25 DE ABRIL
Famílias em carência habitacional podem chegar às 100
mil. Nem metade poderá ter solução até ao 50.º aniversário do 25 de Abril
IHRU tinha identificado cerca de 26 mil famílias em
situação de carência habitacional, em 2018, mas contas dos especialistas, com
dados mais recentes, já apontam para mais de 60 mil e há quem defenda que
possam chegar aos 100 mil.
Patrícia Carvalho
25 de Abril de
2022, 6:30
O número de famílias em carência habitacional é muito
superior ao previsto
A investigadora
Sílvia Jorge tem passado vários meses a fazer um trabalho de relojoaria: obter
e analisar a Estratégia Local de Habitação (ELH) já concluída de cada município
e perceber qual é, afinal, o número total de famílias com carência habitacional
no país. Até Dezembro do ano passado, entre as 113 ELH concluídas, a
investigadora do CiTUA-IST, da Universidade de Lisboa, contabilizou cerca de 65
mil casos. Mas, entretanto, já foram aprovados mais destes documentos e o
número vai subir. Torna-se cada vez mais evidente que a promessa de 2018 do
primeiro-ministro António Costa de eliminar “todas as situações de carência
habitacional” até ao 50.º aniversário do 25 de Abril, em 2024, era uma utopia.
Quando é que será possível fazê-lo? “Essa é a pergunta de um milhão de euros”,
diz Sílvia Jorge.
Quando propôs o
que designou por “uma meta” nacional, António Costa estava a olhar para os
números que tinham acabado de ser divulgados pelo Levantamento Nacional das
Necessidade de Realojamento Habitacional (LNNRH), realizado pelo Instituto da
Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), através de um inquérito às
autarquias, que identificaram os casos de carência nos seus municípios. O
número final apontava para 25.762 famílias, mas houve várias autarquias que não
identificaram qualquer caso no seu território (apenas 187 dos 308 municípios
identificaram carências) e não faltou quem avisasse logo que aquele valor não
era sequer próximo do real. “Muitos de nós avisaram na altura que aquele número
estava aquém da realidade”, lembra a antiga deputada e especialista em
habitação Helena Roseta, que encontra uma justificação para a promessa de então
de António Costa: “O erro daquela frase do primeiro-ministro foi acreditar que
a realidade ficava assim. A verdade é que as necessidades mudam com o tempo”,
diz.
António Costa
tê-lo-á percebido pouco depois, não só pelos alertas recebidos logo na altura,
como pela audição da própria presidente do IHRU na Assembleia da República, em
2020, quando esta assumiu que havia um aumento de 77% face às carências
previamente identificadas. Aquele objectivo inicial do primeiro-ministro foi,
por isso, sendo suavizado, nos documentos posteriores que definem as metas do
Governo. No programa eleitoral do PS para as eleições legislativas de 30 de
Janeiro aparecia, assim, a intenção de “alocar os recursos financeiros
necessários para atingir o objectivo de erradicar as principais carências
habitacionais até ao 50.º aniversário do 25 de Abril, aumentando o parque
habitacional público”, e no programa de Governo, a versão final desta meta
sofria novas alterações: “Assim, é vital fortalecer e aprofundar as políticas
adoptadas, com uma meta muita clara: erradicar as principais carências
habitacionais identificadas no Levantamento Nacional de Necessidades de
Realojamento Habitacional de 2018 até ao 50.º aniversário do 25 de Abril, em
2024.” Ou seja, os problemas das 25.762 identificadas em 2018 e que, toda a
gente sabe, não correspondem às reais carências habitacionais do país.
Primeiro a chegar
Ou melhor –
precisa Sílvia Jorge –, resolver o problema de um número de famílias idêntico
àquele, mas que pode não ter correspondência (e não terá certamente) com as
famílias em concreto identificadas no LNNRH de 2018. A explicação é fácil: a
resolução dos problemas referidos no programa governamental será feita com o
recurso à verba alocada via Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), e que
está a ser concretizada sobretudo através do Programa 1.º Direito. Ora, para se
candidatarem ao 1.º Direito, os municípios têm de apresentar, obrigatoriamente,
uma ELH e os primeiros a fazê-lo serão os que ficarão com as verbas
disponíveis, que permitem um investimento de 100% a fundo perdido. Os restantes
contratos que venham a ser celebrados com o IHRU no âmbito do 1.º Direito, e
que excedam a verba do PRR de 1,21 milhões de euros, não serão esquecidos,
garante o Ministério da Habitação, mas já não beneficiarão das mesmas
condições. “O critério tem sido quem chega mais rápido é que é servido. Por
isso, os municípios que têm mais recursos e capacidade de fazer avançar os
processos estão em vantagem. E isto faz com que seja tudo decidido de forma
avulsa, não se está a aferir se as situações de maior precariedade são as que
estão a ser cobertas”, diz Sílvia Jorge.
Há outra
característica do 1.º Direito que alarga esse receio – a vertente que permite
que sejam os próprios proprietários a auto proporem-se a um apoio, os chamados
beneficiários directos. A questão prende-se com as condições exigidas a esses
beneficiários, como explica Aitor Varea Oro, investigador do MDT-CEAU-FAUP, da
Universidade do Porto: “Para autopromoverem uma candidatura ao 1.º Direito, as
pessoas têm de estar em situação de carência habitacional e financeira e,
dentro dos critérios de carência financeira, há um que é não ter mais de oito
mil euros na conta bancária. Isto são critérios de elegibilidade. Mas, ao mesmo
tempo, os requisitos de acesso ao financiamento praticamente exigem ter já um
projecto de arquitectura definido, para [o IHRU] saber se o projecto é viável
do ponto de vista urbanístico, se o financiamento que se está a pedir é
adequado às necessidades do agregado. Ou seja, são coisas que uma pessoa com
menos de oito mil euros no banco não vai conseguir fazer”, diz.
E esta é uma das
razões pelas quais o investigador diz existir “um hiato muito grande entre os
destinatários do financiamento e quem o atribui”.
E quantos serão,
ao certo, os casos a necessitar de ajuda para resolver uma situação de carência
habitacional? A definição para o 1.º Direito é mais abrangente do que aquela
que foi utilizada no LNNRH, pelo que o número iria obrigatoriamente subir,
mesmo que não houvesse actualização de dados. Mas ter um número mais próximo do
real ainda não foi possível.
Ao PÚBLICO, o
IHRU diz já ter recebido 171 ELH, mas não refere a quantos casos no total elas
se referem, limitando-se a referir o número de casos que já têm acordos
assinados com o instituto no âmbito do 1.º Direito: 46.889. Sílvia Jorge tinha
recolhido cerca de 65 mil casos com apenas 113 ELH aprovadas. E José Carlos
Guinote, engenheiro civil e doutorado em Urbanismo pela Universidade de Lisboa,
afirmava, num artigo de opinião no PÚBLICO, na semana passada, que também já
tinha recolhido dados que lhe permitiam apontar para a existência de 63.068
casos de carência habitacional. É ele o único a propor uma hipótese para quando
estiverem concluídas as ELH de todos os municípios: “O número final vai ficar,
garantidamente, e com margem de erro igual a zero, entre os 85 mil e os 100 mil
casos”, arrisca, com base nos dados já recolhidos.
Planear, planear
Como e quando é
que isto se resolve? Pode não haver uma resposta clara, mas há, pelo menos,
certezas sobre como não se resolve. “É preciso haver planeamento, criarmos
critérios muito claros para estabelecer prioridades; garantirmos que as
situações de fim de linha têm resposta imediata. Ao abrigo do PRR está a
andar-se em contra-relógio, avançando com as candidaturas que conseguem ir para
o terreno no imediato. É uma abordagem estritamente quantitativa e isto não
pode ser visto apenas a partir de números”, defende Sílvia Jorge.
Aitor Varea Oro
também coloca a tónica na necessidade de pensar o problema para lá do
investimento agora permitido pelo PRR. “Com o PRR temos um prazo muito claro:
em Junho de 2026 temos de ter as pessoas a viver nos locais [financiados com
recurso a este mecanismo de apoio europeu]. É uma corrida contra o tempo, as
condições estruturais estão a complicar isto muito, com a guerra, o problema
[da escassez e custos] dos materiais de construção. A resposta imediata é que
faz falta mais dinheiro, mas o dinheiro só não resolve as coisas. Temos duas
corridas: um sprint, para aproveitar as condições [do PRR] até 2026, e uma
maratona, porque depois dessa data vamos continuar a ter problemas. E mesmo que
agora tivéssemos mais dinheiro do PRR, não tínhamos condições para o executar,
porque faltam projectos e não sei se o sector da construção está preparado para
tanta obra em tão pouco tempo. Por isso, falta dinheiro, mas falta também planificação.
Há que planear para lá de 2026 e identificar muito bem as pessoas que têm
problemas, porque corremos o risco de as câmaras estarem a sinalizar as pessoas
que têm capacidade de saber que existem estes apoios, e não os que estão em fim
de linha e que, muitas vezes, não têm capacidade de ir aos serviços municipais
dizer, eu tenho um problema, e objectivá-lo”.
E é preciso,
também, salienta Helena Roseta, tornar eficazes os instrumentos entretanto
criados – como o Programa Nacional de Habitação, que, afirma o ministério,
“será apresentado ao Parlamento este ano” –, e olhar para soluções que envolvam
o edificado existente e desocupado. Ainda na quarta-feira foi revelado que, só
em Lisboa, existem 48 mil casas vagas, de acordo com o Censos de 2021. “Ao
contrário do que se passava no 25 de Abril de 1974, quando faltava meio milhão
de fogos [para as necessidades do país], hoje temos fogos a mais. Temos é uma
massa enorme de fogos que não estão a ser utilizados para a habitação. Não há
capacidade de arranjar casa para todos só com dinheiro público, mas muitos
destes fogos, provavelmente, poderiam estar no mercado se houvesse condições
para isso.” Há que criá-las, defende, ao mesmo tempo que se transforma a
questão da habitação numa “prioridade nacional na selecção do investimento
público”.
Quanto a
estabelecer um prazo para que todos os casos mais graves sejam resolvidos, o
ministério liderado por Pedro Nuno Santos prefere não o fazer. Em resposta
escrita enviada ao PÚBLICO, a preferência é por uma garantia sem prazo
associado: “Estamos a trabalhar, Governo e municípios, para responder ao máximo
de carências habitacionais no prazo mais curto possível.” A coesão territorial,
garante-se ainda, está salvaguardada com a determinação governamental de que
cada uma das sete NUTS II irá receber “5% do valor total do montante
disponível” no âmbito do PRR.
Ainda à espera de
mais dados das ELH para juntar aos casos que já identificou, Sílvia Jorge
mostra-se céptica quanto à possibilidade de algum dia se resolver, na totalidade,
o problema de habitação do país. “É preciso estabelecer metas, identificar os
problemas e as linhas de acção, sabendo de antemão que a habitação é um
problema estrutural e que não pode ser extinguido definitivamente. Não sei se
algum dia estaremos num cenário assim”, diz.


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