sábado, 28 de janeiro de 2023

Chega sereno, Chega histriónico: a “taberna” e a dupla personalidade no Parlamento

 




CHEGA

Chega sereno, Chega histriónico: a “taberna” e a dupla personalidade no Parlamento

 

Episódios e apartes constantes, deselegância, má educação, obsessão pelas redes sociais, misoginia, violência física. Os 12 deputados do Chega têm um estilo nunca visto na Assembleia da República.

 


Bárbara Reis

28 de Janeiro de 2023, 6:16

https://www.publico.pt/2023/01/28/politica/noticia/chega-sereno-chega-histrionico-taberna-dupla-personalidade-parlamento-2036662

 

Este mês, quando André Ventura disse aos gritos, na Assembleia da República (AR), que o Presidente Lula da Silva é “um bandido”, o insulto foi título de notícias nos media portugueses e até num jornal regional brasileiro: “Parlamento de Portugal tem discussão após ultradireitista xingar Lula.”

 

Se a intenção era dar nas vistas, o presidente do Chega teve êxito. Se era sobrepor-se a tudo o que acontecesse nesse dia no Parlamento, também.

 

Que o diga Carlos Guimarães Pinto, deputado da Iniciativa Liberal (IL): “Há dias, fiz uma intervenção a propor a eliminação das multas astronómicas pelo atraso de pagamento de portagens, um trabalho longo que fizemos para garantir que podia ser aprovado”, conta ao PÚBLICO.

 

No dia seguinte, o projecto de lei passou com os votos a favor da IL, PCP, BE, Livre e Chega.

 

“Mas à noite, no telejornal que vi, só saiu Ventura a chamar ‘bandido’ a Lula da Silva, o que, em termos de conteúdo, não tem qualquer efeito na vida dos portugueses. Ventura sabia a resposta que ia ter, sabia que o presidente da Assembleia iria interromper e dizer alguma coisa, sabia que ia criar um episódio. É essa a estratégia: a tentativa permanente de criar episódios. Estamos sentados ali ao lado e sentimos com antecedência o momento em que vai haver uma intervenção do Chega com o objectivo de criar um episódio que passe nos telejornais. Como duram 30 segundos, são fáceis de pôr nos telejornais. Entretém. O que tem substância é ofuscado.”

 

O padrão

O PÚBLICO falou com mais de 15 deputados, da esquerda à direita, sobre o primeiro ano do Chega como terceira força política no Parlamento e todos concordam que esta é uma característica central.

 

É mais evidente — e frequente — desde que passou de um para 12 deputados, a seguir às eleições legislativas de Janeiro de 2022. “Há episódios todas as semanas”, “às vezes todos os dias”, dizem os deputados.

 

À procura de um retrato do estilo do Chega no Parlamento, os deputados ouvidos falam de um padrão que inclui permanentes incidentes artificiais, permanentes apartes para interromper os discursos dos colegas, permanentes gestos deselegantes ou mal-educados, permanente obsessão por “trabalhar para as redes sociais” e aparecer nos telejornais. Isto pontuado por misoginia e violência física.

 

“É um estilo muito agressivo, no sentido mais neutro da palavra, que às vezes me obriga a recorrer ao artigo 89.º do regimento [da AR, sobre o "modo de usar a palavra"], o que é bastante raro”, diz Augusto Santos Silva, presidente da AR, que sublinha o facto de o padrão no Parlamento português ser a “cordialidade, civilidade e até consideração pessoal entre bancadas”.

 

A violência física

Nos últimos meses, houve pelo menos quatro relatos de cenas violentas que envolveram deputados do Chega.

 

A 6 de Janeiro, Rui Afonso, deputado do Chega, e Jerónimo Fernandes, dirigente do partido no Porto, discutiram num corredor da AR. Segundo o Observador, “trocaram palavras ofensivas que se ouviram noutros gabinetes e houve contacto físico agressivo entre os dois”. Na altura, o jornal entrevistou fontes do Chega que confirmaram que “o nível de voz subiu, houve ameaças e empurrões”.

 

A 25 de Agosto, o Diário de Notícias noticiou que Bruno Nunes, deputado e vice-presidente do grupo parlamentar do partido, agrediu fisicamente o seu colega Gabriel Mithá Ribeiro, também deputado, numa reunião do grupo parlamentar.

 

A 22 de Julho, o Observador noticiou que o líder parlamentar do partido, Pedro Pinto, ameaçou Nuno Saraiva, assessor do grupo parlamentar do PS, num corredor da AR. "Segundo os vários relatos de pessoas que assistiram, o deputado dirigiu-se ao assessor, encostou a cabeça à de Nuno Saraiva e disse: ‘Tens muito a crescer para me chamares fascista’ e ‘parto-te a tromba’.”

 

A 9 de Junho, Pedro Frazão, do Chega, e André Coelho Lima, do PSD, “pegam-se no corredor da Assembleia”, noticiou a CNN.

 

A misoginia

“No plenário, a misoginia dos deputados do Chega é muitíssimo visível: quando é uma deputada a falar, fazem aquele gesto com os dedos a abrir e a fechar, e é uma barulheira”, diz Isabel Moreira, do PS. “Com a Inês de Sousa Real [PAN], há sempre o dobro do barulho e da confusão. Com a Alma Rivera [PCP], é uma loucura. Sempre que fala, há guinchos, gargalhadas, gestos a ridicularizar”, diz Moreira, na AR há mais de dez anos. “Antes do Chega, o Parlamento não tinha isto. Sempre houve divergências, mas nunca este desrespeito. As pessoas sempre se ouviram umas às outras. Os deputados do Chega estão sempre a tentar arranjar incidentes, numa constante tentativa de boicote do normal funcionamento dos trabalhos.”

 

Uma das técnicas são os apartes. Não os apartes clássicos, sublinham os deputados, previstos no regimento. O artigo 89.º diz que “o orador não pode ser interrompido”, mas não considera interrupções “as vozes de concordância, discordância ou análogas”. Com o Chega, é diferente. São apartes nunca ouvidos na AR.

 

— Mas tu, o que é que tu queres?!

 

— A si, não vou responder, basta ver como envergonha as mulheres de cima do púlpito!

 

— Aí vem o peixe-balão!

 

— Ó borboleta!

 

— Lá vem este!

 

— O que é que ele vai dizer agora?!

 

— Nem parece que só come vegetais!

 

— Vai-te embora, palhaço!

 

— Miserável! Seu miserável!

 

Os deputados do Chega gozam com o sotaque dos deputados do Norte — e gritam “segurââânça!”, “segurââânça!”, a imitar o deputado que está a falar sobre segurança —; gozam com o corpo das colegas deputadas; gozam com o estilo dos colegas homens. De forma ostensiva. “Não falam para o lado num tom de voz normal. Gritam”, diz Guimarães Pinto. “Uma coisa é um aparte, outra é gerar ruído de tal forma que o orador não consegue continuar”, diz Pedro Delgado Alves, do PS.

 

Em casa, quando vemos na televisão, não se percebe a confusão. Nem quem está a falar se apercebe. “É preciso estar lá. Na televisão, só se ouve o som do microfone”, diz um deputado. É nas bancadas que a confusão é perceptível.

 

“Mais do que os apartes, os deputados do Chega dão nas vistas ao nível do gesticular”, diz Artur Soveral Andrade, do PSD. “Percebe-se que lhes dá gozo provocar, dar umas ‘caneladas’. Digamos que, no gesticular, no Chega há uma hiperactividade — para ser simpático.”

 

A taberna

Já houve pateadas conjuntas, do BE à IL, para criticar o Chega. E já houve ovações de pé conjuntas, do BE à IL, para apoiar alguém que criticou o Chega. Foi o que aconteceu quando André Coelho Lima, social-democrata, disse: “Vocês querem tornar o Parlamento numa taberna, mas nós não vamos deixar!”

 

Todos notam também como os deputados únicos são o alvo predilecto do Chega. “Os apartes misóginos à Inês de Sousa Real são constantes”, diz um deputado. “E o Rui Tavares, mal passam dez ou 20 segundos do seu tempo, já está um deputado do Chega aos gritos: ‘Olha o tempo! Olha o tempo!’." Em regra, até antes de ele começar a falar: “Mal se ouve ‘tem a palavra o senhor deputado Rui Tavares’, um deputado do Chega diz: ‘Para quê?!’, ‘Para quê?!’.”

 

Para além dos “gritos”, “vozearia” e “barulho” constantes, é comum os deputados do Chega baterem com as mãos nas mesas. “Fazem do hemiciclo uma taberna”, dizem vários deputados, fazendo eco da expressão de Coelho Lima.

 

A dupla personalidade

O episódio do “bandido”, o da galinha, o do “miserável” e tantos outros têm uma característica em comum: aconteceram no plenário, na sala do hemiciclo, onde estão as televisões. O que nos leva a outra característica do Chega na AR: a dupla personalidade. “O que se passa nas reuniões plenárias não tem nada a ver com o que se passa nas comissões”, diz o social-democrata Soveral Andrade.

 

Nas comissões, os deputados do Chega assumem outra personalidade, dizem muitos. Os mesmos que, nos plenários, são histriónicos vestem a pele de deputados discretos, diligentes e cooperantes. “Eles estão a aguentar-se e começam a ter capacidade de elaboração técnica”, diz uma deputada do PS.

 

“No plenário há o teatro, os berros, a agressividade. Nas comissões, a postura é mais construtiva”, diz Soveral Andrade. “Na Comissão de Agricultura e Pescas, eu sou o primeiro vice-presidente e o Pedro dos Santos Frazão, do Chega, é o segundo vice-presidente. Ele nunca criou nenhum obstáculo. No plenário, ele é mais excitado; na comissão, é tranquilo, nada de passar linhas vermelhas, é igual aos outros partidos.”

 

Todos os deputados ouvidos identificam Frazão, eleito por Santarém — que este fim-de-semana recebe a 5.ª convenção nacional do partido —, como um dos deputados mais agressivos do Chega.

 

Sérgio Sousa Pinto, do PS, presidente da Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas, diz o mesmo do seu vice do Chega: “Diogo Pacheco de Amorim é muito civilizado e colaborante, ajuda-me, é diligente, é sempre uma voz moderada e ponderada.”

 

Este contraste revela outra coisa, diz um deputado socialista: “A liderança absolutamente unipessoal do Chega.” Ao contrário do que acontece noutros partidos, diz, há decisões tomadas em comissões com o acordo do deputado do Chega da comissão ou o acordo do líder parlamentar do Chega fechado em conferência de líderes que, mais tarde, são rebatidas porque, entretanto, Ventura disse que era contra. O incidente sobre a redacção final da lei da eutanásia foi público.

 

O padrão inclui mais uma particularidade: os deputados do Chega não vão à cantina. Há uma cantina e um restaurante, conhecido como “restaurante dos deputados”. A cozinha é a mesma, a comida é a mesma, os pratos do dia são os mesmos, com a diferença de que na cantina cada um leva o seu tabuleiro para a mesa (e custa cinco euros) e no restaurante há empregados a servir (e custa o dobro). Os deputados do Chega preferem o restaurante. “Nunca os vi na cantina”, dizem deputados de todos os partidos. “Sentem-se bem nos espaços do poder. O discurso é anti-sistema, mas a prática é de quem gosta de fazer parte do sistema. André Ventura anda de motorista e guarda-costas”, diz Pedro Filipe Soares, do Bloco de Esquerda.

 

E uma última característica: são a única bancada parlamentar na qual todos os homens usam sempre gravata.

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