domingo, 29 de janeiro de 2023

O altar do Papa, os tanques Leopard e aquilo que nos distrai

 



OPINIÃO

O altar do Papa, os tanques Leopard e aquilo que nos distrai

 

Nem acerca do assunto mais importante do mundo a ministra da Defesa e o ministro dos Negócios Estrangeiros, embrulhado nas obras do hospital militar, conseguem falar a uma só voz.

 

João Miguel Tavares

28 de Janeiro de 2023, 0:19

https://www.publico.pt/2023/01/28/opiniao/opiniao/altar-papa-tanques-leopard-distrai-2036758

 

Enquanto o país discutia fervorosamente os custos do altar do Papa, acontecia, longe da atenção dos portugueses, uma das mais desconcertantes gafes dos últimos anos: o ministro dos Negócios Estrangeiros anunciou que Portugal iria enviar para a Ucrânia tanques Leopard, e logo a seguir recuou. “O importante é que está assumido este compromisso”, disse João Gomes Cravinho à SIC Notícias, confirmando aquilo que o próprio Zelensky adiantara uma semana antes: Portugal estava disponível para ceder tanques. Só que afinal não estava. O gabinete do ministro afirmou logo tratar-se de um “lapso”; a ministra da Defesa informou que o Governo ainda estava a pensar nisso; e João Gomes Cravinho desmentiu-se a si próprio pouco depois, em novas declarações.

 

Vem daí mal ao mundo? Talvez não, se tivermos em conta que mais de metade dos nossos 37 moderníssimos tanques Leopard estão inoperacionais. Em Outubro, Portugal ofereceu generosamente à Ucrânia os seis Kamov amarelinhos dos incêndios – também estavam inoperacionais, e mais de três meses depois os helicópteros continuam por cá. O Ministério da Defesa diz que “não se encontram ainda preparados para envio”. A notícia do Observador diz que “o governo de Kiev ainda não os reclamou”. É possível que Zelensky tenha assuntos mais urgentes entre mãos.

 

Proponho aos interessados nesta matéria que leiam o artigo do New York Times “How Biden Reluctantly Agreed to Send Tanks to Ukraine”, para perceber as longas e complexas negociações de bastidores que permitiram desbloquear a posição alemã em relação ao envio dos Leopard. Depois, comparem com o que se passa em Portugal. A guerra na Ucrânia é o assunto mais importante do mundo neste momento, certo? No entanto, nem acerca do assunto mais importante do mundo a ministra da Defesa e o ministro dos Negócios Estrangeiros, embrulhado nas obras do hospital militar, conseguem falar a uma só voz.

 

Os tanques Leopard e os custos do altar do Papa têm este padrão a uni-los: 1) incompetência e/ou desleixo dos envolvidos, seguido de 2) descoordenação entre entidades (no caso do altar, salta à vista o amor cristão que une José Sá Fernandes a Carlos Moedas), e acabando em 3) mentira ou, pelo menos, numa manipulação criativa da verdade. É o que acontece quando nos querem convencer que o “altar-palco” dos cinco milhões de euros onde cabem duas mil pessoas vai ser muito útil para outros eventos com duas mil pessoas em palco, como… Qual? Enfim: existe a Nona Sinfonia de Beethoven dirigida todos os anos por Yutaka Sado com um coro de 10 mil japoneses, mas é capaz de ficar caro trazê-los para Lisboa. E, no entanto, Marcelo começou por achar que sim, que o altar poderia ser muito útil no futuro, 24 horas antes de dizer que afinal não, aquilo não se podia aceitar.

 

Mas se os tanques e o altar seguem o mesmo padrão, porque é que um encheu as televisões e o outro não? Pela mesma razão que nos indignamos mais depressa com os 500 mil euros de indemnização a Alexandra Reis do que com os 3,2 mil milhões que enfiámos na TAP. Também os 80 milhões que a Jornada Mundial da Juventude vai custar ao Estado (entre Governo e câmaras) aborrecem apenas os leitores de Richard Dawkins, enquanto o palco dos cinco milhões aborrece toda a gente. Precisamos que o abstracto se torne palpável para que a indignação floresça. Teve sorte Gomes Cravinho: mostrou-se tão inoperacional como um Leopard lusitano quando toda a gente estava de olhos postos no altar.

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