A
última lição de Fernando Rosas
JOÃO MIGUEL TAVARES
03/05/2016 - PÚBLICO
Para
criar a linha imaginária que une a actual direita ao regime
salazarista vale tudo – incluindo combater a “reescrita da
História” com a reescrita do historiador.
No Verão de 2012, o
jornal Expresso começou a publicar a História de Portugal de Rui
Ramos em fascículos gratuitos. Assarapantado pela exposição de tão
insidiosa obra às massas ignaras, Manuel Loff assinou um par de
inconcebíveis artigos neste jornal – inconcebíveis não por
divergirem das interpretações de Rui Ramos acerca do Estado Novo,
mas por deturparem de forma escabrosa e escandalosa vários excertos
da obra, de forma a melhor encaixar Ramos e a sua História de
Portugal na tese do “revisionismo histórico”. Segundo muitos dos
nossos intelectuais de extrema-esquerda, há por aí uma
quinta-coluna de historiadores de direita obcecados em cortar nas
gorduras ditatoriais e fascistas do Estado Novo, para branquear o seu
legado histórico e abrir portas a um novo salazarismo século XXI.
Sim, é tão
estúpido quanto isso. Os delírios de Loff e as reacções que se
seguiram foram bem analisadas por Filipe Ribeiro de Meneses em
Slander, Ideological Differences, or Academic Debate? The "Verão
Quente" of 2012 and the State of Portuguese Historiography,
escrito para o jornal electrónico de História Portuguesa da
Universidade de Brown. Aconselho a leitura, que é gratuita,
instrutiva, ponderada e, pensava eu, a pedra derradeira sobre o
assunto – até à jubilação de Fernando Rosas, na semana passada.
O PÚBLICO esteve lá e assinou um longo artigo intitulado “Para
Fernando Rosas, só a História pode salvar o futuro”, adiantando
que “na sua lição de jubilação, o professor da Universidade
Nova de Lisboa apontou o dedo aos revisionismos e ao culto da
desmemória, dizendo que o seu objectivo é abrir caminho para uma
nova ordem, neoconservadora e neoliberal”.
Pensei logo: “Oh,
não, cá vamos nós outra vez.” E fomos mesmo. A meio do texto lá
regressava o nome de Rui Ramos, acompanhado de Vasco Pulido Valente,
ambos acusados de carregarem nas tintas caóticas da Primeira
República (uma maravilha de paz e harmonia, como todos sabemos) para
dessa forma “legitimar a ditadura militar e o salazarismo que lhe
teriam sucedido como aurora redentora”. Pergunta de um milhão de
euros: não sendo Rosas um Loff, por que raio sente ele necessidade
de vir aldrabar o pensamento de dois académicos portugueses,
empurrando mais uma vez a pobre historiografia nacional para a lama
do mais rasteiro combate ideológico?
A resposta está no
título do artigo: isto não é um combate sobre o passado, mas sobre
o presente e o futuro. A História é a retaguarda da política.
Rosas dá um exemplo prático das consequências do “apagão
selectivo da memória”: “É mais fácil impor as 10 ou 12 horas
de trabalho aos operários da indústria automóvel se se lhes apagar
a memória dos rios de sangue que correram para que a classe operária
europeia ou americana conquistasse a jornada de oito horas de
trabalho”, disse ele, ao mesmo tempo que tentava apagar a memória
da classe operária portuguesa, que não anda a discutir a imposição
das 10 horas de trabalho ao sector privado mas o regresso das sete
horas de trabalho ao sector público.
Para criar a linha
imaginária que une a actual direita ao regime salazarista vale tudo
– incluindo combater a “reescrita da História” com a reescrita
do historiador. O truque é velho: basta colocar na boca dos outros
aquilo que eles nunca disseram. Mas é triste, até pela consideração
intelectual que merece a obra do historiador Fernando Rosas. Foi uma
pena ele não ter podido comparecer à sua própria jubilação.
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