quinta-feira, 3 de março de 2022

O funeral da “geringonça” faz-se na Ucrânia

 

EDITORIAL GUERRA NA UCRÂNIA

O funeral da “geringonça” faz-se na Ucrânia

 

O voto contra uma resolução do Parlamento Europeu que condenava a invasão da Ucrânia põe o PCP onde, na prática, ele sempre esteve: do lado de lá da democracia liberal; no caso, do lado dos autocratas.

 



Manuel Carvalho

2 de Março de 2022, 21:33

https://www.publico.pt/2022/03/02/politica/editorial/funeral-geringonca-fazse-ucrania-1997395

 

A invasão da Ucrânia expôs com crueza a dificuldade de o PCP fazer parte de qualquer solução governativa numa democracia europeia. Essa dificuldade tornara-se clara no Outono do ano passado, quando a “geringonça” faleceu. A condescendência para com Vladimir Putin acaba com o pouco que restava da sua memória. O voto contra uma resolução do Parlamento Europeu que condenava a invasão da Ucrânia põe o PCP onde, na prática, ele sempre esteve: do lado de lá da democracia liberal; no caso, do lado dos autocratas.

 

Todos os que, como António Costa, defenderam a “geringonça” em nome de “um novo arco de governação” tiveram de ignorar esta diferença de valores políticos. Um partido que chumba uma resolução contra a agressão da Rússia à Ucrânia não tem legitimidade para falar de democracia, direitos humanos ou soberania popular. É um partido alinhado com a visão imperial de Moscovo, não com o princípio da autodeterminação ou com a lei internacional.

 

Não se pode dizer que essa fenda moral seja novidade. Os comunistas nunca esconderam a sua aversão à democracia liberal, à União Europeia e, claro está, à NATO. Como nunca esconderam a sua simpatia, velada ou expressa, por ditadores como Nicolas Maduro ou por regimes autoritários como a China.

 

Num quadro internacional normal como o que vivemos até há pouco, quando o PCP não tinha de se expor, era possível varrer a sua natureza profunda para debaixo do tapete e embalar a democracia com a lengalenga das “políticas patrióticas e de esquerda”. Uma guerra como a da Ucrânia é um teste de algodão.

 

Quando, como agora, é preciso escolher entre autocratas e democracias liberais, o verniz do PCP estala e a sua essência emerge. Enquanto o Bloco range os dentes por ter de se colar à posição da Europa, mas, no essencial, distingue agressores de vítimas, o PCP tem demasiado passado para mudar. O que diz e o que vota está no seu ADN, incrustado de dogmatismo marxista, da vanguarda leninista e de um pouco de totalitarismo estalinista.

 

Para sorte de António Costa e do PS esquerdista, a Ucrânia foi invadida depois do divórcio com o PCP. O idílio que se manteve entre 2015 e 2019 seria hoje impossível. O eleitorado moderado do PS jamais aceitaria negociações sobre orçamentos com um partido tolerante para com Vladimir Putin. Deve haver socialistas com pesadelos só de o lembrar.

 

A “geringonça” não foi uma mudança de fundo na arquitectura do sistema partidário. Foi um epifenómeno utilitário e conjuntural. O PCP estava e continua na outra margem dos valores ou da história. A “geringonça” já tinha morrido de morte natural e a guerra na Ucrânia serviu para a enterrar mais fundo.

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