POLÍTICA CULTURAL
Pedro Adão e Silva: um ministro sem currículo para
resgatar um “ministério menor”
Entre a surpresa e o benefício da dúvida, representantes
do sector esperam que o peso mediático do novo titular da pasta lhe permita
conquistar o reforço orçamental há muito reivindicado.
Joana Amaral
Cardoso e Sérgio C. Andrade
4 de Março de
2022, 18:56
Um dia após o
anúncio de Pedro Adão e Silva como futuro ministro da Cultura, a escolha
continua a gerar perplexidade. E se há algum consenso no reconhecimento da
vasta experiência política e da notoriedade mediática do sociólogo e professor
no ISCTE, já a ausência de currículo na área da cultura, ou sequer em algum dos
seus sectores mais específicos, justifica apreensão, mas também expectativa.
“Não sou capaz de
fazer um juízo antecipado sobre uma pessoa que não conheço. Mas vamos todos
esperar que corra bem, porque serão quatro anos de consulado; é muito tempo,
que pode significar uma estabilidade muito grande e, na verdade, se correr bem
para ele, correrá bem para nós, para o país e para os públicos”, disse ao
PÚBLICO o coreógrafo Rui Horta.
O arqueólogo Luís
Raposo também “não estava à espera, francamente, desta pessoa em concreto, com
este perfil”. Nota tratar-se de alguém “aparentemente sem grandes laços
anteriores à cultura, no sentido do Ministério da Cultura”. Mas, como todos os
inquiridos pelo PÚBLICO, Raposo deixa em aberto a possibilidade de ser
surpreendido, até porque reconhece no novo ministro “um cidadão atento e
informado”.
“Também eu estou
aqui para ser surpreendido pela positiva, no futuro”, admite Rui Horta. E tanto
a programadora de cinema Cíntia Gil como a produtora Pandora Cunha Telles
destacam em Adão e Silva “a experiência na política pública” e a “capacidade
política”.
Saber até que
ponto estas características terão expressão concreta e visível no exercício da
governação, e na reivindicação das “condições administrativas, orgânicas e
financeiras para que o ministério possa funcionar”, como na noite desta
quarta-feira assinalava o musicólogo Rui Vieira Nery, é agora a principal
interrogação.
Um ministério
menor?
“Esperamos que,
dada a sua relevância mediática, [Adão e Silva] tenha exigido um aumento de
verbas no orçamento do Ministério da Cultura para a aceitação do cargo”, diz
Amarílis Felizes, produtora cultural e dirigente da associação Plateia.
Um cenário que
não parece convencer Cíntia Gil. A ex-directora do DocLisboa vê na escolha do
novo ministro um sinal “de como o dr. António Costa vê a Cultura, um bocadinho
como um ministério menor”.
“Mais uma vez, a
aposta para a Cultura é uma pessoa que, à partida, não tem intervenção
continuada, nem um conhecimento profundo desta área. E o que está a faltar é
uma política consistente, de longo prazo, que venha do conhecimento e análise
das questões não só dos espaços urbanos maiores, mas de todo o país. Tenho
sérias dúvidas de que o dr. Adão e Silva tenha feito a reflexão necessária, e
que redunde em políticas efectivas”, exprime esta voz especialmente activa da
Plataforma do Cinema, que nos últimos anos vem defendendo políticas públicas
firmes para a produção independente portuguesa.
Já Pandora Cunha
Telles vê no novo rosto da Cultura “um passado forte em políticas públicas”. “O
que nós precisamos, neste momento em Portugal, é que saia um plano estratégico
para o sector; precisamos de estabilidade a nível de investimentos e
calendários”.
Caderno de
encargos
Também Luís
Raposo lembra a necessidade de que o sector a que se encontra ligado, o
património cultural, recolha do novo governante a atenção que lhe tem faltado.
“Nesse sentido, e uma vez que agora só haverá uma secretaria de Estado, espero
que ela seja dedicada a esta área, como já acontecia no Governo anterior”.
Mesmo se, em termos gerais, não manifesta uma expectativa muito grande quanto
ao desempenho do Ministério nos próximos quatro anos – ressalvando, no entanto,
não estar em causa “a pessoa em concreto” –, o presidente do ICOM-Europa lembra
a necessidade de o dotar, e em particular a área do património cultural, de uma
efectiva “capacidade operacional” que reverta “o despovoamento e a
desqualificação técnica dos serviços”.
“Vamos ver se
será desta que, finalmente, vai haver uma reestruturação que evidentemente terá
de passar por uma maior operacionalidade do mastodonte ingovernável que é a
Direcção-Geral do Património Cultural”, diz o arqueólogo.
Numa espécie de
caderno de encargos, Luís Raposo aponta três prioridades ao futuro ministro. Em
primeiro lugar, que traduza em programa do Governo o que desde há vários anos
vem sendo apresentado pelo PS nos seus programas eleitorais relativamente à
reestruturação da área do património cultural e arquitectónico.
Em segundo lugar
– “mesmo se é já uma daquelas esperanças mais da área da quimera do que outra
coisa” –, “que se dêem passos credíveis no sentido de transportar a audição da
sociedade civil, designadamente as universidades e as associações do
património, bem como os profissionais de outras áreas culturais, para o
Conselho Nacional de Cultura, transformando-o num real órgão de consulta do
Governo”.
E ainda uma
questão de curto prazo e que, “na conjuntura actual – mesmo não o sendo do
ponto de vista estrutural –, será a mais importante, que é executar o PRR”,
realça o arqueólogo. “É o grande desafio que temos pela frente.”
Também a
representante da Plateia enumera as tarefas mais prementes a que Adão e Silva
deve deitar mãos. Em primeiro lugar, Amarílis Felizes assinala a necessidade de
o ministro se “posicionar perante os casos mais flagrantes de precariedade e de
abuso laboral em algumas instituições com grande financiamento público, como a
Casa da Música e a Fundação de Serralves”, bem como de abraçar a causa mais
geral “do combate à precariedade, que também foi o mote da criação do Estatuto
dos Profissionais da Cultura”.
Resolver os
atrasos nos pagamentos do programa Garantir Cultura, “que se estão a prolongar
e a criar uma certa crise no sector”, e abrir os concursos para o financiamento
plurianual da DGArtes são outras medidas consideradas urgentes pela Plateia, que
se mostra, enquanto representante do sector das artes cénicas, “sempre
disponível para dialogar com o Ministério da Cultura”.
Preocupações com
o audiovisual
A Secretaria de
Estado do Cinema, Audiovisual e Media desaparece do novo Governo, cuja lei
orgânica contempla apenas uma Secretaria de Estado, a da Cultura. Uma situação
que Cíntia Gil desvaloriza, mas que preocupa Pandora Cunha Telles.
“Na verdade, esta
secretaria do audiovisual foi fundada para garantir que se criavam as condições
para se fazerem aquelas coisas vergonhosas, como se não houvesse taxas cobradas
à Netflix”, atira a responsável pelo festival de Sheffield, referindo-se à
transposição da directiva europeia que define as obrigações de investimento das
plataformas de streaming e partilha de vídeo em Portugal. “As lutas do senhor
secretário de Estado foram autênticos ataques à sustentabilidade do Instituto
do Cinema e do Audiovisual [ICA] e ao cinema independente”, acusa a
programadora.
Pandora Cunha
Telles, co-fundadora da produtora Ukbar Filmes, pensa de forma diferente.
“Preocupa-me muito o fim da Secretaria de Estado do Cinema, Audiovisual e
Media. Houve desafios cumpridos nos últimos anos porque ela existiu”, lamenta a
produtora, lembrando que “uma secretaria de Estado não só implementa
directivas, mas também promove a dinamização e internacionalização do sector.”
Para a produtora
da Ukbar, urge passar de um pensamento “administrativo” e de curto prazo para
um foco “na estratégia” – por exemplo, prolongar de facto o Pic Portugal/ Fundo
do Turismo e do Cinema, cuja existência está apenas garantida até 2023, para
alinhar a capacidade de atracção de produções estrangeiras com a de outros
países que pensam esses benefícios fiscais a médio e longo prazo. Mas na
fileira do cinema e audiovisual, a urgência maior nem está agora na produção,
mas sim na exibição cinematográfica, sublinha Pandora.
A pandemia fez
com que quase meia centena de ecrãs não voltassem a acender-se depois dos
confinamentos e restrições do acesso aos cinemas. Segundo dados do ICA, em
Fevereiro deste ano, Beja tinha já perdido metade das suas salas de cinema, por
exemplo, Aveiro perdera seis e Portalegre três; no Porto, sete ecrãs apagaram-se,
nos Açores, foram quatro a desligar-se. No total, o país tem hoje menos 49
salas do que em 2021. “Tem de haver uma política de reabilitação do tecido de
exibição, se não, metade das salas vai fechar”, avisa Pandora Cunha Telles, que
pede mesmo um “plano de emergência para as salas”.
O cinema está a
braços com questões prementes que o Governo deve esclarecer, avisa Cíntia Gil,
nomeadamente o cumprimento da Lei do Cinema com a integração das despesas
administrativas do ICA no Orçamento do Estado, e o acautelar do impacto da
aplicação do Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura na produção. “Vai
pesar brutalmente sobre os orçamentos dos filmes”, alerta. “Quando se sobem os
salários mínimos, há apoios às empresas para os poderem cumprir numa primeira
fase, mas neste caso não houve qualquer proposta para lidar com essas
despesas”, lamenta. “A questão da precariedade não ficou resolvida, é preciso
esclarecer isso.”
tp.ocilbup@osodrac.anaoj
tp.ocilbup@edardnas

Sem comentários:
Enviar um comentário