domingo, 26 de setembro de 2021

We always have … Draghi

 



OPINIÃO

We always have … Draghi

 

Há um novo player no jogo europeu com o qual quase nos esquecemos de contar, de tal modo tinha estava afastado do jogo. Mario Draghi está a operar uma profunda transformação em Itália, que não se limita à política interna.

 

Teresa de Sousa

26 de Setembro de 2021, 14:01

https://www.publico.pt/2021/09/26/opiniao/opiniao/we-always-have-draghi-1978766

 

1. Por mais estranho que possa parecer, poucas vezes se ouviu falar da União Europeia na campanha eleitoral alemã. É pena. Há uma lista infindável de problemas que a Europa não pode continua a adiar, se quer fortalecer a sua unidade e desempenhar um papel relevante num mudo em acelerada transformação. Como escreve Judy Dempesy no site do Carnegie Europe, uma dessas questões inadiáveis, sobre a qual a Alemanha tem de tomar algumas decisões, diz respeito à segurança e defesa. Dempsey é particularmente crítica da forma como a chanceler ignorou deliberadamente essas as questões – no quadro da NATO e da União Europeia. Deixou as coisas correrem. Nunca respondeu às propostas da França sobre a criação de uma capacidade militar europeia autónoma da NATO, que permitisse aos europeus defender os seus interesses específicos ou agir na sua vizinhança mais próxima, hoje profundamente instável. Quanto à NATO, sem nunca pôr em causa a importância dos EUA na garantia de segurança europeia, preocupou-se muito pouco com a modernização do Exército alemão ou com o cumprimento da meta de 2 por cento para os orçamentos da defesa dos países aliados, aprovada por unanimidade numa cimeira da Aliança, em 2014. Deixou a defesa nas mãos de Ursula Von der Leyen e Annegret Kremp-Karrenbauer – que foram as duas primeiras candidatas a suas “sucessoras” na liderança da CDU, antes de Armin Lachet. Houve, naturalmente, o choque de Trump, que levou os europeus a olhar para a sua dependência da NATO, ou seja, dos EUA, com olhos bastante mais preocupados. Ainda acreditaram que a chegada de Joe Biden à Casa Branca restauraria automaticamente os bons velhos tempos. Ignoraram a viragem estratégica dos EUA para o Indo-Pacífico, desenhada ainda no tempo de Obama, bem como todos os avisos feitos por todos os presidentes desde o fim da Guerra Fria de que teriam de “partilhar o fardo” da sua segurança mais equitativamente com os EUA. De repente, a saída abrupta do Afeganistão e o novo pacto de segurança entre os EUA, o Reino Unido e a Austrália (AUKUS) lançaram uma onda de choque, como se nada disso fizesse sentido ou fosse imprevisível.

 

A indefinição e o desinteresse deixaram de ser uma opção.

 

2. Curiosamente, a “crise dos submarinos” entre os EUA e a França acabou por ser clarificadora. A França tinha a sua própria estratégia para o Indo-Pacífico, que passava, não apenas por uma significativa presença naval na região, mas pelo reforço da cooperação com a Austrália e a Índia. Com o novo pacto de defesa e com o renascimento do QUAD, sentiu-se posta à margem da nova geopolítica regional. Mas Macron, que nunca poria em causa a fidelidade à NATO (entre os gaullistas de centro-direita, ouviram-se vozes a exigir o abandono da Aliança Atlântica), fez Biden pagar um preço “razoável” pelo facto de ter ignorado a França. O resumo da conversa telefónica entre ambos é a agenda da cimeira que ambos vão realizar no final de Outubro. Biden reconhece que uma certa capacidade militar autónoma da Europa pode ser compatível com a NATO. Reafirma a importância das relações transatlânticas. Mas o caderno de encargos também existe para o lado de cá. O seu homólogo francês tem pela frente uma missão difícil: arregimentar as tropas europeias para as suas ideias de autonomia. Não será fácil, mas implica uma clarificação alemã. Até porque Biden lhe vai perguntar com a sua habitual franqueza: “Qual é o vosso plano?” E Macron tem de ter um plano. Ou não.

 

3. Regressando a Berlim, há um vasto sector do SPD (mesmo que não inclua Olaf Scholz) que defende, há muito, a “desnuclearização” da Alemanha – ou seja, a retirada das armas nucleares americanas instaladas no país, que fazem parte da força de dissuasão nuclear da NATO. Nunca se fala delas, mas continuam a desempenhar um papel de dissuasão fundamental, sobretudo perante o comprovado desrespeito da Rússia pelas leis internacionais e a sua política europeia cada vez mais agressiva. As restantes estão na Bélgica, Reino Unido, Holanda. Itália e Turquia. Aproxima-se a passos largos a necessidade de renovar o esquadrão de Tornados da Força Aérea alemã, capazes de transportar armas nucleares. A ideia de Annegret Kremp-Karrenbauer seria uma “solução-ponte”: substituir parte dos Tornados por Eurofighters, que não têm essa capacidade, e adquirir os F-18 Super Hornets americanos que as podem transportar. O plano foi derrotado pelo SPD e pela CSU – Merkel também o rejeitou. No Bundestag, um dos deputados sociais-democratas da ala mais à esquerda aproveitou a oportunidade para voltar à carga: “Armas nucleares em território alemão não melhoram a nossa segurança, pelo contrário.” O próximo governo, seja ele qual for, não poderá adiar eternamente a questão. E o problema maior até podem não ser os Verdes. Annalena Baerbock defende uma política externa que tenha no centro os direitos humanos e a democracia – tal como Biden –, o que a leva a ter as posições mais duras em relação à China e à Rússia. Não teve a menor hesitação em garantir que suspendia o Nord Stream 2, se fosse eleita. O assunto das armas nucleares tem sido cuidadosamente evitado. Abertamente atlantista, duvida-se que quisesse alterar o statu quo.

 

3. Que alternativa à dissuasão nuclear americana? Emmanuel Macron, num discurso na Escola da Guerra em 2018, foi mais longe do que qualquer dos seus antecessores, ao abrir as portas à europeização da “force de frappe” nuclear francesa, pondo-a ao serviço da União. Convém lembrar que a França não colocou a sua capacidade nuclear à disposição da NATO, ao contrário do Reino Unido. Na altura, a sua oferta foi seguida por um silêncio generalizado. Hoje, o maior receio de muitos países europeus é outro: que os Estados Unidos reduzam drasticamente a sua presença nuclear na Europa. Como lembra Bruno Tretais numa recente publicação do Instituto Montaigne (Weapons of Mass Debate –Time to talk about nuclear deterrence in Europe), Biden “tem perturbado alguns dos seus aliados quando promete que, para além de se concentrar na China e não na Rússia, também quer reduzir o papel das armas nucleares na estratégia dos EUA (…)”. Numa palavra, a realidade é muito mais complicada do que parece.

 

4. Depois, há um novo player no jogo europeu com o qual quase nos esquecemos de contar, de tal modo estava afastado do jogo. Mario Draghi, se conseguir levar até ao fim os seus planos, está a operar uma profunda transformação em Itália, que não se limita à política interna. “Ao estabelecer uma posição interna muito forte, o seu Governo está também a fortalecer a política externa italiana”, escreve Giovanna de Maio na Foreign Affairs. Em três dimensões fundamentais: uma forte aposta na integração europeia; um alinhamento muito próximo com os Estados Unidos e um afastamento rápido da aproximação à China, desenvolvida por quase todos os governos anteriores. “A Itália está particularmente bem colocada para liderar, entre as nações europeias, o esforço de reparação das relações transatlânticas”, escreve a mesma analista. Na questão da defesa europeia, Roma foi e é bastante mais receptiva do que alguns dos seus grandes parceiros europeus às preocupações dos EUA. “Tem a oportunidade de servir de ponte entre os dois lados, até porque tem fortes ligações à indústria de defesa americana.” É em Itália que estão instaladas a unidades finais de produção dos F-35 da Lockheed Martin; Roma participa, com os EUA e o Reino Unido, no desenvolvimento de um novo avião de combate (o Tempest). Mas a grande viragem de Draghi foi no que toca às relações com a China. Há dois anos, Roma foi criticada por ter assinado um “memorando de entendimento” com a China para participar na Belt and Road Initiative (Portugal também). Draghi já anunciou publicamente que vai reconsiderar esse compromisso. Suspendeu dois contratos entre empresas de comunicações italianas e a Huawei e a ZTE. Com o Governo francês, travou a compra da Iveco por um grupo chinês. Mais recentemente, bloqueou a compra da LPE, uma pequena empresa de Milão que se especializou no fabrico de microchips, por uma empresa chinesa. Se Draghi se mantiver por tempo suficiente – e, em Itália, nunca se sabe –, está em boas condições para repor algum equilíbrio intra-europeu no que toca às relações transatlânticas, ocupando pelo menos em parte o vazio deixado pelo Reino Unido. Com uma enorme vantagem: sem deixar de apostar todas as suas fichas no reforço da integração europeia.

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