OPINIÃO
Não há por aí um dissidente comunista, só para desenjoar?
Onde estão as vozes comunistas que se opõem a esta vil
interpretação da guerra da Ucrânia, e gritam “já basta”?
João Miguel
Tavares
23 de Abril de
2022, 0:00
Desde o início da
guerra da Ucrânia, nós olhamos para o Partido Comunista Português com a
atracção e o horror de uma imolação pelo fogo a acontecer mesmo à nossa frente.
Ela repetiu-se na quinta-feira. O PCP faltou à sessão com Zelenskii. Não faltou
às reacções partidárias sobre a sessão com Zelenskii. Os comunistas podiam não
ter aparecido, mas fizeram questão de mostrar que a sua resiliência não é menor
do que a do Batalhão Azov na siderurgia de Mariupol – apareceram. Chamemos-lhe
a luxúria do martírio. A nova líder parlamentar do PCP, Paula Santos,
aproximou-se dos jornalistas, abriu o jerrican, encharcou-se de gasolina,
acendeu o fósforo, e durante vinte minutos foi ver arder.
Paula Santos não
se limitou a uma breve declaração de barbaridades e equivalências obscenas,
iguais a tantas outras que já ouvimos do PCP. Aumentou a parada. Respondeu às
perguntas dos jornalistas com a boca em chamas, tropeçando nas palavras, mas
disposta a entregar a vida por aquela causa. E aqui não há metáfora: ela está
mesmo a entregar a sua vida política por aquela causa. Imagino que sonhasse vir
a ser a primeira mulher do PCP a destacar-se na liderança da bancada
parlamentar, como Bernardino Soares ou João Oliveira antes dela. Em vez disso,
Paula Santos transformou-se na porta-voz portuguesa de Vladimir Putin durante a
mais brutal agressão em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial. As
cicatrizes desta imolação absurda acompanhá-la-ão pela vida fora.
E este é o ponto
que justifica a pergunta do título: onde estão, desta vez, os dissidentes do
PCP? Onde estão as vozes comunistas que se opõem a esta vil interpretação da
guerra da Ucrânia, e gritam “já basta”? Embora o PCP seja famoso pelas suas
posições empedernidas e pelo amor à linha dura, a verdade é que sempre teve no
seu interior alguém que resistisse, alguém que dissesse não. A lista dos seus
dissidentes é vastíssima, e é assim desde a fundação do partido, nos anos 20 do
século passado.
A vida do seu
primeiro secretário-geral foi tão complicada que passou de comunista na década
de 20 a membro da União Nacional na década de 30. Há um livro recente sobre
ele: Incorrigível – A História Desconhecida de Carlos Rates, de Pedro Prostes
da Fonseca. Na década de 40, deu-se o embate entre Cunhal e Júlio Fogaça em
torno da Política de Transição Pacífica, que anos depois acabaria muito mal
para Fogaça, acusado de “desvio de direita”. Na década de 60, foi a vez da
cisão entre estalinistas e maoístas, na sequência da ruptura entre URSS e
China. Na década de 80, com a Perestroika, surgiu o movimento de contestação
interna denominado “grupo dos seis”, que evoluiria para a grande dissidência da
Terceira Via e a debandada de centenas de militantes no início dos anos 90,
alguns dos quais acabariam ministros do PS, e outros, mais jovens, transitariam
para o Bloco de Esquerda.
O PCP nunca foi este cemitério de ideias, mesmo nos seus
tempos estalinistas. Hoje é um zombie com uma cassete da Guerra Fria ligada ao
sistema nervoso central
Esta é a história
do PCP, por muito “centralismo democrático” que Cunhal tivesse imposto. Mas onde
estão os dissidentes de 2022? Onde estão os comunistas revoltados? Ana Sá Lopes
conseguiu desencantar uns autarcas descontentes num bom trabalho sobre o tema.
Só que no espaço público não se ouve nada. Apenas intervenções de Paula Santos,
editoriais do Avante! e tuítes de António Filipe. O PCP nunca foi este
cemitério de ideias, mesmo nos seus tempos estalinistas. Hoje é um zombie com
uma cassete da Guerra Fria ligada ao sistema nervoso central. Fascinante
– mas assustador, e um pouco triste.


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