Império
de ficção
05 DE MAIO DE 2016
João César das Neves /
http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/joao-cesar-das-neves/interior/imperio-de-ficcao-5158552.html
Portugal estagnou.
Investimento e poupança em mínimos históricos, banca em momentos
aflitivos, crescimento anémico. Em certas dimensões estamos pior do
que em 2008 ou 2011. O mais espantoso é como dirigentes e analistas
parecem ignorar o desastre em progresso, mergulhados em temas
laterais. As prioridades políticas que dominam os debates são
reduzir o horário dos funcionários, fingir subir as pensões,
baixar portagens ou recomprar os prejuízos da TAP. A presente
conjuntura política anda, mais do que nunca, envolvida num véu de
ficção.
A origem da
disfunção cognitiva entre discurso e sociedade é mais profunda do
que parece. Realmente ela constitui o último episódio de um longo
mito nacional, paralelo ao eldorado ou Encoberto. A ilusão começou
com a entrada no mercado único europeu em 1992. A cooperação
financeira e a construção da moeda única, então iniciadas,
desceram acentuadamente as taxas de juro para um país habituado a
estar à margem dos mercados internacionais. De novo, como nas épocas
da pimenta da Índia e do ouro do Brasil, os sonhos mais ambiciosos
pareciam acessíveis. O país começou um longo período de gastos a
crédito, por parte das autoridades, mas também de empresas e
famílias. Portugal passou 15 anos a viver de empréstimos.
A primeira
consequência deste processo é naturalmente a enorme dívida
externa, pública e privada, uma das maiores do mundo, que nos
assombrará durante décadas. Mas o pior efeito foi o impacto em
hábitos e instituições. Durante esse longo período de ilusão, o
país acostumou-se e organizou-se para um trem de vida insustentável.
Paulatinamente, regalias passavam a direitos, sonhos tornaram-se
exigências, ambições ficavam certezas. As novas gerações foram
achando normal ter aquilo que os estrangeiros pagavam.
Este clima de ficção
terminou abruptamente em 2008, com a crise financeira internacional,
que constituiu um embate na realidade, aqui como em todo o mundo. Só
que por cá, embora muitos mudassem de vida, várias forças
limitaram-se a ajustar o mito, para evitar enfrentar a situação.
Níveis de vida empolados a crédito continuaram a ser vistos como
normais, procurando-se explicações alternativas para a sua
ausência. Surgiu então a segunda falácia, intensamente repetida
pela elite até parecer verdade. A tese defendia que o nosso
sofrimento era devido não à situação económica, mas às medidas
inúteis que a Europa impõe para a tratarmos. A famosa austeridade
é, portanto, uma rematada tolice, resultado de uma ortodoxia
economicista idiota e sádica, que destrói o Sul da União. Chega a
ser incrível como essa explicação consegue sempre evitar qualquer
referência à estagnação, dívida, défices e desequilíbrios.
Parece que tudo ficaria muito bem, desde que a troika não nos
incomodasse. Deixando cá o dinheiro que emprestou, claro! A única
menção ao passivo é para recomendar o seu repúdio. O qual,
naturalmente, seria uma solução mágica e um almoço grátis, sem
consequências nefastas no futuro.
O fim do programa de
ajustamento, em Junho de 2014, exigiu nova adaptação ao mito
básico. Terminada a vigilância externa, anunciou-se a reversão de
todos os cortes. Qualquer observação séria mostraria como isso
implicava um regresso impossível aos gastos ruinosos. Não só o
mundo já não está disponível para nos emprestar como nos tempos
áureos do endividamento, mas persistem fortes cancros financeiros,
que a austeridade não conseguiu extirpar, e que se vão traduzindo
em sucessivas crises bancárias. A urgência de um segundo resgate,
pelo menos para as instituições de crédito, torna-se
crescentemente provável.
O debate político,
porém, permanece no reino da ficção. A prioridade é partilhar os
despojos de uma prosperidade que realmente não existe. Chega a ser
patético ver a ânsia com que se prometem impossibilidades e
atribuem magras benesses a certos privilegiados, tomando essas
ninharias como fim da austeridade. Que, muito em breve, terá de ser
retomada. Entretanto, empresas e crescimento são vistos apenas como
caça para o fisco esquartejar no banquete dos grupos de pressão. É
isso que mata o investimento e o futuro. Assim, não admira a
estagnação.
Este caminho não
conseguirá evitar novo colapso. Que os cortes têm de regressar, é
já óbvio. A única dúvida de momento é se Portugal estará
completamente viciado na ficção, ou se estas propostas políticas
representam os últimos estertores de um mito morto. No primeiro
caso, esperam-nos várias gerações perdidas, como na Grécia,
Argentina ou nos tempos do império decadente.
César das Neves: "É
óbvio que os cortes têm de regressar"
NEGÓCIOS |
jng@negocios.pt | 05 Maio 2016
Em certas dimensões,
Portugal está pior do que em 2008 ou 2011, a probabilidade de
segundo resgate para a banca está a ganhar força e, no Estado, é
já óbvio que a austeridade terá de ser retomada, escreve o
professor de Economia da Católica no DN.
João César das
Neves considera que a probabilidade de segundo resgate para a banca
está a ganhar força e que, no Estado e nas políticas públicas, é
já óbvio que a austeridade terá de ser retomada, não obstante o
discurso de "ficção" do governo e de analistas que
parecem ignorar "o desastre em progresso". "Portugal
estagnou. Investimento e poupança em mínimos históricos, banca em
momentos aflitivos, crescimento anémico. Em certas dimensões
estamos pior do que em 2008 ou 2011. O mais espantoso é como
dirigentes e analistas parecem ignorar o desastre em progresso,
mergulhados em temas laterais".
Em o "Império
de ficção", artigo de opinião que publica nesta quinta-feira
no Diário de Notícias, o professor de Economia da Universidade
Católica lamenta que o debate político permaneça "no reino da
ficção", a alimentar a ilusão de que se estão a partilhar
"despojos de uma prosperidade que realmente não existe".
"O fim do
programa de ajustamento, em Junho de 2014, exigiu nova adaptação ao
mito básico. Terminada a vigilância externa, anunciou-se a reversão
de todos os cortes. Qualquer observação séria mostraria como isso
implicava um regresso impossível aos gastos ruinosos", escreve.
Porquê? "Não só o mundo já não está disponível para nos
emprestar como nos tempos áureos do endividamento, mas persistem
fortes cancros financeiros, que a austeridade não conseguiu
extirpar, e que se vão traduzindo em sucessivas crises bancárias. A
urgência de um segundo resgate, pelo menos para as instituições de
crédito, torna-se crescentemente provável", antecipa.
Contudo, diz, a
narrativa dominante ainda persiste em negar a realidade. "Chega
a ser patético ver a ânsia com que se prometem impossibilidades e
atribuem magras benesses a certos privilegiados, tomando essas
ninharias como fim da austeridade. Que, muito em breve, terá de ser
retomada. Entretanto, empresas e crescimento são vistos apenas como
caça para o fisco esquartejar no banquete dos grupos de pressão. É
isso que mata o investimento e o futuro. Assim, não admira a
estagnação".
Este caminho –
acrescenta – "não conseguirá evitar novo colapso". "Que
os cortes têm de regressar, é já óbvio. A única dúvida de
momento é se Portugal estará completamente viciado na ficção, ou
se estas propostas políticas representam os últimos estertores de
um mito morto", escreve, referindo-se aos 15 anos em que
Portugal está a viver de empréstimos – o que explica "a
enorme dívida externa, pública e privada, uma das maiores do mundo,
que nos assombrará durante décadas" - e ao facto de,
entretanto, o país ter-se acostumado a uma vida insustentável, com
as novas gerações a "acharem normal ter aquilo que os
estrangeiros pagavam".
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