OPINIÃO
O altar do Papa, os tanques Leopard e aquilo que nos
distrai
Nem acerca do assunto mais importante do mundo a ministra
da Defesa e o ministro dos Negócios Estrangeiros, embrulhado nas obras do
hospital militar, conseguem falar a uma só voz.
João Miguel
Tavares
28 de Janeiro de
2023, 0:19
https://www.publico.pt/2023/01/28/opiniao/opiniao/altar-papa-tanques-leopard-distrai-2036758
Enquanto o país
discutia fervorosamente os custos do altar do Papa, acontecia, longe da atenção
dos portugueses, uma das mais desconcertantes gafes dos últimos anos: o
ministro dos Negócios Estrangeiros anunciou que Portugal iria enviar para a
Ucrânia tanques Leopard, e logo a seguir recuou. “O importante é que está
assumido este compromisso”, disse João Gomes Cravinho à SIC Notícias,
confirmando aquilo que o próprio Zelensky adiantara uma semana antes: Portugal
estava disponível para ceder tanques. Só que afinal não estava. O gabinete do
ministro afirmou logo tratar-se de um “lapso”; a ministra da Defesa informou que
o Governo ainda estava a pensar nisso; e João Gomes Cravinho desmentiu-se a si
próprio pouco depois, em novas declarações.
Vem daí mal ao
mundo? Talvez não, se tivermos em conta que mais de metade dos nossos 37
moderníssimos tanques Leopard estão inoperacionais. Em Outubro, Portugal
ofereceu generosamente à Ucrânia os seis Kamov amarelinhos dos incêndios –
também estavam inoperacionais, e mais de três meses depois os helicópteros
continuam por cá. O Ministério da Defesa diz que “não se encontram ainda preparados
para envio”. A notícia do Observador diz que “o governo de Kiev ainda não os
reclamou”. É possível que Zelensky tenha assuntos mais urgentes entre mãos.
Proponho aos
interessados nesta matéria que leiam o artigo do New York Times “How Biden Reluctantly
Agreed to Send Tanks to Ukraine”, para perceber as longas e complexas
negociações de bastidores que permitiram desbloquear a posição alemã em relação
ao envio dos Leopard. Depois, comparem com o que se passa em Portugal. A guerra
na Ucrânia é o assunto mais importante do mundo neste momento, certo? No
entanto, nem acerca do assunto mais importante do mundo a ministra da Defesa e
o ministro dos Negócios Estrangeiros, embrulhado nas obras do hospital militar,
conseguem falar a uma só voz.
Os tanques
Leopard e os custos do altar do Papa têm este padrão a uni-los: 1)
incompetência e/ou desleixo dos envolvidos, seguido de 2) descoordenação entre
entidades (no caso do altar, salta à vista o amor cristão que une José Sá
Fernandes a Carlos Moedas), e acabando em 3) mentira ou, pelo menos, numa
manipulação criativa da verdade. É o que acontece quando nos querem convencer
que o “altar-palco” dos cinco milhões de euros onde cabem duas mil pessoas vai
ser muito útil para outros eventos com duas mil pessoas em palco, como… Qual?
Enfim: existe a Nona Sinfonia de Beethoven dirigida todos os anos por Yutaka
Sado com um coro de 10 mil japoneses, mas é capaz de ficar caro trazê-los para
Lisboa. E, no entanto, Marcelo começou por achar que sim, que o altar poderia
ser muito útil no futuro, 24 horas antes de dizer que afinal não, aquilo não se
podia aceitar.
Mas se os tanques
e o altar seguem o mesmo padrão, porque é que um encheu as televisões e o outro
não? Pela mesma razão que nos indignamos mais depressa com os 500 mil euros de
indemnização a Alexandra Reis do que com os 3,2 mil milhões que enfiámos na
TAP. Também os 80 milhões que a Jornada Mundial da Juventude vai custar ao
Estado (entre Governo e câmaras) aborrecem apenas os leitores de Richard Dawkins,
enquanto o palco dos cinco milhões aborrece toda a gente. Precisamos que o
abstracto se torne palpável para que a indignação floresça. Teve sorte Gomes
Cravinho: mostrou-se tão inoperacional como um Leopard lusitano quando toda a
gente estava de olhos postos no altar.
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