Um tiro no altar
Saberá Francisco deste gasto e desta escala absurda,
típica de novos-ricos, que, aliás, nem ricos são?
Paulo Mendes
Pinto
28 de Janeiro de
2023, 6:33
https://www.publico.pt/2023/01/28/opiniao/opiniao/tiro-altar-2036559
Todas as viagens
se podem transformar em odisseias, como que em memória desse modelo de viagem
que foi a de Ulisses, o Odisseus. Basta que algo nos marque e como que
alquimicamente nos transforme. As viagens papais têm esse condão de dar a
muitos, de uma vez só e na medida da fé de cada um, o alimento para marcar uma
vida através de significados fortes. O ocupante da Cátedra de S. Pedro vive na
pele, quotidianamente, essa capacidade de alterar a vida de muitos crentes,
assumindo uma responsabilidade bem acima da que qualquer humano vive.
Em 2007 tive o
prazer de, num grande périplo pela Turquia, visitar Antioquia, a cidade que
ficaria para sempre marcada como a sede da comunidade paulina onde a palavra
“cristão” foi pela primeira vez usada, definindo o momento a partir do qual da
seita judaica messiânica nascia uma religião autónoma, centrada na figura de
Jesus, o Salvador, o Cristo. Nessa cidade turca, conquistada à Síria no final
dos anos 40 do século passado, vivi um dos episódios religiosamente mais
marcante da minha vida. O grupo em que eu me integrava era constituído quase
exclusivamente por clérigos católicos. Entre eles, dois bispos.
Toda a viagem foi
repleta de momentos intensos. Era a minha primeira viagem a esse espantoso
país, herdeiro de tanto que nos marcou na nossa forma de ser. A viagem a
Antioquia era o regresso ao berço do cristianismo. Teríamos a possibilidade de
ir visitar, e os sacerdotes, de oficiar, na famosa Cátedra de S. Pedro. Diz a
tradição que aquele que se diz ter sido o primeiro Papa foi também bispo nesta
cidade. A Cátedra de Pedro, ou, melhor, a Cátedra de S. Pedro, estava numa
encosta, incrustada num penhasco; uma construção digna de 2000 anos de idade e
de uma época em que o cristianismo não combinava com ostentação.
Perante o espanto
de uns para com o ar vetusto, quase arqueológico, mas com um sabor pleno de
genuinidade que se sentia no ambiente, um dos bispos, com algum alarde,
indignou-se por ser aquilo que nos apresentam como sendo a Cátedra de S. Pedro.
Ficou a pregar no deserto, tendo percebido que se deveria calar. Imagem de um
cristianismo completamente fora da sua doutrina, este simples caso é imagem
desafiadora para o momento atual.
Hoje, na
preparação para a visita do Papa a Portugal aquando das Jornadas Mundiais da
Juventude, soubemos que a estrutura, que vai integrar o altar, a ser montada em
Lisboa irá custar vários milhões de euros. O senhor bispo que se indignou por
ser a Cátedra de S. Pedro o que era, simples, despojada, decerto se orgulharia
por o Estado português despender tal soma com o sucessor de Pedro. O autarca
lisboeta mostrou essa necessidade de a cidade bem acolher o Papa, com a
dignidade que merece.
Seja o Estado central,
sejam as autarquias ou as autoridades religiosas, ou todas juntas, alguém se
esqueceu de parar para tentar perceber o erro gravíssimo em que estão a
incorrer. E várias ordens de problema se levantam, sem contar com a mais
simples equação contabilística de saber se há dinheiro e, havendo, se ele deve
ser gasto desta forma. É apontada a utilidade futura. Mas o gasto faz-se e,
acima de tudo, em termos de mensagem mediática, nada justifica uma ostentação
completamente contracorrente.
Em termos pastorais
e da mensagem mediática, numa igreja que afirma querer aproximar-se dos jovens,
a resposta é a construção de uma estrutura megalómana que deixa todos a uma
distância imensa, mostrando o Papa e o clero que o irá rodear de forma
sumptuosa. Tudo resultaria numa boa comunicação, mas o que foi apresentado é
tudo menos o que se intui ser a postura do Papa Francisco.
O descomedimento surge, tantas vezes, em quem não sabe
ver o seu lugar nem, sequer, perceber a sua natureza. Temo que seja hoje o caso
Em termos de
imagem que o Papa Francisco vem construindo de si e, mais, do que lemos nos
seus textos, ele está muito mais perto da Cátedra em Antioquia do que da
Cátedra no Vaticano. Ele está mais perto da pedra bruta, do calcário não polido
da cidade turca, que dos mármores de Roma.
Saberá Francisco
deste gasto e desta escala absurda, típica de novos-ricos, que, aliás, nem
ricos são? Estará ele confortável ao oficiar no topo de uma estrutura que
equivale a muitos milhares de refeições para pessoas carenciadas, aquelas que
as instituições dessa mesma Igreja tentam ajudar?
Há um conceito
nas religiões antigas, especialmente no mundo grego, onde Antioquia nasceu. A
hybris (em grego ὕϐρις)
remete-nos para as ações que passam da medida e que levam quem as comete a ter
um destino nada favorável. O descomedimento surge, tantas vezes, em quem não
sabe ver o seu lugar nem, sequer, perceber a sua natureza. Temo que seja
hoje o caso.
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