Porque é que a Rússia exigiu pagamentos de gás natural em
rublos?
Afigura-se que a União Europeia deu um tiro no pé ao
congelar as reservas internacionais em euros do Banco Central da Rússia e, a
persistir nesta medida, enfrentará dificuldades económicas que a maior parte da
população e mesmo dos políticos europeus não antecipa.
Ricardo Cabral
28 de Março de
2022, 1:22
As contra-sanções
económicas da Rússia ao Ocidente têm vindo a ser anunciadas aos poucos nas
últimas semanas, sendo de prever um agravamento das sanções económicas de parte
a parte nas próximas semanas. Interessa analisar a estratégia e o potencial
efeito das contra-sanções russas que já foram anunciadas.
A 7 de Março, o
governo russo aprovou uma lista de países “hostis” (do inglês “list of
countries taking ‘unfriendly actions'”), entre os quais se encontra Portugal,
bem como os restantes Estados-membros da União Europeia.
Posteriormente, a
23 de Março, o presidente Putin anunciou que, “[para começar,] as
transferências relativas a pagamentos para gás natural fornecido aos designados
‘países hostis’ [terão de ser realizadas] em rublos russos”. Na sequência deste
anúncio o rublo chegou a apreciar-se cerca de 10% face ao euro e ao dólar e
cerca de 45% face ao mínimo atingido há cerca de duas semanas, não obstante as
reacções de altos responsáveis europeus, entre os quais o chanceler alemão Olaf
Scholz, para quem essa exigência russa constituiria uma violação dos contratos
existentes.
É possível
inferir que existiriam três vias possíveis para realizar os pagamentos em
rublos do gás natural russo: alguns grandes bancos russos aos quais não foram
aplicadas sanções, grandes bancos internacionais ocidentais que permaneceram na
Rússia e, indirectamente, através de outras divisas como o yuan chinês, a rupia
indiana e até a lira turca. Como nota Sebastian Dullian, os bancos russos e
bancos internacionais com presença na Rússia – designados bancos
correspondentes – poderiam criar depósitos em rublos que seriam utilizados para
pagar por essas importações de gás natural. Contudo, é de salientar que o
balanço desses bancos ficaria exposto a crescente risco cambial, sobretudo se o
rublo se apreciar. Por conseguinte, é provável que o Banco Central da Rússia
injecte liquidez no sistema bancário de forma a evitar que a taxa de juro no
mercado interbancário suba acima do objectivo ou que o rublo se aprecie em
excesso, por exemplo, monetizando o défice público.
A estratégia
financeira do Ocidente contra a Rússia
O objectivo das
sanções económicas do Ocidente à Rússia é reduzir drasticamente a actividade
económica e a capacidade produtiva da Rússia. O congelamento de cerca de metade
das reservas internacionais da Rússia pelo Ocidente visa retirar-lhe os meios
para financiar importações que necessita para o funcionamento da sua economia e
visa também retirar-lhe os fundos que necessitaria para adquirir rublos de
forma a evitar uma depreciação excessiva do rublo. Entre outros efeitos, a
depreciação do rublo, a persistir, contribuiria para um aumento ainda maior da
taxa de inflação desse país, já de si elevada antes da aplicação das sanções.
À semelhança do
autor deste texto, vários economistas, entre outros, Michael Hudson, Kenneth
Rogoff e Zoltan Pozsar, notaram que esta medida coloca em risco o papel do
dólar (e do euro) como moeda de reserva internacional e provavelmente
representa o princípio do fim do actual sistema monetário internacional.
A estratégia da
Rússia contra o Ocidente: sacrificar a Rainha para o xeque-mate ao Rei?
O Ministro dos
Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, afirmou que a Rússia não
esperava e teria sido apanhada de surpresa com o congelamento de cerca de 300
mil milhões de dólares das reservas internacionais da Rússia. Contudo, as
contra-sanções russas já anunciadas parecem contradizer essa afirmação de
Lavrov, aliás, não credível, nomeadamente porque sanções similares foram
aplicadas no passado pelos EUA a países como o Irão, Venezuela e mais
recentemente ao Afeganistão.
Um artigo na The
New Yorker, de 25 de Março, elogia o papel de Daleep Singh, um conselheiro da
segurança nacional dos EUA para a economia internacional, e de Bjoern Seibert,
chefe de gabinete da Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, no
desenho e implementação do congelamento das reservas internacionais da Rússia.
A peça da The New Yorker refere que as sanções económicas à Rússia começaram a
ser pensadas por Daleep Singh em Novembro de 2021 e Daleep Singh é citado no
final da peça afirmando “nós [Ocidente] também sabemos jogar xadrez”.
No entanto,
afigura-se pouco sensato que estes dois decisores assumam publicamente a
co-autoria desta sanção económica nesse artigo da The New Yorker, nomeadamente
porque é prematuro assumir que esta sanção irá ter os resultados desejados pelo
Ocidente. Ou seja, se de facto a Rússia antecipou esta “jogada de xadrez” por
parte do Ocidente, deixando que as suas reservas fossem congeladas, qual
sacrifício da Rainha em jogo de xadrez, é porque julgará que essa sanção será
contraproducente para os interesses do Ocidente.
Que sentido faria
sacrificar 300 mil milhões dólares de reservas internacionais?
Afigura-se que a
Rússia poderá ter deliberadamente sacrificado uma parte muito significativa das
suas reservas internacionais por quatro motivos principais.
Primeiro, poderia
com essa medida procurar convencer a maior parte dos decisores e oligarcas
internacionais que o dólar (e o euro) não é o activo financeiro mais seguro do
mundo nem é um activo sem risco. Antes pelo contrário, o congelamento de cerca
de 300 mil milhões de dólares de reservas da Rússia, denominados em diversas
divisas entre as quais o dólar, parece demonstrar que os activos denominados em
dólares apresentam elevado risco financeiro. Em particular, de ora em diante,
os bancos centrais da generalidade dos países do mundo, nomeadamente dos países
com grandes excedentes externos, estarão obrigados a considerar explicitamente
o risco da aplicação de sanções às suas reservas em dólares e em euros e a diversificar
essas reservas. Esse processo de diversificação de reservas levará a prazo à
depreciação do dólar face a outras divisas internacionais, processo esse que se
auto alimenta, com especuladores financeiros a anteciparem esse processo e a
apostar contra o dólar.
Ora, os EUA
financiam o seu elevado défice da balança corrente e de capital através de
financiamento externo em dólares. Se não forem capazes de financiar as
importações em dólares, a economia dos EUA estará sujeita a um aumento da taxa
de inflação bem como a um enorme ajustamento externo que obrigaria os EUA a
substituir importações por produção nacional.
Como argumenta
Michael Hudson, esse movimento contra o dólar implica que as sanções Ocidentais
à Rússia tornaram necessário um novo sistema monetário internacional e uma nova
divisa de reserva internacional. Pozsar sugere que será criada uma nova moeda
internacional ancorada no ouro e em mercadorias. Parece também existir uma
proposta incipiente de origem russa para criação de uma nova moeda de reserva
internacional composta por um cabaz de divisas (rublo, yuan, etc) e
mercadorias.
Dividir o
Ocidente e promover o levantamento das sanções
Segundo, ao
obrigar as empresas do Ocidente a adquirir gás natural em rublos, a Rússia
criou um enorme conflito de interesses e de opiniões no Ocidente, entre os que
defendem o embargo às importações de petróleo e gás natural proveniente da
Rússia e os que se opõem a esse embargo. Por exemplo, ocorre no presente uma
acesa discussão entre economistas académicos alemães sobre esta questão, com
aqueles que se opõem ao embargo a serem acusados por alguns de apaziguadores.
Por outro lado,
parece bastante provável que países como a Hungria e a Áustria e, com uma
probabilidade menor, também a Alemanha cumprirão as exigências de Moscovo de
realizar as transferências relativas aos pagamentos de gás natural em rublos,
porque não há alternativa ao gás natural russo nos próximos anos. Este processo
contribuirá para a apreciação do rublo, anula o efeito do congelamento das
reservas russas e dividirá a União Europeia.
De facto, entre
outros estados-membros da UE, a Áustria, que importa 80% do gás natural que
consome da Rússia, e a Hungria provavelmente vetarão um embargo às importações
de petróleo e de gás natural provenientes da Rússia.
Note-se ainda
que, na sequência da aplicação das sanções económicas, os excedentes da balança
comercial e da balança corrente da Rússia aumentaram, sendo agora esperado que
a Rússia atinja um excedente da balança corrente de 200 a 250 mil milhões de
dólares em 2022, o que quase lhe permitiria reconstituir as reservas congeladas
pelo Ocidente, desta feita sobretudo noutras divisas internacionais.
Deve realçar-se,
no entanto, que esta estratégia financeira da Rússia, a confirmar-se, não seria
isenta de riscos, nomeadamente o risco de apreciação excessiva do rublo.
O descongelamento
das reservas de divisas russas no contexto de negociações para a paz na Ucrânia
deve ser uma medida em cima da mesa das negociações
Reforçar a coesão
em torno de Putin
Um terceiro
objectivo da Rússia poderá ter sido reforçar a coesão em torno de Putin e dos
nacionalistas russos, enfraquecendo a designada quinta coluna russa, Europeísta
e Atlantista, favorável à integração da Rússia com o Ocidente e que se opunha à
invasão da Ucrânia.
Na sequência do
congelamento das reservas da Rússia, a Governadora do Banco Central da Rússia,
Elvira Nabiullina, terá colococado o seu lugar à disposição, mas Putin terá
recusado aceitar a sua demissão. Contudo, foi nomeada uma Comissão Económica,
aparentemente com mais poderes que o Banco Central da Rússia, por exemplo, no
que se refere à gestão das reservas internacionais da Rússia.
Os responsáveis
do Banco Central da Rússia e do Ministério das Finanças da Rússia provavelmente
serão considerados incompetentes pela opinião pública , porque “perderam” 300
mil milhões de dólares de dinheiros do povo russo, tendo um político do partido
de Putin acusado o Banco Central da Rússia de “inimigo da nação” e exigido uma
investigação criminal.
Note-se que este
grupo de altos quadros Europeístas e Atlantistas das Administrações Públicas da
Rússia, entre os quais Elvira Nabiullina e Anatoly Chubais, eram considerados
muito competentes pelo Ocidente e não foram até à data sujeitos a sanções pelos
EUA, ao contrário do que ocorreu a muitos outros responsáveis políticos russos.
Chubais, responsável pelo processo de privatização das empresas públicas na
sequência do colapso da União Soviética, foi quem recomendou Putin para
vice-chefe do gabinete de Ieltsin, mas terá sido também o “padrinho” da
Governadora do Banco Central da Rússia e era apontado como possível sucessor de
Putin. Chubais, entretanto, demitiu-se do seu cargo de enviado internacional do
presidente Putin e estará na Turquia.
Credibilizar o
rublo
Um último
possível objectivo seria procurar posicionar o rublo como moeda de reserva
internacional no novo sistema monetário que previsivelmente resultará da
presente “guerra económica”. Ao congelar as reservas internacionais a Rússia
fica, na perspectiva dos seus parceiros comerciais internacionais, de mãos
atadas, não podendo denominar as suas transacções comerciais nas divisas
dominantes do presente. Assim, todos aqueles países que pretenderem continuar a
realizar trocas comerciais com a Rússia terão de as denominar noutras moedas,
provavelmente nas divisas dos dois países envolvidos nessas trocas comerciais,
como parece sugerir o caso de um contrato para o fornecimento de petróleo russo
à Índia, com o sistema de pagamentos em rublos e em rupias.
Pôr ponto final
nesta escalada de tensão
Afigura-se que a
União Europeia deu um tiro no pé ao congelar as reservas internacionais em
euros do Banco Central da Rússia e, a persistir nesta medida, enfrentará
dificuldades económicas que a maior parte da população e mesmo dos políticos
europeus não antecipa.
Assim, o autor
posiciona-se claramente no campo daqueles que defendem que é necessário
desanuviar a tensão entre os dois blocos, revertendo a escalada de sanções e
contra-sanções através de diplomacia que vise um cessar-fogo na Ucrânia.
O descongelamento
das reservas de divisas russas no contexto de negociações para a paz na Ucrânia
deve ser uma medida em cima da mesa das negociações sobretudo porque, como nota
o especialista americano em armamento nuclear, professor emérito do MIT,
Teodhore Postol, deveremos ter sempre presente que, quanto mais tempo durar
este conflito entre o Ocidente e a Rússia, maior é o risco de um erro cálculo
ou de um acidente que conduza a um holocausto termonuclear com, segundo Postol,
“paredes de fogo […] a 100 milhões de graus Kelvin, cinco vezes a temperatura
no centro do Sol, […] a envolver-nos [e a reduzir tudo a menos que cinzas]”.
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