EMPRESAS
Maiores bancos portugueses recusaram apoio à Dielmar
Banca nacional não quis emprestar sem garantias e estas
não podiam ser dadas pelo Estado porque a empresa estava desde 2019 sem capital
próprio suficiente.
Victor Ferreira
3 de Agosto de
2021, 21:31
A insolvência da
Dielmar, em Alcains (Castelo Branco) é uma bomba-relógio na mão de mais de 300
trabalhadores que se arriscam a perder o emprego, se o caminho for a
liquidação. Uma das últimas tentativas para evitar esta situação foi pedir
ajuda à banca. Mas os quatro maiores bancos portugueses recusaram, porque já
era tarde de mais.
Em 2020, já em
plena pandemia, a empresa viu-se afastada dos apoios das linhas
covid criadas pelo Estado. E bem precisava delas. O volume
de negócios estava a cair drasticamente, de nove milhões de euros em 2019
para três milhões em 2020. O que agravava ainda mais o desequilíbrio financeiro
da Dielmar que, no final de 2019, já violava o artigo 35 do Código das
Sociedades Comerciais, ou seja, o capital próprio era inferior a metade do
capital social.
As empresas nesta
situação são consideradas em dificuldade e, pelas regras europeias, não
poderiam ser ajudadas pelos Estados. Por isso, o Estado português não podia
emitir garantias para novos créditos da Dielmar enquanto durasse a pandemia. E
sem garantias públicas, nenhum dos principais bancos nacionais acedeu a ajudar.
Novo Banco, BCP, Caixa Geral de Depósitos e Santander foram todos contactados.
E todos fecharam a porta, segundo apurou o PÚBLICO.
Em certas
situações de incumprimento do referido artigo 35.º, as empresas reduzem o
capital social para cumprir o rácio. Mas neste caso não era possível. A
abordagem a investidores, que fora feita com ajuda do Estado como contou esta
segunda-feira o ministro Siza Vieira, não deu frutos. Algumas sociedades de
capital de risco veriam a Dielmar como um projecto de valor negativo.
Nas contas dos
últimos dez anos, estava tudo abaixo de zero. O resultado operacional (EBITDA),
o dinheiro gerado pelas operações correntes da empresa, foi negativo mesmo no
melhor ano da década: em 2018, foi de menos 250 mil euros. Tal resultado piorou
em 2019 e 2020, com um EBITDA (resultados antes de impostos, juros,
depreciações e amortizações) negativo de 790 mil e 2,5 milhões,
respectivamente.
Isto significava
que o mero funcionamento corrente e normal (como em 2018 ou 2019) era
insuficiente para manter as contas positivas. Uns analistas apontaram para um
peso excessivo da estrutura de custos, outros viam uma estratégia comercial
errada que gerava um problema de receita.
Seja como for, a
administração da empresa, liderada pela família Rafael, foi mantendo o rumo que
entendia. Nos contactos que o PÚBLICO fez sobre este assunto, foi sendo
referida a capacidade de Ana Paula Rafael, rosto principal da empresa, de
estabelecer e manter relações privilegiadas com altas figuras nacionais de
diferentes círculos.
Amiga do actual
Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, Ana Paula Rafael vivia e
trabalhava no interior do país mas estava mais perto do poder do que a maioria
dos empresários do litoral. Muitas figuras influentes passaram, ao longo dos
anos, pelo famoso camarote da Dielmar no Estádio da Luz.
Aos olhos mais
desatentos, a Dielmar era uma marca de prestígio, o alfaiate do Benfica, das
estrelas de televisão ou da selecção nacional de futebol que ganhou o Euro
2016. Mas quem a acompanhava sabia que era um poço de problemas. Nunca
gerou dinheiro para investir na modernização (a última injecção pública
desapareceu quase logo na banca), concorria num mercado povoado por marcas de
escala internacional (como a Massimo Dutti) e competia, sem ter essa escala
além-fronteiras, num mercado nacional exíguo, nas mesmas ruas e com preços mais
caros.
O histórico de
prejuízos vale mil palavras. Em 2011, 747 mil euros. Em 2012, 1,7 milhões. Em
2013, 700 mil. Em 2014, 2015 e 2016 foram 976 mil, 594 mil e 1,57 milhões,
respectivamente. Em 2017 voltou a ser na ordem dos 700 mil, em 2018
aproximou-se novamente do milhão, fasquia ultrapassada tanto em 2019 como
2020.
Ou seja, quando o
Estado mete dinheiro na Dielmar pela última vez, algures entre 2017 e 2018, já
a empresa levava sete a oito anos consecutivos de prejuízos. Mesmo assim, e
apesar de já deter cerca de 30% do capital sem conseguir mudanças, naquela
época é decidido que o Fundo Imobiliário Especial de Apoio a
Empresas (FIEAE), criado em 2009 num dos governos de Sócrates, deveria
entrar com 2,5 milhões de euros.
Este fundo, cuja
existência tinha sido renovada em 2016 por mais quatro anos pelo então
secretário de Estado João Vasconcelos, falecido em 2019, fica com o
património imobiliário da Dielmar, arrendando-o “com opção e obrigação de
compra à própria empresa”. As regras do fundo, por onde já passou a actual
ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, era o de apoiar empresas
economicamente viáveis. Apesar de naquela altura já haver avaliações negativas
sobre a viabilidade da Dielmar, o investimento avançou durante o consulado de
Ana Teresa Lehmann na secretaria de Estado da Indústria.
"Gestão
muito pouco clara"
Em troca, o
Estado exigiu uma reestruturação operacional e de gestão que não aconteceu.
Quem o disse foi o actual ministro da Economia. Na segunda-feira, Pedro Siza
Vieira seguiu o guião habitual e mostrou preocupação. Mas o governante saudado
como “ministro das empresas” pôs de lado o politicamente correcto,
individualizando abertamente a “gestão muito pouco clara” de uma empresa.
Mais: numa intervenção de cerca de oito minutos disse duas vezes que o dinheiro
do Estado “não serve para ajudar empresários”. E avisou que provavelmente o
Estado não recuperaria os oito milhões que meteu na Dielmar em dez anos.
O tom único desta
intervenção ganhou ainda mais destaque com o comunicado que se lhe seguiu,
emitido pelo ministério. Todo ele, em tom de desmentido ao comunicado da
administração da Dielmar, que horas antes dissera que a insolvência era culpa
da pandemia. O comunicado revelava as dívidas da empresa (10,3 milhões à banca,
Segurança Social, fisco e fornecedores). Alegava que um dos fundos decidiu
desinvestir em 2020 – o que, apurou o PÚBLICO, não aconteceu já que a opção de
compra não foi concretizada por falta de dinheiro do accionista principal.
Dizia ainda que o Governo soubera da notícia pela comunicação social.
No entanto, o
executivo sabia bem dos problemas: como o PÚBLICO confirmou, muitos técnicos e
políticos estavam cientes do caminho errado da Dielmar e, nos últimos dois
anos, viam a derrocada como inevitável. Para esses, era apenas uma questão de
tempo.
Para o PS, o
pedido de insolvência a um mês e meio de distância das próximas eleições
autárquicas pode ser um desenvolvimento preocupante. Os socialistas mandam na
Câmara de Castelo Branco, com maioria absoluta, desde 1997. E embora o Governo
PSD-CDS também tenha prolongado o FIEAE no seu mandato, foram governos do PS
que, na última década, criaram e alimentaram aquele fundo e outro, o
FACCE, que financiaram a Dielmar.
Em Castelo
Branco, a população local pode, por outro lado, olhar para essa factura como
uma contribuição nacional para haver indústria fora dos grandes centros, uma
espécie de compensação pela interioridade.
Para alguns
observadores, a Dielmar é agora usada como exemplo do risco sistémico da
pandemia sobre o têxtil e vestuário. Mas a Dielmar não é isso, na perspectiva
de quem seguiu o seu rumo de perto. Despedimentos e encerramentos nestes
sectores estão previstos pelas associações sectoriais pelo menos desde 2018 e a
pandemia não entrava nessas previsões. Se a covid tem culpa é a de expor
as fragilidades que sempre estiveram à vista, tanto na Dielmar como na
intervenção estatal, acreditam.
tp.ocilbup@arierrefov

Sem comentários:
Enviar um comentário