quinta-feira, 17 de março de 2022

E se a Rússia deixar de ser europeia?

 


ANÁLISE

E se a Rússia deixar de ser europeia?

 

Uma visão de longo prazo sobre a guerra de Putin.

 

Sandra Fernandes

17 de Março de 2022, 7:00

https://www.publico.pt/2022/03/17/mundo/analise/russia-deixar-europeia-1999030

 

A história e a geografia da Rússia são europeias, antes e depois de 1991, ou seja, antes e depois do fim a União Soviética. A mudança da imagem internacional do país é iniciada com o czar Pedro, o Grande que, conquistando Azov em 1696, marca o renascimento da potência russa na nova perspetiva de abertura para o Mar Negro. De potência-enclave continental, o acesso marítimo abre-lhe doravante novos horizontes. Talvez ainda mais relevante para o ímpeto externo russo, o czar empreende, de seguida, um projeto diplomático de larga envergadura (a grande ambassade) para conhecer e se aproximar do mundo distante que era a Europa. O desígnio de modernizar o país e da aceitação da Rússia pela Europa marcam o início do reinado do jovem Pedro. A norte, ele reconquista, contra a Suécia, territórios perdidos há séculos de modo a restabelecer o seu acesso ao mar Báltico. O seu triunfo será simbolizado por uma nova capital construída ex nihilo sobre pantanais, São Petersburgo. Tinha chegado a altura de a Rússia se inserir no novo sistema de alianças europeias após um longo período de desprezo.

 

Assim, Pedro, o Grande rompe com um isolamento russo de vários séculos que vigorou em paralelo - e alienado - do surgimento de uma civilização europeia no período renascentista. Todavia, como lembra Hélène Carrère d’Encausse, tudo tinha começado bem. Quando Ana de Kiev deixa os seus territórios longínquos para casar com o rei francês Henrique I, no século XI, o seu pai tinha feito de Kiev a rival resplandecente de Constantinopla (a capital do Império Otomano). A unificação das terras e da identidade russa sobre as conquistas mongóis será lenta, assim como o seu reconhecimento e regresso à Europa. Só com a dinastia Romanov é que a vontade de abertura ao Ocidente se afirma, não sem hesitações e desconfianças recíprocas.

 

Da época de isolamento ficaram estereótipos duradouros sobre a dificuldade em compreender a Rússia, ora exótica, ora bárbara, apesar da sua identidade europeia e do seu lugar no seio das potências europeias. A própria questiona-se continuadamente sobre o caminho que deve seguir, à luz do debate entre eslavófilos e ocidentalistas do século XIX, profundamente expresso na grande literatura desse século, desde Pushkin, passando por Turgueniev e Tchekov, até Dostoievski e Tolstoi.

 

O questionamento sobre a sua pertença à Europa, ou se é um mundo à parte que segue as suas próprias regras, esteve na génese da Rússia moderna, como se autointitula o país desde 1991. O Presidente Putin, acerca do 50.º aniversário da União Europeia, expressou o seguinte: “No seu famoso discurso sobre Pushkin, Fiodor Dostoievski deu aquilo a que poderia chamar de definição política e filosófica da missão europeia da Rússia: ‘Ser um verdadeiro russo significará, em última análise, trazer a reconciliação às contradições da Europa.’ O grande escritor pressentiu perfeitamente que a Europa jamais seria ela mesma sem a Rússia e, ao mesmo tempo, a Rússia nunca deixaria de sentir esse ‘anelo pela Europa’. Eu acredito piamente que a completa unidade do continente nunca poderá ser alcançada até que a Rússia, como o maior Estado europeu, se torne parte integral do processo europeu.” [1] Ao reler estas palavras que mostram, ainda, a inserção europeia do país, surge a questão: o que correu mal?

 

Embora nada legitime a guerra de Putin contra a Ucrânia soberana, guerra muito motivada pela sua própria evolução pessoal na última década, as responsabilidades são partilhadas. A definição do interesse nacional russo percebe-se numa geometria variável. Esse interesse é uma função da sua sensibilidade negativa à Aliança Atlântica (NATO) e da avaliação do valor acrescentado das suas opções europeias, em particular com a União Europeia. O ideal pan-europeu de uma Europa menos ligada aos Estados Unidos da América e à NATO foi permanente, mas a aceitação do statu quo, que derivava da perceção russa da sua fragilidade, e que vigorou até ao segundo mandato de Putin, foi sendo posto em causa até ao inimaginável, com a opção da guerra frontal a 24 de fevereiro de 2022.

 

Assistimos há mais de uma década ao regresso do Kremlin, que melhorou a posição da Federação Russa no sistema internacional e que modificou a sua política externa em conformidade. A imagem do urso russo despertando de um longo período de hibernação deixava vislumbrar a necessidade da sua acomodação. A tarefa era difícil, morosa e foi enquadrada numa arquitetura complexa de cooperação, em particular com a União Europeia. Em 2004, o desafio era recordado por V. Nikonov que, num tom eslavófilo, afirmava que “a Rússia é muito grande, e muito russa” [2], isto é, para ser um vulgar parceiro europeu.

 

Os desafios da atual guerra na Europa são imediatos, mas requerem uma visão de longo prazo. Vladimir Putin, apresentando ao mundo um rosto de frio mármore, deixou de se preocupar não só com a imagem internacional da Rússia, mas também com a construção de um mundo e de uma Europa na qual a Rússia participava. Nesse mundo, as instituições internacionais permitem transcender, ainda que de forma imperfeita, a luta desenfreada e violenta pelo poder, a favor do humanismo. Negociar com um dirigente que rompeu com a tradição europeia da Rússia, incluindo os seus valores, princípios e visão do mundo, materializa uma rutura que poderá ter consequências mais profundas na construção da identidade nacional russa e, portanto, consequências para o redesenhar, em curso neste momento, do novo mapa da Europa.

 

[1] Putin, Vladimir. 2007. 50 years of the European integration and Russia [http://president.kremlin.ru/eng/speeches/2007/03/25/1133_type104017_120756.shtml]

 

[2] Nikonov, Vyacheslav. 2004. Russia and European Community: politics and economics. The Europe/Russia Relations in the new enlarged Europe, Russian Summer Session, Moscow (15-23 July): International University of Moscovo. V. Nikonov é neto de Molotov e próximo de Putin. Ele dirige os think-tanks Unity for Russia e Polity Foundation.

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