EDITORIAL
Rendeiro e a Justiça em parte incerta
Há processos demasiado importantes a serem dirimidos nos
tribunais para que continuemos a ser confrontados com fugas espectaculares e a
terrível sensação de impunidade.
Tiago Luz Pedro
29 de Setembro de
2021, 17:34
https://www.publico.pt/2021/09/29/opiniao/editorial/rendeiro-justica-parte-incerta-1979293
O país assistiu
atónito a mais um caso que é um tiro em cheio na credibilidade das nossas
instituições: João Rendeiro, o antigo banqueiro no centro da falência do Banco
Privado Português (BPP), fugiu para parte incerta e estará num país sem acordo
de extradição com Portugal. Ironia das ironias, anunciou que o fez no exacto
dia em que foi condenado em mais um processo relacionado com o BPP, desta vez a
três anos e meio de prisão efectiva por burla qualificada.
Vale a pena
esboçar uma brevíssima cronologia do caso Rendeiro para melhor se perceber o
que está em causa: o BPP faliu em 2008, acumulando prejuízos de 700 milhões só
nesse ano e deixando um rasto de 3000 clientes lesados. Rendeiro levou anos a
ser acusado e só em 2014 começou a responder em tribunal pela queda do banco.
Foi condenado em três processos, a dez, cinco e três anos de prisão, e só num
deles a sentença transitou em julgado – aconteceu agora mesmo, no passado dia
17 de Setembro, 13 anos depois do colapso do BPP. Foi a sua prisão iminente que
o levou a viajar para Londres, de onde partiu agora em trânsito para parte
incerta.
A fuga de
Rendeiro encerra três pecados capitais: demonstra uma vez mais a ineficácia de
um sistema de justiça demasiado moroso e em permanente plano inclinado para as
garantias da defesa – de recurso em recurso, de incidente em incidente, o caso
Rendeiro é todo um manual de instruções sobre como ludibriar a Justiça e arrastar
as decisões para lá do limite do razoável; acentua a percepção de que há uma
Justiça para ricos e outra para pobres e que o Estado de direito não serve a
todos por igual; e é, pelo que representa de descrédito numa instituição
primordial à vitalidade das democracias, o pasto perfeito de que se alimentam
os populismos e todo o tipo de justiceirismo popular.
Nas três últimas
décadas, Portugal acumulou uma galeria apreciável de arguidos notáveis que
deram o salto para fugir à Justiça – praticamente todos, é certo, acabariam
mais cedo ou mais tarde por regressar ao país. Há processos demasiado
importantes a serem dirimidos nos tribunais para que continuemos a ser
confrontados com fugas espectaculares e a terrível sensação de impunidade.
OPINIÃO
João Rendeiro em fuga – que país é este?
Há gente que é apanhada em flagrante delito – e há gente
que é deixada em flagrante fuga.
João Miguel
Tavares
30 de Setembro de
2021, 0:14
https://www.publico.pt/2021/09/30/opiniao/opiniao/joao-rendeiro-fuga-pais-1979320
Os políticos
adoram encher a boca com a palavra desigualdade. Em 20 dos últimos 26 anos
fomos governados por um partido de esquerda que ama a igualdade. Em todas as
eleições há lamentos sobre os números da abstenção e a distância entre eleitos
e eleitores. Cada vez que alguém anuncia que “o sistema vai tremer”, há uma
longa fila de políticos e comentadores a alertarem para os perigos do
populismo. Parece-me tudo óptimo. Mas, por favor, alertem com o mesmo fervor
para os perigos de manter o sistema como ele está quando acontecem
inconcebíveis escândalos como esta mais do que previsível fuga para o
estrangeiro de João Rendeiro – uma imponente estátua à miséria das nossas leis,
ao interminável arrastamento dos processos em tribunal e aos estratagemas
jurídicos que abrem crateras de distância entre ricos e pobres.
João Rendeiro
está condenado em três processos diferentes, um dos quais já transitado em
julgado, a três, cinco e dez anos de prisão. O jornalista Luís Rosa tem
acompanhado os casos de perto no Observador, e explicado em artigos muito
detalhados os imbróglios jurídicos e as estratégias da defesa que acabaram por
conduzir a este desfecho. No dia 11 de Setembro, publicou um texto intitulado
“Por que razão João Rendeiro e o seu ex-braço direito ainda não
foram presos?”. Esta quarta-feira, dia 29 de Setembro, publicou outro
chamado “Como foi possível João Rendeiro fugir? 8 respostas sobre o caso”.
Entre um artigo e
outro, João Rendeiro resolveu viajar para Londres. Apesar de três vezes
condenado, apenas se mantém sujeito ao chamado TIR (Termo de Identidade e
Residência), a medida mínima de coacção. Por isso, ele fez duas coisas: 1)
comunicou às autoridades portuguesas, já em Inglaterra, que iria ficar por lá
entre 13 e 30 de Setembro; 2) indicou os contactos da Embaixada de Portugal em
Londres para o caso de ser preciso falar com ele.
Simultaneamente,
Rendeiro pisgou-se com estilo e a gozar com os tribunais – “se quiserem saber
onde estou, perguntem à vossa embaixada”. Agora, pasmem: não é inédito. No
Verão, ele já tinha viajado para a Costa Rica (terá ido comprar casa?), tendo
na altura indicado, junto dos autos, os contactos do consulado de Portugal.
Pelos vistos, nenhuma autoridade se chateou muito com isso.
Entretanto, e
como é óbvio, João Rendeiro já não está em Londres. Voou para parte incerta,
sendo mais do que certo que será um país sem acordo de extradição para Portugal
(dica às autoridades: telefonar para o consulado da Costa Rica). No seu blogue,
Rendeiro informou o povo português que já não volta, pois sente-se “injustiçado
pela justiça” e a sua “ausência” (sublinhe-se o eufemismo) é um “acto de
legítima defesa”. Não sei quantas pessoas estão presas de uma forma que
consideram injusta, mas imagino que sejam muitas – a diferença é que umas têm
de serrar as grades para fugir e outras telefonam para a TAP.
Como explica Luís
Rosa nos seus artigos, há belíssimas justificações jurídicas para o que
aconteceu. Em Portugal, os mandados de condução à prisão só são emitidos após
terminarem todas as hipóteses de recurso, e essas hipóteses são quase
intermináveis para quem as pode pagar. Nos entretantos, dá para viajar pelo
mundo, ainda que triplamente condenado, e escolher com calma a ilha onde viver
no futuro. Há gente que é apanhada em flagrante delito – e há gente que é
deixada em flagrante fuga. Em Portugal, os pobres vão para a prisão, mesmo que
não queiram. Os ricos só vão se lhes apetecer.
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