A esquerda “identitária” diz adeus a Marx
A nação não conta, a religião não conta, a classe social
conta cada vez menos, mas a raça, a cor, o sexo e o género contam muito, quase
tudo.
José Pacheco Pereira
26 de Janeiro de 2019, 6:45
Uma parte importante da nossa esquerda radical, a das
“causas fracturantes” e “identitárias”, mesmo quando se presume de marxista,
abandonou há muito aspectos essenciais da interpretação marxista do mundo, em
particular a ideia central de que é a relação de exploração entre o capital e o
trabalho que define a forma actual da luta de classes. Ou seja, que há inscrito
no capitalismo uma relação de exploração que só se elimina com a abolição da
propriedade privada pela revolução. Não é uma pequena coisa, é o núcleo central
da sua teoria, que Marx considerava ser “científica”.
Fê-lo, porque considerou que a teoria marxista estava
ultrapassada e não correspondia às características da sociedade contemporânea,
em particular àquilo a que se chama o mundo “pós-industrial”? Se fosse assim,
poderia ter um ponto, mas não foi assim. Foi por uma deriva que os clássicos do
marxismo (e, by the way, Cunhal e o PCP) classificariam com pouca ironia de
“pequeno-burguesa”, com uma forte componente intelectual, mediática, de moda,
do radical chic, que acompanha o progressivo abandono da sua relação com a
tradicional base social da esquerda no mundo operário e nos sindicatos.
Resumindo de forma simplificada: a nação não conta, a
religião não conta, a origem social não conta, a condição social não conta, a
classe social conta cada vez menos, mas a raça, a cor, o sexo e o género contam
muito, quase tudo. Essa política de “identidades” foi uma das responsáveis pelo
desastre do Partido Democrático nos EUA nas eleições presidenciais de 2016,
quando Hillary Clinton falava para as mulheres, os latinos, os LGBT, etc.,
etc., e Donald Trump falava para os americanos. Nós sabemos que Trump falava
para os brancos e para os ricos, mais do que para os americanos e para os
pobres, mas as palavras, o discurso e a retórica têm em democracia muito valor,
inclusive para acabar com ela. E Trump nos EUA, e muitos dos mais reaccionários
movimentos europeus, como a FN, ou os movimentos anti-imigração alemães, assim
como os populistas do Leste revelaram capacidade de mobilizar essa base social
de apoio que no passado era tida como sendo da esquerda. É verdade que esta era
uma afirmação muitas vezes voluntarista, mas correspondia ao cânone do
marxismo.
Em Portugal, quando se está num verdadeiro festival político
de identidades, neste caso a propósito do racismo, o efeito de ocultação do
discurso ideológico “anti-racista” sobre as questões de fundo esbate os
problemas sociais, a exclusão, a marginalização. Sem dúvida, a cor da pele
conta e agrava, mas as fontes do conflito são sociais antes de serem
“identitárias”. Um negro rico, ou académico, ou yuppie, ou consultor financeiro
é cada vez menos negro e um negro pobre é cada vez mais negro. Todos têm de lidar
com a cor da pele, como os brancos em África, e o racismo é inaceitável, mas só
a melhoria da condição social é eficaz para o combater.
E outro efeito das políticas “identitárias” é esconder
também os fenómenos associados de deriva criminal, a pequena criminalidade, a
receptação, o tráfico de droga, a imitação “identitária” dos gangs dos filmes
televisivos, que tem que ver com a “resistência” à polícia. Acaso pensam que a
defesa dos bairros, brancos e negros, como “território” em que a polícia não
pode entrar é apenas um resultado do ódio à “bófia”? O resultado é que parece
que falar disto é ser racista ou defensor da violência policial, ou seja, uma
denegação da realidade, coisa que se paga sempre caro.
A política de “identidades” e das “causas fracturantes” foi
um processo que facilitou a passagem de grupos revolucionários a reformistas.
Para o Bloco de Esquerda não está mal, porque isso facilita a aproximação com o
PS, cuja ala esquerda pensa o mesmo. O Bloco rende-se àquilo a que Rosa
Luxemburgo chamava “movimento” em detrimento dos “fins”, que considerava a
essência do reformismo, ou seja, o abandono da revolução, neste caso a favor de
uma miríade de “causas”. Facilita igualmente a integração de grupos
anti-racistas, feministas, LGBT, de defesa dos animais, antiespecistas, muitos
dos quais são fortemente subsidiados por dinheiros públicos. Eles podem colocar
o rótulo de anticapitalista em tudo isto, mas é pouco mais do que um rótulo.
Sendo a política de “identidades” uma forma de reformismo,
daí não vem nenhum mal ao mundo. Porém, tem um efeito perverso cujos custos a
esquerda ainda não percebeu que está a e vai pagar: é fazer espelho com a outra
política de “causas” da direita radical, os movimentos antiaborto e
anti-imigrantes, a islamofobia a favor da “civilização cristã”, a mulher dona
de casa, o anti-intelectualismo, a defesa dos valores “familiares”, o lobby
pró-armas nos EUA, ou “as meninas são de cor-de-rosa e os rapazes de azul” dos
Bolsonaros, os pró-tourada, os homofóbicos, etc. Acantonados nas suas “causas”,
cada uma reforça a outra, o SOS Racismo dá forças ao PNR e vice-versa, e fora
do “meio” destes confrontos, a nova direita “alt-right” ganha sempre mais
força, porque é capaz de transformar isto tudo num discurso global através do
populismo e a esquerda não.
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