CHEGA
Chega sereno, Chega histriónico: a “taberna” e a dupla
personalidade no Parlamento
Episódios e apartes constantes, deselegância, má
educação, obsessão pelas redes sociais, misoginia, violência física. Os 12
deputados do Chega têm um estilo nunca visto na Assembleia da República.
Bárbara Reis
28 de Janeiro de
2023, 6:16
Este mês, quando
André Ventura disse aos gritos, na Assembleia da República (AR), que o
Presidente Lula da Silva é “um bandido”, o insulto foi título de notícias nos
media portugueses e até num jornal regional brasileiro: “Parlamento de Portugal
tem discussão após ultradireitista xingar Lula.”
Se a intenção era
dar nas vistas, o presidente do Chega teve êxito. Se era sobrepor-se a tudo o
que acontecesse nesse dia no Parlamento, também.
Que o diga Carlos
Guimarães Pinto, deputado da Iniciativa Liberal (IL): “Há dias, fiz uma
intervenção a propor a eliminação das multas astronómicas pelo atraso de
pagamento de portagens, um trabalho longo que fizemos para garantir que podia
ser aprovado”, conta ao PÚBLICO.
No dia seguinte,
o projecto de lei passou com os votos a favor da IL, PCP, BE, Livre e Chega.
“Mas à noite, no
telejornal que vi, só saiu Ventura a chamar ‘bandido’ a Lula da Silva, o que,
em termos de conteúdo, não tem qualquer efeito na vida dos portugueses. Ventura
sabia a resposta que ia ter, sabia que o presidente da Assembleia iria
interromper e dizer alguma coisa, sabia que ia criar um episódio. É essa a
estratégia: a tentativa permanente de criar episódios. Estamos sentados ali ao
lado e sentimos com antecedência o momento em que vai haver uma intervenção do
Chega com o objectivo de criar um episódio que passe nos telejornais. Como
duram 30 segundos, são fáceis de pôr nos telejornais. Entretém. O que tem
substância é ofuscado.”
O padrão
O PÚBLICO falou
com mais de 15 deputados, da esquerda à direita, sobre o primeiro ano do Chega
como terceira força política no Parlamento e todos concordam que esta é uma
característica central.
É mais evidente —
e frequente — desde que passou de um para 12 deputados, a seguir às eleições
legislativas de Janeiro de 2022. “Há episódios todas as semanas”, “às vezes
todos os dias”, dizem os deputados.
À procura de um
retrato do estilo do Chega no Parlamento, os deputados ouvidos falam de um
padrão que inclui permanentes incidentes artificiais, permanentes apartes para
interromper os discursos dos colegas, permanentes gestos deselegantes ou
mal-educados, permanente obsessão por “trabalhar para as redes sociais” e
aparecer nos telejornais. Isto pontuado por misoginia e violência física.
“É um estilo
muito agressivo, no sentido mais neutro da palavra, que às vezes me obriga a
recorrer ao artigo 89.º do regimento [da AR, sobre o "modo de usar a
palavra"], o que é bastante raro”, diz Augusto Santos Silva, presidente da
AR, que sublinha o facto de o padrão no Parlamento português ser a
“cordialidade, civilidade e até consideração pessoal entre bancadas”.
A violência física
Nos últimos
meses, houve pelo menos quatro relatos de cenas violentas que envolveram
deputados do Chega.
A 6 de Janeiro,
Rui Afonso, deputado do Chega, e Jerónimo Fernandes, dirigente do partido no
Porto, discutiram num corredor da AR. Segundo o Observador, “trocaram palavras
ofensivas que se ouviram noutros gabinetes e houve contacto físico agressivo
entre os dois”. Na altura, o jornal entrevistou fontes do Chega que confirmaram
que “o nível de voz subiu, houve ameaças e empurrões”.
A 25 de Agosto, o
Diário de Notícias noticiou que Bruno Nunes, deputado e vice-presidente do
grupo parlamentar do partido, agrediu fisicamente o seu colega Gabriel Mithá
Ribeiro, também deputado, numa reunião do grupo parlamentar.
A 22 de Julho, o
Observador noticiou que o líder parlamentar do partido, Pedro Pinto, ameaçou
Nuno Saraiva, assessor do grupo parlamentar do PS, num corredor da AR.
"Segundo os vários relatos de pessoas que assistiram, o deputado
dirigiu-se ao assessor, encostou a cabeça à de Nuno Saraiva e disse: ‘Tens
muito a crescer para me chamares fascista’ e ‘parto-te a tromba’.”
A 9 de Junho,
Pedro Frazão, do Chega, e André Coelho Lima, do PSD, “pegam-se no corredor da
Assembleia”, noticiou a CNN.
A misoginia
“No plenário, a
misoginia dos deputados do Chega é muitíssimo visível: quando é uma deputada a
falar, fazem aquele gesto com os dedos a abrir e a fechar, e é uma barulheira”,
diz Isabel Moreira, do PS. “Com a Inês de Sousa Real [PAN], há sempre o dobro
do barulho e da confusão. Com a Alma Rivera [PCP], é uma loucura. Sempre que
fala, há guinchos, gargalhadas, gestos a ridicularizar”, diz Moreira, na AR há
mais de dez anos. “Antes do Chega, o Parlamento não tinha isto. Sempre houve
divergências, mas nunca este desrespeito. As pessoas sempre se ouviram umas às
outras. Os deputados do Chega estão sempre a tentar arranjar incidentes, numa
constante tentativa de boicote do normal funcionamento dos trabalhos.”
Uma das técnicas
são os apartes. Não os apartes clássicos, sublinham os deputados, previstos no
regimento. O artigo 89.º diz que “o orador não pode ser interrompido”, mas não
considera interrupções “as vozes de concordância, discordância ou análogas”.
Com o Chega, é diferente. São apartes nunca ouvidos na AR.
— Mas tu, o que é
que tu queres?!
— A si, não vou
responder, basta ver como envergonha as mulheres de cima do púlpito!
— Aí vem o
peixe-balão!
— Ó borboleta!
— Lá vem este!
— O que é que ele
vai dizer agora?!
— Nem parece que
só come vegetais!
— Vai-te embora,
palhaço!
— Miserável! Seu
miserável!
Os deputados do
Chega gozam com o sotaque dos deputados do Norte — e gritam “segurââânça!”,
“segurââânça!”, a imitar o deputado que está a falar sobre segurança —; gozam
com o corpo das colegas deputadas; gozam com o estilo dos colegas homens. De
forma ostensiva. “Não falam para o lado num tom de voz normal. Gritam”, diz
Guimarães Pinto. “Uma coisa é um aparte, outra é gerar ruído de tal forma que o
orador não consegue continuar”, diz Pedro Delgado Alves, do PS.
Em casa, quando
vemos na televisão, não se percebe a confusão. Nem quem está a falar se
apercebe. “É preciso estar lá. Na televisão, só se ouve o som do microfone”,
diz um deputado. É nas bancadas que a confusão é perceptível.
“Mais do que os
apartes, os deputados do Chega dão nas vistas ao nível do gesticular”, diz
Artur Soveral Andrade, do PSD. “Percebe-se que lhes dá gozo provocar, dar umas
‘caneladas’. Digamos que, no gesticular, no Chega há uma hiperactividade — para
ser simpático.”
A taberna
Já houve pateadas
conjuntas, do BE à IL, para criticar o Chega. E já houve ovações de pé
conjuntas, do BE à IL, para apoiar alguém que criticou o Chega. Foi o que
aconteceu quando André Coelho Lima, social-democrata, disse: “Vocês querem
tornar o Parlamento numa taberna, mas nós não vamos deixar!”
Todos notam
também como os deputados únicos são o alvo predilecto do Chega. “Os apartes
misóginos à Inês de Sousa Real são constantes”, diz um deputado. “E o Rui
Tavares, mal passam dez ou 20 segundos do seu tempo, já está um deputado do
Chega aos gritos: ‘Olha o tempo! Olha o tempo!’." Em regra, até antes de
ele começar a falar: “Mal se ouve ‘tem a palavra o senhor deputado Rui
Tavares’, um deputado do Chega diz: ‘Para quê?!’, ‘Para quê?!’.”
Para além dos
“gritos”, “vozearia” e “barulho” constantes, é comum os deputados do Chega
baterem com as mãos nas mesas. “Fazem do hemiciclo uma taberna”, dizem vários
deputados, fazendo eco da expressão de Coelho Lima.
A dupla personalidade
O episódio do “bandido”,
o da galinha, o do “miserável” e tantos outros têm uma característica em comum:
aconteceram no plenário, na sala do hemiciclo, onde estão as televisões. O que
nos leva a outra característica do Chega na AR: a dupla personalidade. “O que
se passa nas reuniões plenárias não tem nada a ver com o que se passa nas
comissões”, diz o social-democrata Soveral Andrade.
Nas comissões, os
deputados do Chega assumem outra personalidade, dizem muitos. Os mesmos que,
nos plenários, são histriónicos vestem a pele de deputados discretos,
diligentes e cooperantes. “Eles estão a aguentar-se e começam a ter capacidade
de elaboração técnica”, diz uma deputada do PS.
“No plenário há o
teatro, os berros, a agressividade. Nas comissões, a postura é mais
construtiva”, diz Soveral Andrade. “Na Comissão de Agricultura e Pescas, eu sou
o primeiro vice-presidente e o Pedro dos Santos Frazão, do Chega, é o segundo
vice-presidente. Ele nunca criou nenhum obstáculo. No plenário, ele é mais
excitado; na comissão, é tranquilo, nada de passar linhas vermelhas, é igual
aos outros partidos.”
Todos os
deputados ouvidos identificam Frazão, eleito por Santarém — que este
fim-de-semana recebe a 5.ª convenção nacional do partido —, como um dos
deputados mais agressivos do Chega.
Sérgio Sousa
Pinto, do PS, presidente da Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades
Portuguesas, diz o mesmo do seu vice do Chega: “Diogo Pacheco de Amorim é muito
civilizado e colaborante, ajuda-me, é diligente, é sempre uma voz moderada e
ponderada.”
Este contraste
revela outra coisa, diz um deputado socialista: “A liderança absolutamente
unipessoal do Chega.” Ao contrário do que acontece noutros partidos, diz, há
decisões tomadas em comissões com o acordo do deputado do Chega da comissão ou
o acordo do líder parlamentar do Chega fechado em conferência de líderes que,
mais tarde, são rebatidas porque, entretanto, Ventura disse que era contra. O
incidente sobre a redacção final da lei da eutanásia foi público.
O padrão inclui
mais uma particularidade: os deputados do Chega não vão à cantina. Há uma
cantina e um restaurante, conhecido como “restaurante dos deputados”. A cozinha
é a mesma, a comida é a mesma, os pratos do dia são os mesmos, com a diferença
de que na cantina cada um leva o seu tabuleiro para a mesa (e custa cinco
euros) e no restaurante há empregados a servir (e custa o dobro). Os deputados
do Chega preferem o restaurante. “Nunca os vi na cantina”, dizem deputados de
todos os partidos. “Sentem-se bem nos espaços do poder. O discurso é anti-sistema,
mas a prática é de quem gosta de fazer parte do sistema. André Ventura anda de
motorista e guarda-costas”, diz Pedro Filipe Soares, do Bloco de Esquerda.
E uma última
característica: são a única bancada parlamentar na qual todos os homens usam
sempre gravata.
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