Empurrados por programa de renda acessível, lojistas de São
Lázaro acusam Câmara de Lisboa de de fugir ao diálogo
Sofia Cristino
Texto
31 Janeiro, 2019
Os lojistas da Rua de São Lázaro não têm um dia de descanso
há quase um ano. O senhorio dos espaços comercias, a Câmara Municipal de Lisboa
(CML), informou-os de que teriam de abandonar os estabelecimentos, em Abril do
ano passado, para estes darem lugar a habitação do Programa Renda Acessível
(PRA). Desde então, os comerciantes têm feito tudo para permanecerem nos
armazéns de revenda, onde muitos estão há dezenas de anos. Mas a luta tem sido
penosa. Acusam o presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina (PS), de não
cumprir com as promessas de reunir com eles e da autarquia adoptar uma postura
“hostil”. A 23 de Janeiro, o Tribunal de Contas recusou o visto prévio ao PRA
previsto para aquela rua. Mas a autarquia promete recorrer da decisão,
atrasando assim, ainda mais, o processo.
“Em 2016, havia muita pressa em correrem connosco. Para quê? Meteram-nos
a ‘bomba’ nas mãos, e agora é isto”, critica um dos lojistas.
Nas lojas de revenda da Rua de São Lázaro, as prateleiras
estão mais vazias e o dia-a-dia faz-se com menos entusiasmo. Quase um ano
depois dos comerciantes terem sido informados, em Abril de 2018, pelo senhorio,
a Câmara Municipal de Lisboa (CML), de que teriam de abandonar os espaços
comerciais – anúncio que, garantem, prejudicou muito os seus negócios –,
continuam sem chegar a acordo com a autarquia. Dizem que as indemnizações
propostas pelo município continuam a ser “ridículas”. A acrescer a isso, o
Tribunal de Contas (TC) recusou, no passado dia 23 de Janeiro, o visto prévio
ao Programa de Renda Acessível (PRA) previsto para parte daquele arruamento,
alegando ilegalidades e incumprimento das exigências do regime jurídico das
parcerias público-privadas.
“Em 2016, havia muita pressa em correrem connosco. Para quê?
Meteram-nos a ‘bomba’ nas mãos, e agora é isto. Estão a brincar com as nossas
vidas, mas vão ter de responder por isso”, ameaça José Santos, 48 anos,
sócio-gerente da loja de têxteis Viúva de Luís de Mata. Apesar da exaustão,
promete não desistir de tentar manter a loja, nem que seja por via judicial.
“Quando dormimos mal uma noite, não estamos bem no dia seguinte. Eu sinto isso
todos os dias, não durmo bem há quase três anos. Isto é vergonhoso, a Câmara
nem se dispõe a ter uma conversa connosco”, queixa-se. Nos últimos anos, conta
ainda, perdeu muitos fornecedores e clientes, “assustados com o possível fecho”
das lojas. “A autarquia vai ter de pagar por isto, os prejuízos não são todos
para nós”, garante.
O tormento começou a 19 de Abril de 2016, quando a Câmara
Municipal de Lisboa (CML) anunciou a intenção de construir habitação, no âmbito
do Programa Renda Acessível (PRA), naquela parte da cidade. Três meses depois,
os comerciantes receberam uma carta da autarquia a solicitar que enviassem os
dados sobre a actividade económica das empresas. Em Abril de 2018, recebiam uma
carta a propor-lhes a saída e, em alguns casos, indemnizações, na altura
consideradas “ridículas” pelos lojistas. Numa sessão da Assembleia Municipal de
Lisboa, a 10 de Julho, Medina assegurou que o município tinha chegado a acordo
com um “número importante” de comerciantes da Rua de São Lázaro. Uma informação
que foi, prontamente, desmentida por José Fernandes, 61 anos, proprietário da
loja de revenda Deoferil Confecções. “Não chegaram a acordo com ninguém. A
saída dos dois comerciantes que foram embora foram impostas, porque se tratavam
de contratos de arrendamento precários”, diz.
Desiludidos com a
forma como a autarquia os tratou, criaram a Associação Comércio Tradicional Rua
de São Lázaro (ACTSL) para se fazerem ouvir. José Fernandes, representante dos
comerciantes, participou numa sessão da Assembleia Municipal de Lisboa (AML), a
25 de Julho de 2018, na qual pediu uma reunião à Câmara de Lisboa. O vereador
do Urbanismo, Manuel Salgado, deixou a promessa de que o presidente da Câmara
de Lisboa, Fernando Medina, entraria em contacto com os lojistas. Mas, até
hoje, o encontro não aconteceu. Três meses depois dessa ida à assembleia, a 30
de Outubro, José Fernandes interveio, novamente, numa sessão da AML para
relembrar a vontade de diálogo. “Desde 2016, a câmara nunca falou connosco por
iniciativa. Não merecemos ser tratados desta maneira”, disse. Apesar das
promessas do município, porém, continuam sem conseguir chegar à fala com a
autarquia.
José Fernandes, ali
há 30 anos, tem dado a cara pela luta destes comerciantes, mas agora sente-se
exausto. “Esta situação deixou-me muito abalado, e já só estou a conseguir
enfrentar os dias de trabalho com ajuda médica”, admite, desolado. Quando soube
da decisão do Tribunal de Contas, diz ter sentido um misto de emoções. “Por um
lado, fiquei contente, mas por outro apreensivo. Não sabemos o que vai acontecer,
o que nos causa ansiedade, todos os dias. Se tiverem de fazer um novo projecto,
espero que não se esqueçam de nós e que possamos fazer parte dele”, pede.
Dois números ao lado, na Confecção Boucosil, aberta desde
1980, o sentimento é o mesmo. Nuno Rocha, 35 anos, filho do gerente desta
firma, também mantém alguma esperança. “Espero que na realização do próximo
projecto pensem em nós. Entretanto, é sempre mais um bocadinho que estamos
aqui. Neste momento, não vamos fazer mais nada, porque eles [Câmara de Lisboa]
também não nos respondem, logo não há nada a que possamos reagir”, explica. No
café Caprichosa, logo no início da rua, João Barreiro, 64 anos, já não espera
muito do município. “A pressa era tanta e, de repente, ficou tudo neste estado
de impasse. Agora, se calhar vão ter de fazer outro projecto, e andaram a
torturar-nos para nada. Há meses que não nos dão novidades, a Câmara não nos
tratou com o mesmo respeito que nós a tratamos”, critica.
O acórdão do Tribunal
de Contas, que chumba o programa de renda acessível projectado para a Rua de
São Lázaro, sustenta que o contrato em causa é uma parceria público-privada,
com consequente aplicação do seu regime legal específico, e não um contrato de
concessão, conforme a Câmara Municipal de Lisboa (CML) o encara. “Existe, pois,
um conjunto de condições que deveriam ter sido observadas antes do lançamento
do procedimento pré-contratual respeitante ao contrato ora submetido a
fiscalização prévia – e que, manifestamente, não foram respeitadas”, lê-se no
acórdão dos juízes. Entre outras questões, repara ainda o tribunal, não é
apresentado um estudo de viabilidade económico-financeira, sendo que o
documento enviado pela CML relativo a “estudos prévios sobre as condições de
viabilidade económica” daquela operação “não cumpre minimamente as rigorosas
exigências do regime jurídico das parceiras público privadas” (RJPPP).
Esta decisão do
Tribunal de Contas gerou dúvidas e revolta em alguns lojistas, mas há também
quem não tenha ficado nada surpreendido. “Quando não nos deram o direito de
opção de compra do imóvel, já violaram a lei. A notícia do TC não nos
surpreendeu, uma vez que o processo todo está cheio de ilegalidades. Isto não é
uma parceria público privada, isto é um financiamento de uma empresa privada à
Câmara”, acusa Marcos Vidal, 43 anos, gerente da Pensão Bela-Flor e presidente
da Associação Comércio Tradicional Rua de São Lázaro (ACTSL).
Marcos Vidal acusa
ainda o município de manter “uma postura hostil” e de “desinteresse total” para
com os comerciantes. “O presidente da câmara nunca negociou connosco, nem se
digna a aparecer aqui, ao contrário do que prometeu. O processo está inquinado,
desde o início. Ainda nem nos conseguiram dizer qual seria o valor do trespasse
das lojas. Como podem sugerir indemnizações, sem considerarem estes valores
básicos?”, questiona. E critica, ainda, “a falta de honestidade” da autarquia
para com os comerciantes. “Primeiro, ofereceram-nos uma indemnização de 30 mil
euros e, depois de toda a exposição mediática, já falavam em 49 mil euros. Onde
está a seriedade?”, pergunta.
Ouvido por O Corvo
sobre a decisão do Tribunal de Contas, João Gonçalves Pereira, vereador do
CDS-PP, diz ainda estar expectante quanto à resposta da Câmara de Lisboa, mas
não estar surpreendido com a novidade. “Tendo em conta a postura que a
autarquia tem tido nestas situações, como nos terrenos da Feira Popular, não
nos surpreende nada. O que perguntamos, agora, é ‘qual será a próxima?’”, diz o
centrista. O eleito do CDS-PP promete analisar o acórdão com atenção, mas, para
já, não quer tecer mais comentários sobre o assunto. “Vou aguardar por uma
resposta da câmara”, avança.
Ana Jara, vereadora
do PCP, diz também aguardar explicações por parte do município, e condena as
parcerias público-privadas. “Foi alienado muito património, nos últimos anos, e
grande parte não foi disponibilizado para habitação. Não concordamos com as
parcerias público-privadas e defendemos outra solução, como o Programa de
Arrendamento a Custas Acessíveis (PACA), por nós proposto”, sugere.
O PACA, proposto
pelos comunistas e aprovado pela Câmara de Lisboa, em Fevereiro do ano passado,
ainda não saiu do papel. A ideia do programa é que a autarquia atribua
habitação exclusivamente pública, sem intervenção de privados, como está a
acontecer actualmente no Programa de Renda Acessível (PRA). “A Câmara tem,
neste momento, um bom orçamento para habitação, e esperemos que faça um bom uso
dele, tendo em conta o património que tem disponível”, diz Ana Jara.
O vereador do PSD
João Pedro Costa diz que acompanha a situação “com muita preocupação” e tece
críticas mais duras ao executivo. “Estamos disponíveis para ajudar a Câmara de
Lisboa a encontrar soluções. Neste momento, não está a encontrá-las, porque não
sabe como o fazer ou não quer fazer. A habitação é, agora, o principal problema
da cidade, mas a autarquia não o tem conseguido resolver”, diz. O vereador
social-democrata considera ainda que o Programa de Renda Acessível, nos moldes
em que está feito, não resolve o problema da falta de casas para a classe
média. “O PRA não é solução e a classe média não tem de depender da câmara para
encontrar casa. A autarquia tem o papel de regular o mercado, e tem de o pôr em
prática. O município tem muito património municipal, há alternativas”,
sublinha. Quando à decisão do Tribunal de Contas, João Pedro Costa diz que “é
necessário entender bem o teor do acórdão”, mas que esta não o surpreende. “Já
tínhamos receio que isto acontecesse e, agora, volta tudo à estaca zero. É
preciso tomar medidas urgentes e estruturais, e não de longo prazo. Agora, a
implementação do programa vai demorar mais”, antevê.
Num comunicado
enviado às redacções, no passado dia 23 de Janeiro, o gabinete do vereador dos
Direitos Sociais, Manuel Grilo (BE), disse que a Câmara Municipal de Lisboa
“tem hoje uma margem maior para investir em habitação” e desafiou o PS a
“utilizar estes recursos para consolidar um só Programa de Renda Acessível, com
financiamento público, num investimento sem precedentes para regular o mercado
de habitação para as classes médias da cidade”. Segundo a mesma nota, “isto
evitaria as desvantagens da proposta vetada agora pelo Tribunal de Contas”, que
apresenta “prejuízos para o erário público”.
O Programa Renda
Acessível prevê o arrendamento de cinco mil a sete mil fogos a preços
controlados, em quinze zonas da cidade. Na Rua de São Lázaro, já foram
concessionados 16 edifícios municipais, que serão cedidos pela autarquia em
direito de superfície para serem reabilitados por privados, dando origem a 126
apartamentos, divididos em tipologias T0, T1 e T2, com rendas entre 100 e 350
euros.
A Câmara esclareceu,
a 19 de Abril de 2018, que “o investimento inicial é de 12 milhões de euros” e
que a empresa vencedora do concurso público, a Brightempathy, tem um prazo
máximo de 36 meses para projectar e construir as novas habitações”. O programa
prevê parcerias do município com o sector privado. Enquanto o primeiro
disponibiliza terrenos e edifícios dos quais é proprietário, ao segundo caberá
construir ou reabilitar.
O Corvo questionou a
Câmara de Lisboa sobre se a recusa do visto prévio ao projecto de renda
acessível alterará os planos pensados para aquela zona; se reconsidera a
hipótese de manter as lojas de comércio em risco de encerrarem; se a execução
do Programa de Renda Acessível naquela zona está em risco; e quanto tempo
prevê, agora, que demore o início dos trabalhos. As respostas não chegaram,
contudo, até ao momento de publicação deste artigo.