OPINIÃO
A miséria moral da esquerda iliberal
Não surpreende que o que resta da esquerda maniqueísta
continue a olhar o mundo na perspectiva saudosista da Guerra Fria. Se o ataque
à Ucrânia serviu para alguma coisa, foi para expor a inconsistência dos seus
mitos.
Manuel Carvalho
11 de Março de
2022, 6:00
https://www.publico.pt/2022/03/11/opiniao/opiniao/miseria-moral-esquerda-iliberal-1998337
A guerra
raramente promove consensos e a que está a devastar as cidades da Ucrânia não
foge à regra. Não faltam por aí crédulos como Chamberlain, simpatizantes dos
ditadores militaristas como Lord Halifax ou até meros vendedores da alma
própria e alheia como Pétain. Entre nós, não faltam também os que se servem
dessa extraordinária superioridade moral das democracias liberais, a de acolher
e estimular pontos de vista divergentes, para caírem no relativismo moral e
manipularem o indispensável julgamento sobre quem é vítima e inocente e quem é
agressor e culpado. O festim do relativismo que tende a dizer que Putin é culpado
mas… perturbou o Bloco de Esquerda, agravou a obsolescência doutrinária do PCP
e chegou a um patamar digno de monumento com a recomendação de Boaventura Sousa
Santos (B.S.S.) para que a Europa faça a sua autocrítica perante o que acontece
em Mariupol, em Kharkiv ou em Kiev.
Não surpreende
que o que resta da esquerda maniqueísta continue a olhar o mundo na perspectiva
saudosista da Guerra Fria. A rigidez conceptual do seu mundo luta ainda por
essa memória do confronto entre dois blocos. Não havendo hoje um lado bom (a
URSS e o Pacto de Varsóvia), continua a haver pelo menos um lado mau (a NATO e
os Estados Unidos). Se antes era glorioso estar do lado soviético ou, depois da
vergonha da invasão da Checoslováquia, ser “melhor vermelho do que morto”, hoje
os resquícios desse tempo perduram no ódio aos Estados Unidos e no apoio a tudo
e todos que os possam desafiar ou comprometer.
Em vez de porem
as democracias contra as autocracias em confronto, preferem falar nos EUA como
o eterno “império do mal”, ignorando que Trump foi amigo e protegido de
Vladimir Putin, esquecendo que a Rússia desenvolve há anos planos para apoiar
Salvini ou Le Pen. Pouco importa que Putin e Moscovo estejam hoje no lado
oposto do comunismo, que estejam até de braço dado com os populismos de pendor
fascizante. Importa sim é explorar todas as formas de alimentar o ódio visceral
que os EUA lhes merecem.
E quando se diz
ódio visceral tem-se em apreço o peso das palavras. Porque não é o conhecimento
da história política ou das ideias que justifica a forma como essa esquerda
fossilizada relativiza a violência da Rússia sobre a Ucrânia. É, pelo
contrário, a mentira e a manipulação. Quando Boaventura Sousa Santos diz que a
Europa deve envergonhar-se por não ter sabido evitar a guerra, está a usar a
narrativa contrafactual para salvar Putin e culpar a Europa pelo seu
imperialismo militarista. Da mesma forma, quando culpa os Estados Unidos pelo
golpe no Brasil em 2016 que elegeu Bolsonaro, não baseia em coisa alguma esta
teoria da conspiração nem diz que o Presidente mais cavernícola da democracia
brasileira simpatiza com Trump e Putin e odeia Joe Biden e a democracia
americana.
Esta manipulação
cheia de ranço soviético e antiamericanismo primário não se fica pela acusação
à Europa, afinal a culpada por não ter salvado o mundo das garras de um
ditador, ou mera extensão dos desígnios da dominação mundial da América. Mais
grave ainda é considerar que os Tratados de Minsk foram violados pela Ucrânia,
quando se sabe que as repúblicas populares de Donetsk e Lugansk trataram de
marcar eleições logo em Novembro de 2014, em clara violação dos tratados, com o
apoio da Rússia e o protesto dos negociadores da OSCE. Uma mentira tão
inaceitável como a de dizer, como também o PCP defende, que em 2014 houve um
“golpe” contra um Presidente eleito democraticamente.
Um intelectual de
esquerda com os pergaminhos e o prestígio de B.S.S. certamente interpretaria a
intensa e corajosa luta popular na Praça Maidan, que durou mais de 100 dias e
causou mais de 100 mortos, como uma façanha digna da Primavera dos Povos ou da
Comuna de Paris se na origem da rebelião não estivesse o cumprimento de acordos
com a União Europeia. A traição à vontade popular, ou expressões ainda mais
eloquentes consagradas na terminologia revolucionária, seria sem dúvida um bom
argumento para explicar e justificar a queda de Viktor Ianukovich. Mas isso só
aconteceria se Ianukovich não tivesse esmagado o desejo dos ucranianos em
aproximar-se da democracia europeia e, pelo contrário, tivesse cedido às
exigências da Rússia. O Euromaidan seria um acontecimento com enorme potencial
para ilustrar o património das glórias populares dessa esquerda, só que,
infelizmente para os seus arautos, fez-se em nome das democracias burguesas da
Europa.
Que Boaventura Sousa Santos ou o PCP defendam Putin, a
Rússia e a agressão à Ucrânia, estão no seu direito. Mas que digam então de
forma livre e consciente que a Rússia e a autocracia de Putin (ou a China) lhes
fazem falta, para que a democracia liberal do ocidente tenha opositor à altura
Na mesma linha
delirante está a tese de que há linhas de fundo da política externa de
Washington que “provocaram a Rússia” para se “expandir”, de modo a que quando
se expandisse pudesse ser “criticada por fazê-lo”. Lê-se e custa a acreditar
que um relatório da Rand Corporation citado por B.S.S. seja suficiente para
corroborar tão delirante visão. Quer isso dizer que os EUA e a UE estimularam o
ataque à Ucrânia apenas para poderem hoje dizer que a Rússia é um perigo para a
segurança mundial e a atacarem com sanções? Acreditar nisto não difere muito da
crença de que os comunistas comiam criancinhas. Afinal, Putin ataca a Ucrânia
não por recusar o seu direito a ser uma entidade histórica, ou por a querer
desmilitarizar ou “desnazificar”. Não: responde apenas a uma provocação.
Numa democracia
(e num jornal europeu, democrático e pluralista como o PÚBLICO) cabem todos
estes devaneios, mesmo que ancorados em visões distorcidas ou manipuladas da
História – ao contrário do que acontece na ditadura de Putin que B.S.S. tão
ardilosamente protege, a divergência é um tempero indispensável das sociedades
livres. Mas há nesta forma de explorar o relativismo uma hipocrisia que começa
a ser intolerável. Que B.S.S., ou o PCP, ou quem quer que seja, defendam Putin,
a Rússia e a agressão à Ucrânia de forma aberta, corajosa e frontal, estão no
seu direito. Mas que digam então de forma livre e consciente que a Rússia e a
autocracia de Putin (ou a China) lhes fazem falta, para que a democracia
liberal do ocidente, que atrai os jovens ucranianos ou bielorrussos, tenha opositor
à altura.
Não podem nem
devem tergiversar com meias verdades ou mentiras inteiras apenas para expor a
sua crença num mundo bipolar onde os maus estão na Europa e na América. Se o
ataque à Ucrânia serviu para alguma coisa, foi para expor a inconsistência dos
seus mitos. Conservemos, pois, as relíquias doutrinárias do mundo bipolar e
guardemo-las longe da guerra na Ucrânia. Como memória, dão sentido ao nosso
tempo e exacerbam o valor da democracia dita burguesa; como exercício para
interpretar o presente da Rússia, da Ucrânia e do Ocidente, só garantem as
ideias moles do relativismo e uma evidente falta de pudor perante o sofrimento
do povo ucraniano.
Sem comentários:
Enviar um comentário