Crise da Habitação em Lisboa gera onda de movimentos
cívicos com vontade de sair à rua. “Temos de agir agora”
A crise na Habitação já atinge tudo e todos e todas as
classes. A sociedade civil une-se e dá o seu tempo por um novo movimento
apartidário em torno do direito à habitação. Quem são estes movimentos e quais
as suas lutas?
por Ana da Cunha
e Daniela Oliveira
24.01.2023
A vida da
investigadora Ana Gago mudou quando recebeu um telefonema da senhoria a
anunciar que teria de sair de casa dentro de uma semana. O mesmo aconteceu com
Rafael Pinheiro, formado em Jornalismo e a viver num T1 em Sintra por 500
euros. “Percebi que era insustentável”, diz ele. Saiu e regressou para a casa
dos pais.
Ambos quiseram
tornar essa luta, que era deles, numa luta de todos.
Ana levou-a para
o seu trabalho, investigando sobre habitação, gentrificação, desalojamento,
turismo urbano. Tornou-se membro da associação Habita!, e hoje é uma das
dinamizadoras do Movimento Referendo pela Habitação, que tem enchido as ruas de
Lisboa com cartazes e testemunhos da enorme e grave crise da habitação na
cidade.
Para Rafael, hoje
com 30 anos, foi preciso que a crise de habitação atingisse um “cúmulo novo”,
como ele descreve, para entrar em ação. “A maioria das pessoas que eu conheço,
do ponto de vista habitacional, está numa situação precária”. Essa urgência
levou-o a unir-se ao amigo Christopher Alves, de 28 anos e da área do
audiovisual, para lançar a petição “Pela Proteção do Direito à Habitação Contra
a Especulação Imobiliária”.
Ana e Rafael são
exemplos de uma nova luta que se começou a travar perante uma crise bem real e
que todos começam a sentir na pele, ou de alguém que conhecem: jovens adultos
de todas as classes não conseguem sair de casa dos pais ou vivem enclausurados
em casas partilhadas, famílias não conseguem ter filhos, casais não se
conseguem separar, idosos são obrigados a escolher entre pagar medicamentos ou
a renda.
A situação não é
nova, mas a onda de descontentamento tem-se propagado pelas redes sociais,
dando conta de novos dados que apontam que o preço médio das casas em Lisboa é
mais alto do que em Madrid ou Milão (da plataforma Casari), e de que Portugal
está entre os dez países da zona euro onde rendas e preços das casas mais sobem
(dados da Eurostat).
O direito pela
habitação sai à rua
Nas redes, várias
figuras públicas congregam testemunhos e insatisfação. A jornalista Diana
Duarte começou por falar do seu caso no Instagram, e acabou com a caixa de
correio entupida com a quantidade de mensagens de horror.
“Tenho reunido
alguns testemunhos”, conta Diana. “Histórias de pessoas que vivem em caves,
outras com baratas. Há quem não consiga ter filhos, há casais que com dois
salários não conseguem comprar casa”.
O que era uma
conversa de redes sociais acabou por se tornar num movimento quando Diana uniu
esforços com o humorista Diogo Faro para começar a organizar uma manifestação,
que se pretende apartidária, e que vai sair às ruas no dia 1 de abril.
O movimento já
está anunciado, sedimentado em encontros, telefonemas, grupos de WhatsApp. “Não
nos fazia sentido que fosse cada um para seu lado. É preciso unir esforços!”
Esta semana, a
jornalista e entrevistadora do programa A Minha Geração na Antena 3 partihou
uma story no Instagram onde dava conta de muitas das questões que afligem os
que neste momento precisam de uma casa e não a conseguem arranjar.
Rafael Pinheiro
explica por palavras dele o fenómeno que hoje se está a viver: “Há pessoas que
estavam despolitizadas e que agora estão cada vez com mais vontade de sair à
rua”.
Se a crise da
habitação não é nova, novos são muitos daqueles que estão a despertar de outra
forma para o problema. “O ativismo tem aumentado. Dantes podia haver
contestação, mas era muito mais restringida às redes sociais. Agora, a crise
instalou-se de tal forma… o receio do futuro motivou as pessoas”, diz
Christopher.
É isso que a
conjuntura atual tem provocado: que novas vozes se levantem por um direito que
consideram delas e cuja ausência lhes congela vidas, futuro e planos. Este
sentimento de estagnação e de não conseguir fazer nada sobre isso é o que
perpassa nas redes sociais. Mas não só. Também já há raiva.
“Medidas recentes
como os vistos gold e os nómadas digitais levaram a que as pessoas se sentissem
mais ofendidas”, argumenta Christopher. “E quando se começa a sentir a ofensa,
as pessoas partem para outro tipo de movimentação, de contestação”.
Uma petição ou um
“pequeno programa político”
Rafael despertou
para a luta ao lidar com a crise de habitação na pele. Mas agora também os seus
pais estão a sofrer: “A casa onde vivem foi comprada por uma empresa de
investimento imobiliário e não lhes foi dada a oportunidade de exercer o direito
de preferência”. Neste momento, a empresa está a pedir o dobro do valor pelo
qual comprou a casa, e está pressionar os pais para sair.
Christopher, que
já conhecia Rafael desde os tempos da faculdade, juntou-se à luta do amigo.
Ele, que sempre teve consciência política, tem amigos que vivem esta crise
habitacional com grande preocupação, mesmo que agora não seja o seu caso.
“Julgo que só há uma forma de estar na vida e é a ajudar, fazendo algum
ativismo”, diz ele. “Ninguém está imune”.
Rafael e
Christopher ainda equacionaram a hipótese de avançar com uma iniciativa
legislativa de cidadãos ou com uma proposta de referendo, mas sentiram que não
teriam o “know-how” para tal. O resultado final é esta petição, que Rafael vê
como um “pequeno programa político” e que já reuniu mais de 5 mil assinaturas.
Algumas das alterações da lei exigidas na petição:
·
Revogação do direito à oposição à
renovação de contrato de arrendamento pelas empresas em imóveis nos quais
habitem inquilinos com contrato de arrendamento;
·
Limites máximos aos valores de
arrendamento;
·
Proibição de que o senhorio exija outros
valores para além do mês de caução;
Para levarem a
petição à Assembleia da República, são necessárias 7500 assinaturas. Mas Rafael
está ciente que a luta é difícil: “Nós sabemos quais são as sensibilidades
atuais do Parlamento, e sabemos que é muito improvável que haja uma resposta
adequada”.
Entretanto, mais
três amigos juntaram-se à luta, e agora são cinco a gerir as páginas das redes
sociais onde fazem uma ampla divulgação da petição, com Rafael mais responsável
pelos textos e Christopher pela parte gráfica.
O referendo pelo
direito à habitação e contra o Alojamento Local sem regras
No dia em que o
Movimento Referendo pela Habitação ocupou o Largo do Intendente para recolher
assinaturas, ouvia-se: “O diagnóstico está feito! Temos é de agir agora”. Ana
Gago, a liderar o protesto, resumia: “Estamos a canalizar todo o
descontentamento numa ação concreta”.
Ou seja, um
referendo. Ela, que já anda na luta há algum tempo, uniu-se a um grupo de
estudantes, investigadores, trabalhadores, reformados portugueses e
estrangeiros que tinham como objetivo criar um referendo que travasse o
Alojamento Local em prédios de habitação.
O mote deu-se
quando a Câmara Municipal de Lisboa aprovou um novo prolongamento por seis
meses da suspensão aplicada à emissão de novas licenças de AL em 11 freguesias.
Para o referendo
ser submetido a votação na Assembleia Municipal, são necessárias 5 mil
assinaturas. Mas Ana não quer ficar por aqui: “Só com mais assinaturas se
criará uma base forte de apoio de forma a que os deputados não possam votar
contra a implementação do referendo”.
As questões a levar à Assembleia Municipal são as
seguintes:
·
Concorda em alterar o Regulamento
Municipal do Alojamento Local no sentido de a Câmara Municipal de Lisboa, no
prazo de 180 dias, ordenar o cancelamento dos alojamentos locais registados em
imóveis destinados a habitação?
·
Concorda em alterar o Regulamento
Municipal do Alojamento Local para que deixem de ser permitidos alojamentos
locais em imóveis destinados à habitação?
·
Caso a primeira pergunta seja aprovada,
o movimento acredita que a Câmara Municipal de Lisboa será obrigada a devolver
aos Alojamentos Locais a sua função habitacional. Se a segunda pergunta for
aprovada, evita-se que a autarquia volte a permitir o registo de alojamentos
locais em imóveis destinados a habitação.
Os jovens, os
despejos, as ocupações
A luta de Rafael
e de Ana começou há muito para outras pessoas. Há quem reivindique o direito à
habitação há mais de cem anos, na verdade, como é o caso da Associação dos
Inquilinos Lisbonenses. Mas a maioria dos movimentos terá surgido quando
palavras como “gentrificação” ou “turistificação” entraram no léxico da cidade.
São exemplos
disso a Habita!, que surgiu em 2005/2006, inicialmente para apoiar os
imigrantes nos bairros da periferia que estavam a ser demolidos pelas Câmaras
Municipais para desalojar, vender ou comprar terrenos. Entretanto, a associação
tem travado outras lutas, apoiando quem não tem acesso ao mercado de
arrendamento.
Na mesma lógica,
em 2017 surgia o Morar em Lisboa, quando um conjunto de associações redigiu uma
Carta Aberta dirigida ao governo, aos deputados, ao município e aos cidadãos.
“A carta surgiu numa altura em que a habitação ainda não merecia a atenção que
hoje tem”, admite Maria de Lurdes Pinheiro, presidente da Associação do
Património e População de Alfama (APPA), que integra o Morar em Lisboa desde o
início.
Para ela, o Morar
em Lisboa incentivou a mudança: “Na altura, ia haver eleições autárquicas e
nenhum programa eleitoral contemplava a preocupação com a habitação”.
Imagine-se. Há apenas seis anos.
Com o movimento,
organizou-se uma manifestação de reivindicação, debates e reuniões. Dois anos
mais tarde, surgia a muito aguardada Lei de Bases da Habitação, reivindicada na
Carta Aberta. Mas Maria de Lurdes diz que em pouco alterou o cenário na altura:
“A especulação imobiliária mantém-se, a gentrificação mantém-se”.
“O excesso de
turismo na cidade, esta facilitação da entrada e permanência de pessoas que não
tem ligação à cidade, como os nómadas digitais, tudo isto está a transformar a
cidade num tabuleiro de monopólio, retirando casas a quem vive, estuda e
trabalha em Lisboa”, acusa Teresa Mamede, da Habita!.
Mas que novas
realidades têm sido expostas pela mais recente crise habitacional? “Os jovens
têm muitos problemas no arrendamento privado”, diz Teresa. “Os contratos não
renováveis são um mecanismo que está a ser muito usado pelos senhorios para
poderem trocar de inquilinos, subindo muito as rendas”.
Mas o problema
não fica por aqui. Mesmo aqueles com contratos renováveis podem ter problemas:
senhorios que os forçam a sair, cortando-lhes a água ou a luz, causando-lhes
medo. E há quem recorra à tática das cauções, exigindo um ano de renda
adiantada.
As dificuldades
do mercado de arrendamento não se limitam aos jovens. E Maria de Lurdes sabe
isso bem, já foi presidente da Junta da extinta freguesia de Santo Estevão e
muitas vezes ainda acompanha os despejos dos mais idosos. “A questão da
habitação é muito complicada, o turismo afasta e expulsa as pessoas do bairro
de Alfama”.
É uma realidade
que muitas vezes leva a situações de ocupação selvagem de casas devolutas.
Situações complexas que quer a Habita!, quer a APPA acompanham. “Estamos a
acompanhar um grupo de pessoas que ocuparam uma casa da Câmara há alguns anos.
A Câmara enviou-lhes uma carta para saírem voluntariamente”, conta Maria de
Lurdes.
“Estas pessoas
querem pagar uma renda mas não têm hipótese disso. E não conseguem aceder aos
programas de apoio à habitação. Ou ficam em filas de espera durante anos… E
esta decisão de ocupar as casas vazias é, no nosso entender, legítima”, defende
Maria João Costa, da Habita! e da Stop Despejos.
São lutas às
quais se juntam estas novas vozes. Não querem, de longe, substituir-se uns aos
outros. “Queremos encorajar as pessoas a abrirem-se a estes movimentos”, diz
Rafael Pinheiro.
Especialmente
neste momento crítico, em que se atinge um “ponto sem retorno”, acrescenta. “Tem
que ver com a inflação, com o clima económico que se gerou com a guerra, e tem
que ver com o acumular de uma série de alterações legislativas que começaram em
1990 e se arrastaram ao longo do tempo… esse acumular trouxe-nos aqui”.
ANA DA CUNHA
Nasceu no Porto,
há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa,
descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na
Universidade Nova de Lisboa.
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