OPINIÃO
Ihor e Roman
O tapete vermelho estendido a um oligarca russo do
círculo mais próximo de Putin contrasta com o trato reservado a um trabalhador
ucraniano que vinha à procura de trabalho para dar uma vida melhor à família.
Susana Peralta
11 de Março de
2022, 0:57
https://www.publico.pt/2022/03/11/opiniao/opiniao/ihor-roman-1998368
Na semana
passada, no podcast Today in Focus, do britânico The Guardian, o jornalista
Oliver Bullough falava do love affair britânico com o dinheiro russo. Bullough
dedicou parte da sua carreira a cobrir as ligações de Londres aos oligarcas
russos e publicou esta semana o livro Butler to the World, literalmente
“mordomo” do mundo, que explica como o Reino Unido “ajuda as piores pessoas do
mundo a lavar dinheiro, a cometer crimes e a escapar” – assim reza o subtítulo
do livro que está na minha lista de leituras próximas.
O dinheiro sujo
de oligarcas russos e outros ajuda os setores imobiliário e financeiro, por
exemplo. Mas não só. Alisher Usmanov, um dos oligarcas de Putin agora
sancionados, já investiu no Facebook, na Apple e no Twitter. Mikhail Fridman
investiu na Uber. Alexei Mordashov é dono de um terço do maior operador
turístico europeu, Tui. A lista de oligarcas que estiveram nos órgãos de gestão
de museus famosos, como os nova-iorquinos Museu de Arte Moderna e Guggenheim ou
a londrina Tate Modern, emprestaram coleções milionárias ou doaram montantes
não menos estratosféricos é vasta: Vladimir Potanin, Petr Aven, Leonid
Mikhelson. E, claro está, o futebol: Chelsea, AS Monaco, Cercle Brugge.
A verdadeira
extensão da rede de investimentos destes homens-fortes de Putin nas economias
das democracias liberais ainda está por determinar. Muito deste dinheiro é
canalizado através de complicadas redes de empresas detidas em jurisdições
offshore, o que dificulta a identificação dos beneficiários últimos de cada
investimento. Chega a ter contornos caricatos: o superiate Scheherazade, no
valor de 700 milhões de dólares, está neste momento atracado num porto
italiano, sem que as autoridades saibam se o devem confiscar, por não se saber
a quem pertence – os rumores dizem que é do próprio Putin.
Estas complexas redes de interesses económicos, empresas,
contas bancárias e testas-de-ferro não nascem por geração espontânea. Nem são
montadas e geridas pelos próprios oligarcas. Há uma indústria de serviços nos
nossos países que vive disto, que inclui escritórios de advogados, bancos,
consultores fiscais, auditores. Alguns são grandes empresas, outros indivíduos
isolados. Os ganhos de cada um destes facilitadores (que são poucos) são
substanciais. Ganhos concentrados numa elite bem relacionada é receita para uma
mudança lenta. Foi precisa uma guerra infame para começarmos a levar isto mais
a sério – e ainda há tanto por fazer!
Alegremo-nos,
pois, porque já temos um português na lista de bilionários da Forbes. Roman
Abramovich, que se naturalizou num processo de contornos pouco claros, agora
sob investigação da Procuradoria-geral da República. É público que foi um dos
maiores financiadores do Museu do Holocausto, um espaço gerido pela Comunidade
Judaica do Porto, que certificou as origens lusas do oligarca. Há também 18
edições mal explicadas na página da Wikipedia dedicada a Roman, feitas pelo
museólogo e arqueólogo da dita associação, entre junho e novembro de 2021,
período que coincidiu com o processo de obtenção da nacionalidade.
Abramovich tinha
um interesse evidente neste passaporte europeu, numa altura em que a pressão
para sanções já subia devido à repressão do movimento oposicionista de Navalny.
Abramovich jogou pelo seguro. Menos de um ano depois de se ter tornado
português, foi efetivamente sancionado pelo Reino Unido esta semana.
No capítulo das
sanções aos oligarcas russos, o Governo português e o Banco de Portugal têm
sido lacónicos. Afirmam que têm implementado as regras europeias, sem mais. Há
várias perguntas para as quais gostaríamos de ter reposta, como o montante de
ativos financeiros e imobiliários, ou eventuais participações em empresas, que
tenham sido abrangidos pelas sanções. A informação pública é escassa. A VTB
capital, cuja casa mãe, o Banco VTB, foi sancionado na União Europeia e está
fora do sistema SWIFT, é acionista do Banco Finantia. Um tweet de Rui Pinto de
há uma semana dava conta de um avião privado português utilizado por Alexander
Mikheev, CEO da empresa Rosoboronexport, exportadora de armas que já está na
lista das sanções europeias desde a invasão da Crimeia. No caso de Roman
Abramovich, era mesmo importante que o Governo nos explicasse de que forma a
nacionalidade portuguesa o vai eventualmente proteger de algumas consequências
das sanções britânicas. Pode até ser que não proteja, ou apenas em parte – mas
que ninguém nos diga nada a este respeito é inaceitável.
Isto não tem nada a ver com a reparação histórica dos
judeus sefarditas. Tem a ver com uma legislação laxista, através da qual o
Estado português delegou numa organização privada a verificação das condições
para a atribuição da nacionalidade, sem mecanismos de controlo que garantam a aplicação
isenta da lei. Em janeiro, a Frente Cívica pediu ao Instituto de Registos e
Notariado informação estatística que permita avaliar a forma como o Estado está
a controlar a aplicação da lei. Ainda antes deste pedido, o IRN tinha já
avançado com um inquérito sobre o processo do nosso compatriota Roman, cujos
resultados sairiam em fevereiro. Já lá vão dois meses, e do IRN não temos
notícias. Nem acerca do justo e urgente pedido da Frente Cívica, nem do dito
inquérito.
Volto, então ao
podcast e a Oliver Bullough. Numa das partes da conversa que mais me
interpelaram, falava do perigo para as nossas democracias de acolher estas
pessoas pelas razões erradas, isto é, devido à sua riqueza. Bullough dizia que
os super-ricos de países não democráticos estão habituados a conseguir
privilégios devido à sua proximidade com os poderosos, em vez de seguirem as
regras das pessoas comuns. Isso corrói a essência da nossa vida democrática,
assente no princípio de que todos somos iguais perante as instituições e as
leis do país.
Não me tenho
cansado de pensar nestas palavras a propósito da forma como o meu país estendeu
o tapete vermelho a um oligarca russo do círculo mais próximo de Putin, que se
tornou multibilionário à custa do povo russo. E de como isto contrasta com o
trato reservado a um trabalhador humilde ucraniano que vinha para Portugal à
procura de um trabalho que lhe permitisse dar uma vida melhor à sua família.
Fez ontem dois
anos que o ucraniano Ihor Homeniuk chegou a Portugal. Faz este sábado dois anos
que morreu às mãos do Estado português. Pior: as autoridades do país, tão
afáveis com as ilicitudes de Roman, varreram o crime que matou Ihor para
debaixo do tapete durante nove longos meses, até ao puxão de orelhas público da
comissária europeia Ylva Johansson.
A autora é
colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico
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