Nações Unidas um documento
que acusa a Ucrânia de "exterminar a população civil" da zona leste
do país.
Apesar destas
afirmações, frisa Alexander Hinton, diretor do Centro para o Estudo de
Genocídio e Direitos Humanos da Universidade de Rutgers (EUA), a Rússia nunca
pediu uma investigação ao Gabinete das Nações Unidas para a Prevenção do
Genocídio. "Está bem documentado que desde 2014 os dois lados [Ucrânia e
separatistas] cometeram violações dos direitos humanos no Donbass e inocentes
foram mortos e agredidos", disse Hinton à Al Jazeera em março. "Mas
não há qualquer evidência de genocídio. Nenhuma. A Rússia tem feito referências
vagas a valas comuns e ataques a civis, mas se tivesse provas podemos ter a
certeza de que as teria apresentado há muito."
As alegações do
Kremlin, de resto, foram já várias vezes objeto de análise e "fact
checking", sendo sempre refutadas com base no reporte dos observadores
internacionais que desde 2014 têm missões na Ucrânia. São eles o
Alto-Comissariado para os Direitos Humanos da ONU (a partir de agora,
genericamente designado por ONU), que publicou mais de 30 relatórios sobre a
situação naquele país, e a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa
(da qual a Rússia faz parte). Reconhecendo inúmeras violações dos direitos
humanos dos dois lados do conflito, nenhuma destas duas instituições alguma vez
falou em genocídio, limpeza étnica ou extermínio deliberado da população civil
por qualquer das partes.
Atente-se
igualmente a que a 25 de fevereiro a Ucrânia deu entrada de um pedido no
Tribunal Internacional de Justiça (que funciona sob a égide da ONU) no sentido
de que este exigisse à Rússia o fim imediato da invasão do seu território,
alegando que a Rússia está a fazer uma interpretação errada da Convenção para a
Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, tratado de 1948 assinado no âmbito
das Nações Unidas e subscrito por ambos os países, e a justificar a invasão com
base nessa interpretação.
A 16 de março, o
tribunal, por maioria de 13 contra dois (os juízes russo e chinês), instou a
Rússia a "suspender imediatamente todas as operações militares iniciadas a
24 de fevereiro na Ucrânia", afirmando também "não haver provas de
que a Ucrânia tenha cometido ou planeado ataques que podem ser considerados
crimes contra a humanidade" e notando ser "duvidoso que a convenção
em causa autorize um Estado signatário a usar unilateralmente a força no
território de outros Estado com o propósito de prevenir e punir um alegado
genocídio".
Ironicamente, é a
Rússia que está neste momento a ser alvo de alegações de genocídio devido à
invasão da Ucrânia. O procurador principal do Tribunal Penal Internacional (que
tem a competência para investigar crimes de guerra e contra a humanidade)
disse, após visitar Bucha, que "a Ucrânia é um cenário de crime" e
que há "fundamento razoável para crer que as tropa russas cometeram crimes
de guerra" naquele país. Também a OSCE, num relatório publicado a 12 de
abril, diz haver "um padrão claro da violação da Lei Internacional
Humanitária", considerando existir provas de que o invasor atingiu
propositadamente alvos civis. E dá o exemplo da maternidade de Mariupol e do teatro
da mesma cidade.
As acusações de
João Oliveira, Miguel Tiago, Jerónimo e Paula Santos
Mas vejamos as
ditas declarações dos dirigentes do PCP.
A 3 de março, 11º
dia da invasão russa da Ucrânia, em entrevista ao Público, João Oliveira, então
ainda deputado à Assembleia da República, afirmou: "A morte de 15 mil
ucranianos na região do Donbass, exclusivamente porque são ucranianos
russófonos, é objetivamente uma situação de limpeza étnica, que foi
desenvolvida pelas Forças Armadas ucranianas contra o seu povo."
Pouco mais de um
mês depois, a 7 de abril - quando existia já, na sequência da saída das tropas
russas de Bucha, uma localidade perto de Kiev, e do cenário de mortandade
revelado, uma discussão internacional sobre se a Rússia está a perpetrar um
genocídio na Ucrânia, e o PCP pedia "uma investigação independente",
alertando contra "julgamentos predeterminados" e "operações de
manipulação" -, o ex-deputado Miguel Tiago ia mais longe. Em duas
publicação consecutivas no Twitter, escrevia: "Nos últimos sete anos,
mataram 15 mil habitantes da região do Donbass numa operação de genocídio
programado. (...) Não era uma guerra civil, era um genocídio de todos os que
não queriam o corte de ligações com o povo irmão da Rússia."
A 10 de abril,
era a vez de o secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, acusar "o poder
ucraniano xenófobo e belicista" de "nos últimos oito anos provocar
mais de 14 mil mortos entre os seus próprios cidadãos."
Ainda esta
quarta-feira, a líder parlamentar do PCP, Paula Santos, voltou a usar a descrição
do secretário-geral para o "poder ucraniano" - "xenófobo e
belicista" -, afiançando: "Na sequência do golpe de Estado de 2014
discrimina os cidadãos com base na cultura e na língua" e "há oito
anos ataca e massacra a própria população ucraniana na região do Donbass".
Também na página
que o PCP criou "sobre a situação na Ucrânia", a secção "factos
e números" certifica que houve "15 mil mortos nos últimos oito anos
no Donbass" e, mais abaixo, porquê: "Ucrânia bombardeia
sistematicamente repúblicas autoproclamadas - estima-se que as agressões da
Ucrânia ao Donbass desde 2014 tenham resultado em cerca de 15 mil mortos e
centenas de milhares de refugiados."
Mais de 75% das
mortes no Donbass são de combatentes
Factos e números,
então. A última estimativa da ONU quanto aos mortos relativos ao conflito do
Donbass situa-as entre 14 200 a 14 400. Diz respeito ao período de abril de
2014 a 31 de dezembro de 2021 e contabiliza, além de vítimas de bombardeamentos
e disparos de vária espécie, também as mortes que resultaram de detonação
acidental de engenhos explosivos e, porque inclui os combatentes, igualmente as
resultantes de acidentes e de doença, homicídios e suicídios entre os militares
colocados na região.
Aliás a mesma
fonte - a citada missão para a Ucrânia do Alto Comissariado para os Direitos
Humanos das Nações Unidas - calcula, numa publicação datada de 27 de janeiro de
2022, que do total de mortes referido mais de 75% sejam de combatentes: 4400
membros das forças armadas ucranianas e 6500 dos "grupos armados"
separatistas, estando nestes incluídos estrangeiros (incluindo, obviamente,
russos).
Quanto a vítimas
mortais civis, aquele órgão da ONU aponta, no seu 33º relatório, o último antes
da invasão de 24 de fevereiro, 3 405 entre 14 de abril de 2014 e 31 de janeiro
de 2022.
Estão incluídas
neste rol de vítimas civis as 298 pessoas que seguiam a bordo do avião da
Malasya Airlines abatido a 17 de julho de 2014 por um míssil russo, no que
constitui uma das provas irrefutáveis do envolvimento da Rússia no conflito (o
julgamento à revelia dos acusados deste crime de guerra, três russos e um
ucraniano, decorre na Holanda, de onde era originária a maioria das vítimas,
esperando-se o veredicto para o final deste ano; decorre igualmente um processo
entre Estados, no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, da Holanda e da
Ucrânia contra a Rússia, relativo aos mesmos factos).
Como já referido,
as dezenas de relatórios da ONU (como de várias ONG) apontam gravíssimas
violações de direitos humanos aos dois lados, imputando a ambos, por via de
bombardeamento indiscriminado nos primeiros anos do conflito - a maior parte
das mortes concentra-se nos três primeiros anos, de 2014 a 2016 -, inúmeras
baixas civis. Há também muitos relatos de execuções extrajudiciais perpetradas
quer pelo lado ucraniano quer pelo dos separatistas, além de detenções ilegais,
tortura, violações e outros crimes de guerra.
Por outro lado, a
intervenção da Rússia é certificada: o conflito foi desde o início classificado
como "internacional" pelo facto de não implicar só o governo
ucraniano e insurrectos ucranianos. Por exemplo no nono relatório da ONU,
respeitante ao período de 1 de dezembro de 2014 a 15 de fevereiro de 2015,
lê-se: "Relatos credíveis indicam um fluxo contínuo de armamento pesado e
combatentes estrangeiros ao longo do período em análise, incluindo da Federação
Russa, para as áreas de Donetsk e Luhansk controladas por grupos armados. O que
tem sustentado e aumentado a capacidade dos grupos armados das autoproclamadas
"República Popular de Donetsk e "República Popular de Luhansk"
de resistir às forças armadas dia governo e lançar novas ofensivas (...)."
Parece assim
ficar assente a ausência de base factual, no reporte das entidades
independentes que têm investigado o conflito no terreno, para acusações de
genocídio, limpeza étnica ou matança deliberada e sistemática de civis pelos
governos ucranianos - devendo também referir-se que o número de mortes desceu a
pique a partir de 2019, quando o atual presidente, Volodymyr Zelensky, tomou
posse.
"Não pode
haver uma higienização total do debate político, a ponto de a mentira ser
crime"
No seu número
dois, alínea b, o artigo 240º do CP penaliza com pena de prisão de seis meses a
cinco anos quem, "publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação,
nomeadamente através da apologia, negação ou banalização grosseira de crimes de
genocídio, guerra ou contra a paz e a humanidade", "difamar ou
injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica
ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de
género ou deficiência física ou psíquica."
É um crime muito
raramente levado aos tribunais portugueses e que mais raramente ainda
fundamenta condenações. Soube-se este mês que a historiadora Maria de Fátima
Bonifácio foi, na sequência de uma queixa do SOS Racismo, por ele pronunciada
devido a um seu texto publicado a 6 de julho de 2019 no Público. Neste, de
acordo com o juiz que a pronunciou, "ofendia, rebaixava e
inferiorizava" os grupos visados - afrodescendentes e ciganos - "em
razão da cor da sua pele e origem, pertença cultural ou étnica").
Bonifácio vai recorrer da pronúncia, supõe-se que com base na liberdade de
expressão.
A liberdade de
expressão é o principal motivo pelo qual um dos penalistas ouvidos pelo DN, e
que prefere não ser identificado, considera que não faz sentido aplicar o
artigo 240º às alegações do PCP.
"O artigo
240º e o Direito Penal" defende, "não podem servir para impor um
discurso único sobre eventos sociais, políticos, etc, em curso, tem de
prevalecer a liberdade de expressão, mesmo que não haja rigor no discurso. O
debate público tem de poder incluir visões distintas da história. Não pode
haver uma higienização total do debate político, a ponto de a mentira ou a
falta de rigor ser crime."
Esta última
ideia, a de que no discurso político deve poder valer tudo, incluindo quiçá
"factos alternativos" de Donald Trump, foi a principal linha de
defesa de André Ventura no processo cível que lhe foi movido em 2021 por uma
família de habitantes do bairro da Jamaica, todos negros, a quem o líder do
Chega apelidou, num debate televisivo das presidenciais, "bandidos" e
"bandidagem", enquanto mostrava a respetiva foto com Marcelo Rebelo
de Sousa.
Ventura e o Chega
acabaram condenados porque o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que a
respetiva atuação extravasou os limites da liberdade de expressão e lesou o
direito à honra e à imagem dos sete elementos da família em causa, por as
ofensas não terem "base factual suficiente", sendo feitas "de
modo totalmente desproporcionado." O MP abriu entretanto, por apresentação
de denúncia, um inquérito criminal sobre os mesmos factos, do qual não se conhece
ainda o desfecho.
"É preciso
saber distinguir entre a liberdade do discurso politico e o discurso do
ódio"
Não é porém
exatamente a liberdade total de mentir e difamar que defende o penalista
citado; admite que acusar os judeus de terem inventado o holocausto é crime. O
crime previsto no artigo 240º existe, vinca, "quando se ultrapassarem
manifestamente os limites da liberdade de expressão e há intenção de estimular
o ódio ou incitar à violência." Mas não crê ser o caso nas alegações do
PCP, que distingue das acusações feitas aos judeus sobre o holocausto também
porque "ainda não passou tempo suficiente, não há o distanciamento
necessário. O que está em causa nas afirmações do PCP é uma visão política que
pode ter fundamento, apesar de os números citados não estarem corretos."
Pode ser uma
"visão política com fundamento" acusar um país de genocídio quando
nenhuma factualidade reportada por investigação independente fundamenta a
acusação, e quando esta serve, por sua vez, de fundamento para a invasão desse
mesmo país - ou seja, para a violência?
Teresa Quintela
de Brito está certa de que não. "Não posso subverter a realidade para
incitar ao ódio, não posso incitar ao ódio e à violência a coberto de uma
alegada e ilimitada liberdade do discurso político. É preciso saber distinguir
entre a liberdade do discurso político e o discurso do ódio. E o discurso de
ódio neste caso é denegrir um povo e incitar ao ódio a esse povo num contexto
de guerra."
Saragoça da Matta
corrobora: "A liberdade de expressão não pode chegar ao ponto de autorizar
os negacionismos. E tem sido um erro do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e
dos tribunais portugueses permitir que se ataque o Estado de direito
democrático com as liberdades do Estado de direito democrático."
A Ucrânia tem de
ser uma "identidade vulnerável" para merecer proteção?
Outro penalista,
José Neves da Costa, apresenta uma objeção diferente à aplicação, neste caso,
do crime tipificado no 240º. "As declarações difamatórias são dirigidas à
"Ucrânia". É discutível que a Ucrânia tenha cabimento na previsão
enquanto "pessoa ou grupo de pessoas". Mas ainda que se entenda a
Ucrânia como uma Pessoa Coletiva (de Direito Internacional Público), não
vislumbro que o requisito "por causa da (...) origem étnica ou
nacional" esteja preenchido."
Acresce, a seu
ver, que só podendo o tipo criminal ser aplicado quando o ódio é dirigido às
identidades enunciados no artigo, é necessário que essas identidades se
revistam de "especial vulnerabilidade". Para que a difamação da
Ucrânia possa ser enquadrada neste crime, "teria de se colocar a questão
do ponto de vista da vulnerabilidade atual dos ucranianos. Se se considerar que
a sua identidade nacional está sob ataque tal que necessita de proteção, se se
declarar que estão a ser alvo de um genocídio, então passariam a ser identidade
protegida, e difamá-los cabe no artigo 240º."
Assim se
"uma comunidade minoritária sem representatividade nas estruturas sociais
de poder apelar à discriminação da maioria", este jurista tem reservas
"quanto ao cabimento desse apelo no 240.º" E exemplifica: "Se o
movimento feminista apelar à discriminação dos homens, tenho dúvidas que caiba
no 240.º Se os negros apelarem à revolta contra os brancos, tenho dúvidas que
haja discurso do ódio."
Neves da Costa
admite que "o artigo 240º tem uma redação deficiente". Devia dizer,
opina, "qualquer coisa como: "Quem incentivar à violência em função
de uma sua característica de especial vulnerabilidade"... Como está
redigido, se for interpretado de uma forma absolutamente literal, as alegações
do PCP caberiam. Tem porém de haver uma interpretação teleológica."
Esta
interpretação é a que tem em conta a motivação e significado da lei e o
contexto jurídico, incluindo o internacional, em que se insere.
No Código Penal,
o artigo 240º está na secção dos "crimes contra a identidade cultural e a
integridade pessoal" (que entre 1995 e 2007 se intitulou "crimes
contra a paz e humanidade") e na qual se encontra também a "tortura
ou outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos" e apenas mais dois
tipos ("omissão de denúncia" e "incapacidades", relativos
aos crimes de tortura; todos os restantes, que incluíam "incitamento à
guerra", "genocídio" e "crimes de guerra contra
civis", foram revogados).
Frisando que os
bens jurídicos protegidos pelo artigo 240º são "a igualdade entre as
pessoas e, indiretamente, a integridade física, a honra e a liberdade", o
jurista especializado em legislação internacional de Direitos Humanos citado no
início deste texto exprime a sua total discordância com a opinião de José Neves
da Costa. "Está a introduzir um elemento no tipo penal que não está lá.
Não há jurisprudência internacional que sustente essa interpretação restritiva.
Este crime existe noutros países e em nenhum é lido assim. Podíamos atacar o
artigo 240º por ficar aquém do âmbito de proteção que o direito internacional
confere. Por exemplo o artigo 14º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos é
mais abrangente [este artigo, "proibição de discriminação", inclui
também a língua, opiniões políticas ou outras, e a riqueza nas características
que merecem proteção], e o Estatuto de Roma também menciona fatores
discriminatórios que não estão no 240º."
Em desacordo
total com a perspetiva de Neves da Costa está também Paulo Saragoça da Matta:
"O discurso de ódio é a antecâmara da violência - é por isso que é
penalizado." Reiterando a sua opinião de que o Ministério Público deveria
abrir um inquérito às declarações dos dirigentes comunistas, admite no entanto
que tal não suceda. "Parece-me difícil que o MP tenha coragem de abrir um
processo-crime do 240º contra um partido ou ex-deputados."
Nota: artigo
corrigido às 18H010 de 23 de abril. Paulo Saragoça da Matta, ao contrário do
que se afirmava, não é "ex" juiz ad hoc do TEDH, está na lista dos
juízes ad hoc deste tribunal para 2022.
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