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OPINIÃO
O assunto lamentável
É lamentável que o primeiro-ministro desresponsabilize o
seu ministro para dessa forma não ter de assumir as suas próprias
responsabilidades.
Manuel João Ramos
2 de Setembro de
2021, 6:01
https://www.publico.pt/2021/09/02/opiniao/opiniao/assunto-lamentavel-1975652
Não! Não me é
possível conceder ao primeiro-ministro António Costa o benefício da dúvida nem
a presunção de desconhecimento. No final do último congresso do partido
socialista, em entrevista ao canal televisivo SIC, António Costa referiu-se ao
atropelamento mortal causado pela viatura oficial em que viajava o ministro da
Administração Interna, Eduardo Cabrita, ocorrido na tarde de 18 de Junho
passado na A6. Afirmou então que: “O único assunto lamentável aqui é a vida
humana que se perdeu. Se houvesse respeito, aguardava-se que as autoridades
apurassem o que aconteceu e não se aproveitasse uma perda humana para fazer um
ataque político a uma pessoa que era um passageiro num automóvel.” E
rematou, dizendo que: “É das coisas mais revoltantes e desprezíveis a que tenho
assistido.”
Esta foi a
primeira vez que, após dois meses a evadir perguntas dos jornalistas, António
Costa se referiu ao trágico atropelamento na A6. E fê-lo da pior maneira
possível: tratando uma morte como se fosse equivalente à perda de um molho de
chaves e isentando Eduardo Cabrita da exigível assunção de responsabilidade.
Vejamos, por
partes: será que “o único assunto lamentável aqui” é mesmo a vida humana que se
perdeu? Tenho para mim, e presumo que tenha também a viúva de Paulo Santos e os
seus filhos, que a vida humana que se perdeu não é um assunto lamentável, mas
um assunto trágico. O adjectivo “lamentável” não serve para qualificar a
realidade da morte do trabalhador, mas sim do que aconteceu a seguir: o
silêncio prolongado de Eduardo Cabrita, os ataques políticos da oposição, o
silêncio ainda mais prolongado do primeiro-ministro. Lamentável é António Costa
não ter publicamente confrontado o facto de o ministro responsável pela gestão
da segurança rodoviária no país ter, indirectamente, causado uma morte na
estrada, e igualmente lamentável é o facto de ele próprio, três semanas depois
do atropelamento, ter sido detectado a circular, na sua viatura oficial, a 200
km/h na A1. Lamentável é que o caso esteja em segredo de justiça e que o
advogado da viúva da vítima não tenha acesso ao processo de investigação.
“Se houvesse
respeito”, lamenta o primeiro-ministro, não se fazia um “ataque político”. Num
mundo ideal (ou idealizado por filósofos gregos antigos), talvez fosse possível
que a política se entrosasse com a ética, e o respeito imperasse. Mas o
respeito não é uma concessão de partida, é efeito de um atributo. O respeito
ganha-se como resultado, não se exige como condição. Ora, é do conhecimento público
que a prática da circulação das viaturas oficiais nas ruas e estradas do país
assenta no recurso discricionário e sistemático da chamada “marcha urgente de
interesse público”.
Ora, é do conhecimento público que a prática da
circulação das viaturas oficiais nas ruas e estradas do país assenta no recurso
discricionário e sistemático da chamada “marcha urgente de interesse público”.
São inúmeros os
“casos e casinhos” em que detentores de cargos públicos se envolvem, directa ou
indirectamente, em práticas rodoviárias que, para a generalidade da população,
são matéria de sanção criminal. É, no entanto, justo lamentar que opositores
políticos condenem práticas rodoviárias sem primeiro fazerem o seu próprio mea
culpa. Em particular, é para mim embaraçante ouvir Rui Rio praticar um “ataque
político” a Eduardo Cabrita sem antes se retractar dos seus próprios actos
rodoviários e das suas palavras publicadas (“a menos de 120 km/h adormeço ao
volante”, “riscos contínuos ou velocidade máxima na auto-estrada são obrigações
que já risquei da minha lista”, “[atropelei três peões na A1] mas sem
consequências de maior”).
“Uma pessoa que
era um passageiro num automóvel”: na tarde de 18 de Junho, Eduardo Cabrita não
ia, de facto, a conduzir o BMW. Mas, à luz da lei, não era um simples
passageiro. E António Costa sabe-o, por ser jurista, ex-deputado, ex-ministro
da Justiça e ex-ministro da Administração Interna, e por ele próprio ter estado
envolvido, em 2009, num caso de excesso de velocidade na A2, tendo então
alegado que a sua viatura circulava em marcha urgente de interesse público
quando se dirigia ao Estádio do Algarve como presidente da Câmara de Lisboa,
para assistir a um jogo que só se iniciaria quatro horas depois.
Para todos os
efeitos judiciais, Eduardo Cabrita era, naquela situação e naquele momento,
mandante do motorista que atropelou o trabalhador. Tal não lhe confere
automaticamente, como é natural, o estatuto de responsável pelo atropelamento,
porque essa responsabilidade deve primeiro ser investigada e julgada. Essa é
matéria para o departamento de investigação rodoviária da GNR, que —
lamentavelmente — se encontra sob a sua tutela directa; e essa é matéria para o
Ministério Público e para os juízes. Mas deve ficar claro que Eduardo Cabrita,
naquela situação, estava longe de ser apenas “uma pessoa que era um passageiro
num automóvel”. O motorista estava a agir a mando do ministro e este, por acção
ou omissão, foi o responsável pelo seu comportamento rodoviário.
Lamentável é
fingir que assim não foi, porque desrespeita o facto da morte de Paulo Santos.
E lamentável é que o primeiro-ministro desresponsabilize o seu ministro para
dessa forma não ter de assumir as suas próprias responsabilidades.
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