segunda-feira, 28 de março de 2022

Porque é que a Rússia exigiu pagamentos de gás natural em rublos?

 


Porque é que a Rússia exigiu pagamentos de gás natural em rublos?

 

Afigura-se que a União Europeia deu um tiro no pé ao congelar as reservas internacionais em euros do Banco Central da Rússia e, a persistir nesta medida, enfrentará dificuldades económicas que a maior parte da população e mesmo dos políticos europeus não antecipa.

 

Ricardo Cabral

28 de Março de 2022, 1:22

https://www.publico.pt/2022/03/28/opiniao/opiniao/russia-exigiu-pagamentos-gas-natural-rublos-2000370

 

As contra-sanções económicas da Rússia ao Ocidente têm vindo a ser anunciadas aos poucos nas últimas semanas, sendo de prever um agravamento das sanções económicas de parte a parte nas próximas semanas. Interessa analisar a estratégia e o potencial efeito das contra-sanções russas que já foram anunciadas.

 

A 7 de Março, o governo russo aprovou uma lista de países “hostis” (do inglês “list of countries taking ‘unfriendly actions'”), entre os quais se encontra Portugal, bem como os restantes Estados-membros da União Europeia.

 

Posteriormente, a 23 de Março, o presidente Putin anunciou que, “[para começar,] as transferências relativas a pagamentos para gás natural fornecido aos designados ‘países hostis’ [terão de ser realizadas] em rublos russos”. Na sequência deste anúncio o rublo chegou a apreciar-se cerca de 10% face ao euro e ao dólar e cerca de 45% face ao mínimo atingido há cerca de duas semanas, não obstante as reacções de altos responsáveis europeus, entre os quais o chanceler alemão Olaf Scholz, para quem essa exigência russa constituiria uma violação dos contratos existentes.

 

É possível inferir que existiriam três vias possíveis para realizar os pagamentos em rublos do gás natural russo: alguns grandes bancos russos aos quais não foram aplicadas sanções, grandes bancos internacionais ocidentais que permaneceram na Rússia e, indirectamente, através de outras divisas como o yuan chinês, a rupia indiana e até a lira turca. Como nota Sebastian Dullian, os bancos russos e bancos internacionais com presença na Rússia – designados bancos correspondentes – poderiam criar depósitos em rublos que seriam utilizados para pagar por essas importações de gás natural. Contudo, é de salientar que o balanço desses bancos ficaria exposto a crescente risco cambial, sobretudo se o rublo se apreciar. Por conseguinte, é provável que o Banco Central da Rússia injecte liquidez no sistema bancário de forma a evitar que a taxa de juro no mercado interbancário suba acima do objectivo ou que o rublo se aprecie em excesso, por exemplo, monetizando o défice público.

 

A estratégia financeira do Ocidente contra a Rússia

 

O objectivo das sanções económicas do Ocidente à Rússia é reduzir drasticamente a actividade económica e a capacidade produtiva da Rússia. O congelamento de cerca de metade das reservas internacionais da Rússia pelo Ocidente visa retirar-lhe os meios para financiar importações que necessita para o funcionamento da sua economia e visa também retirar-lhe os fundos que necessitaria para adquirir rublos de forma a evitar uma depreciação excessiva do rublo. Entre outros efeitos, a depreciação do rublo, a persistir, contribuiria para um aumento ainda maior da taxa de inflação desse país, já de si elevada antes da aplicação das sanções.

 

À semelhança do autor deste texto, vários economistas, entre outros, Michael Hudson, Kenneth Rogoff e Zoltan Pozsar, notaram que esta medida coloca em risco o papel do dólar (e do euro) como moeda de reserva internacional e provavelmente representa o princípio do fim do actual sistema monetário internacional.

 

A estratégia da Rússia contra o Ocidente: sacrificar a Rainha para o xeque-mate ao Rei?

 

O Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, afirmou que a Rússia não esperava e teria sido apanhada de surpresa com o congelamento de cerca de 300 mil milhões de dólares das reservas internacionais da Rússia. Contudo, as contra-sanções russas já anunciadas parecem contradizer essa afirmação de Lavrov, aliás, não credível, nomeadamente porque sanções similares foram aplicadas no passado pelos EUA a países como o Irão, Venezuela e mais recentemente ao Afeganistão.

 

Um artigo na The New Yorker, de 25 de Março, elogia o papel de Daleep Singh, um conselheiro da segurança nacional dos EUA para a economia internacional, e de Bjoern Seibert, chefe de gabinete da Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, no desenho e implementação do congelamento das reservas internacionais da Rússia. A peça da The New Yorker refere que as sanções económicas à Rússia começaram a ser pensadas por Daleep Singh em Novembro de 2021 e Daleep Singh é citado no final da peça afirmando “nós [Ocidente] também sabemos jogar xadrez”.

 

No entanto, afigura-se pouco sensato que estes dois decisores assumam publicamente a co-autoria desta sanção económica nesse artigo da The New Yorker, nomeadamente porque é prematuro assumir que esta sanção irá ter os resultados desejados pelo Ocidente. Ou seja, se de facto a Rússia antecipou esta “jogada de xadrez” por parte do Ocidente, deixando que as suas reservas fossem congeladas, qual sacrifício da Rainha em jogo de xadrez, é porque julgará que essa sanção será contraproducente para os interesses do Ocidente.

 

Que sentido faria sacrificar 300 mil milhões dólares de reservas internacionais?

 

Afigura-se que a Rússia poderá ter deliberadamente sacrificado uma parte muito significativa das suas reservas internacionais por quatro motivos principais.

 

Primeiro, poderia com essa medida procurar convencer a maior parte dos decisores e oligarcas internacionais que o dólar (e o euro) não é o activo financeiro mais seguro do mundo nem é um activo sem risco. Antes pelo contrário, o congelamento de cerca de 300 mil milhões de dólares de reservas da Rússia, denominados em diversas divisas entre as quais o dólar, parece demonstrar que os activos denominados em dólares apresentam elevado risco financeiro. Em particular, de ora em diante, os bancos centrais da generalidade dos países do mundo, nomeadamente dos países com grandes excedentes externos, estarão obrigados a considerar explicitamente o risco da aplicação de sanções às suas reservas em dólares e em euros e a diversificar essas reservas. Esse processo de diversificação de reservas levará a prazo à depreciação do dólar face a outras divisas internacionais, processo esse que se auto alimenta, com especuladores financeiros a anteciparem esse processo e a apostar contra o dólar.

 

Ora, os EUA financiam o seu elevado défice da balança corrente e de capital através de financiamento externo em dólares. Se não forem capazes de financiar as importações em dólares, a economia dos EUA estará sujeita a um aumento da taxa de inflação bem como a um enorme ajustamento externo que obrigaria os EUA a substituir importações por produção nacional.

 

Como argumenta Michael Hudson, esse movimento contra o dólar implica que as sanções Ocidentais à Rússia tornaram necessário um novo sistema monetário internacional e uma nova divisa de reserva internacional. Pozsar sugere que será criada uma nova moeda internacional ancorada no ouro e em mercadorias. Parece também existir uma proposta incipiente de origem russa para criação de uma nova moeda de reserva internacional composta por um cabaz de divisas (rublo, yuan, etc) e mercadorias.

 

Dividir o Ocidente e promover o levantamento das sanções

 

Segundo, ao obrigar as empresas do Ocidente a adquirir gás natural em rublos, a Rússia criou um enorme conflito de interesses e de opiniões no Ocidente, entre os que defendem o embargo às importações de petróleo e gás natural proveniente da Rússia e os que se opõem a esse embargo. Por exemplo, ocorre no presente uma acesa discussão entre economistas académicos alemães sobre esta questão, com aqueles que se opõem ao embargo a serem acusados por alguns de apaziguadores.

 

Por outro lado, parece bastante provável que países como a Hungria e a Áustria e, com uma probabilidade menor, também a Alemanha cumprirão as exigências de Moscovo de realizar as transferências relativas aos pagamentos de gás natural em rublos, porque não há alternativa ao gás natural russo nos próximos anos. Este processo contribuirá para a apreciação do rublo, anula o efeito do congelamento das reservas russas e dividirá a União Europeia.

 

De facto, entre outros estados-membros da UE, a Áustria, que importa 80% do gás natural que consome da Rússia, e a Hungria provavelmente vetarão um embargo às importações de petróleo e de gás natural provenientes da Rússia.

 

Note-se ainda que, na sequência da aplicação das sanções económicas, os excedentes da balança comercial e da balança corrente da Rússia aumentaram, sendo agora esperado que a Rússia atinja um excedente da balança corrente de 200 a 250 mil milhões de dólares em 2022, o que quase lhe permitiria reconstituir as reservas congeladas pelo Ocidente, desta feita sobretudo noutras divisas internacionais.

 

Deve realçar-se, no entanto, que esta estratégia financeira da Rússia, a confirmar-se, não seria isenta de riscos, nomeadamente o risco de apreciação excessiva do rublo.

 

O descongelamento das reservas de divisas russas no contexto de negociações para a paz na Ucrânia deve ser uma medida em cima da mesa das negociações

Reforçar a coesão em torno de Putin

 

Um terceiro objectivo da Rússia poderá ter sido reforçar a coesão em torno de Putin e dos nacionalistas russos, enfraquecendo a designada quinta coluna russa, Europeísta e Atlantista, favorável à integração da Rússia com o Ocidente e que se opunha à invasão da Ucrânia.

 

Na sequência do congelamento das reservas da Rússia, a Governadora do Banco Central da Rússia, Elvira Nabiullina, terá colococado o seu lugar à disposição, mas Putin terá recusado aceitar a sua demissão. Contudo, foi nomeada uma Comissão Económica, aparentemente com mais poderes que o Banco Central da Rússia, por exemplo, no que se refere à gestão das reservas internacionais da Rússia.

 

Os responsáveis do Banco Central da Rússia e do Ministério das Finanças da Rússia provavelmente serão considerados incompetentes pela opinião pública , porque “perderam” 300 mil milhões de dólares de dinheiros do povo russo, tendo um político do partido de Putin acusado o Banco Central da Rússia de “inimigo da nação” e exigido uma investigação criminal.

 

Note-se que este grupo de altos quadros Europeístas e Atlantistas das Administrações Públicas da Rússia, entre os quais Elvira Nabiullina e Anatoly Chubais, eram considerados muito competentes pelo Ocidente e não foram até à data sujeitos a sanções pelos EUA, ao contrário do que ocorreu a muitos outros responsáveis políticos russos. Chubais, responsável pelo processo de privatização das empresas públicas na sequência do colapso da União Soviética, foi quem recomendou Putin para vice-chefe do gabinete de Ieltsin, mas terá sido também o “padrinho” da Governadora do Banco Central da Rússia e era apontado como possível sucessor de Putin. Chubais, entretanto, demitiu-se do seu cargo de enviado internacional do presidente Putin e estará na Turquia.

 

Credibilizar o rublo

 

Um último possível objectivo seria procurar posicionar o rublo como moeda de reserva internacional no novo sistema monetário que previsivelmente resultará da presente “guerra económica”. Ao congelar as reservas internacionais a Rússia fica, na perspectiva dos seus parceiros comerciais internacionais, de mãos atadas, não podendo denominar as suas transacções comerciais nas divisas dominantes do presente. Assim, todos aqueles países que pretenderem continuar a realizar trocas comerciais com a Rússia terão de as denominar noutras moedas, provavelmente nas divisas dos dois países envolvidos nessas trocas comerciais, como parece sugerir o caso de um contrato para o fornecimento de petróleo russo à Índia, com o sistema de pagamentos em rublos e em rupias.

 

Pôr ponto final nesta escalada de tensão

 

Afigura-se que a União Europeia deu um tiro no pé ao congelar as reservas internacionais em euros do Banco Central da Rússia e, a persistir nesta medida, enfrentará dificuldades económicas que a maior parte da população e mesmo dos políticos europeus não antecipa.

 

Assim, o autor posiciona-se claramente no campo daqueles que defendem que é necessário desanuviar a tensão entre os dois blocos, revertendo a escalada de sanções e contra-sanções através de diplomacia que vise um cessar-fogo na Ucrânia.

 

O descongelamento das reservas de divisas russas no contexto de negociações para a paz na Ucrânia deve ser uma medida em cima da mesa das negociações sobretudo porque, como nota o especialista americano em armamento nuclear, professor emérito do MIT, Teodhore Postol, deveremos ter sempre presente que, quanto mais tempo durar este conflito entre o Ocidente e a Rússia, maior é o risco de um erro cálculo ou de um acidente que conduza a um holocausto termonuclear com, segundo Postol, “paredes de fogo […] a 100 milhões de graus Kelvin, cinco vezes a temperatura no centro do Sol, […] a envolver-nos [e a reduzir tudo a menos que cinzas]”.

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