OPINIÃO
Moedas, ou regresso do popó
Passamos de um autarca que queria limitar a circulação
automóvel no centro para outro que anunciou descontos no estacionamento em toda
a capital e vilipendiou as ciclovias enquanto diz querer "uma cidade mais
sustentável" - é talvez isso que "as pessoas querem", slogans
sem dor. Mas então talvez seja de aprender a não respirar.
Fernanda Câncio
Fernanda Câncio
28 Setembro 2021
— 00:23
Já pouca gente se
lembrará - foi naquele tempo muito longínquo antes da pandemia - mas fez à
época correr rios de tinta. Fernando Medina anunciou, no início de 2020, a ZER
- Zona de Emissões Reduzidas - para o centro da cidade, com forte limitação de
circulação e estacionamento de automóveis particulares na Baixa/Chiado. Foi
dura e exaustivamente debatido com moradores e comerciantes em várias sessões
públicas (sei, participei), levando a algumas alterações do projeto inicial, e
deveria ter sido aplicada a partir de junho de 2020.
Com o
confinamento decretado em março, porém, a Câmara adiou a entrada em vigor da
ZER. Foi, no meu entender, uma péssima decisão.
Uma vez que a ZER
implicava várias obras - alargamento de passeios, colocação de traçados de
elétricos, etc -, não teria existido melhor altura que o confinamento, com
lojas e demais negócios fechados e quase nenhuma circulação automóvel ou
pressão de estacionamento para além da dos moradores (que poderiam por exemplo
usar, excepcionalmente a título gratuito e enquanto os trabalhos durassem, os
lugares deixados livres nos parques da zona), para avançar com elas, com toda a
calma. Seria também a altura ideal para uma habituação progressiva, sem choque,
às novas regras, por parte de moradores, polícia e transportes públicos.
Perdeu-se a
oportunidade. E com o resultado das eleições de domingo pode-se ter mesmo
perdido tudo. Senão, leia-se o programa de Carlos Moedas. É certo que proclama
serem "as alterações climáticas e a degradação ambiental uma das maiores
ameaças que o planeta e a humanidade enfrentam na atualidade", e "as
cidades geradoras de uma parte significativa desses impactos"; que "a
resposta política ambiental de Lisboa requer uma ação urgente, transversal,
concertada e assertiva" e é preciso tornar a "cidade
sustentável". Mais à frente, assegura-se que "Lisboa precisa de uma
governação que saiba conduzir, com equilíbrio, a transição de um modelo de
cidade baseado no carro e nos transportes, promovido nas últimas décadas, para
um modelo de cidade baseado na proximidade."
Ao arrepio do que
é a tendência nas grandes cidades europeias e da ideia de sustentabilidade,
propõe medidas de promoção da circulação automóvel. O slogan "restituir a
rua aos lisboetas" significa na verdade, pasme-se, restituí-la aos carros
dos lisboetas.
Toda esta
conversa (que se prende com a famosa "cidade dos 15 minutos", ou
seja, a ideia de Moedas de que tudo o que as pessoas precisam na sua vida deve
estar no máximo a 15 minutos de distância da morada - o que é muito
interessante mas obviamente inconcretizável no espaço de um ou dois mandatos,
se de todo) não se traduz, porém, em qualquer medida concreta de limitação de
circulação e estacionamento. Pelo contrário: ao arrepio do que é a tendência
nas grandes cidades europeias e da ideia de sustentabilidade, propõe medidas de
promoção da circulação automóvel. O slogan "restituir a rua aos
lisboetas" significa na verdade, pasme-se (é verificar, está na página
13), restituí-la aos carros dos lisboetas: quer que, para eles (presume-se que
se referirá a quem mora em Lisboa), os 20 primeiros minutos de estacionamento
sejam gratuitos em toda a cidade e paguem menos 50% em todos os parquímetros.
Também quer
"redesenhar a rede de ciclovias" da cidade (recorde-se que na
campanha garantiu que nelas tinham morrido 26 pessoas em 2019, o que é falso) e
acabar com a da avenida Almirante Reis - a qual, lembre-se, fazia parte do
plano da ZER. Dir-se-á que anuncia, por exemplo, passes grátis para jovens até
aos 18, estudantes e maiores de 65. Mas de que serve isso se diz a toda a gente
com carro "usem-no à vontade, ficou mais barato estacionar em qualquer
lado"? É que tal medida não se limita a tornar mais atrativo o uso de
carro; faz mais penoso o dos transportes públicos de superfície - a Carris -
pois quanto mais carros houver a circular menos os transportes públicos são
eficazes.
É possível,
claro, que a ideia de se poder continuar a usar o transporte individual a
bel-prazer e contar, em tese (porque obviamente não será possível - não há
lugares para tal), com estacionamento barato à superfície no centro da cidade
tenha agradado a uma parte do eleitorado de Moedas. É normal; custa, ao fim de
décadas de incremento do paradigma do transporte individual e da ideia de que
se pode levar o carro para todo o lado, aceitar que isso não pode continuar a
ser possível.
Mas não pode -
não há "cidade sustentável" ou sequer mundo sustentável assim, e
sabemo-lo há décadas. Só falta usar esse saber para salvar o que é possível -
coisa que andamos coletivamente, cidade, país e mundo, a adiar ad aeternum. Não
é decerto com slogans vazios que lá vamos; é preciso coragem e capacidade de
sacrifício por um bem maior.
A eleição de
Moedas - ou, melhor dizendo, a derrota de Fernando Medina - deixa-nos muito
mais longe dessa coragem. Malgrado trazer consigo a "aura de viajado"
(que deveria impulsioná-lo para soluções como a da ZER, pelo conhecimento
daquilo que se faz "lá fora"), o presidente eleito é um homem do
lobby do popó. Ou não tivesse na sua lista para a Assembleia Municipal o
indescritível Carlos Barbosa, presidente do Automóvel Club de Portugal e
fanático do tubo de escape. Se depender de Moedas e Barbosa, agora que vamos
finalmente poder andar na rua sem as máscaras pandémicas teremos de trocá-las
pelas antipoluição. Novos tão velhos tempos.
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