quinta-feira, 2 de setembro de 2021

A autofagia que engoliu o Museu Romântico

 


A autofagia que engoliu o Museu Romântico

2021/09/02 POR MARIA ISABEL ROQUE

https://amusearte.hypotheses.org/7481?fbclid=IwAR21YTH-ievGHkl9UJLOakoqvrsr441dNL4kFwqCH9jo6Q5VNxr9-kdcMkg

 

O Museu Romântico era isso mesmo: um espaço romântico, evocativo do espírito nostálgico e introspetivo do século XIX. Numa altura em que se pretende suscitar experiências sensoriais e emotivas no museu, este, apesar da apresentação convencional, cumpria esses desígnios, numa atmosfera que nos remetia para as páginas literárias carregadas de alvoroço amoroso e sentimentalismos exacerbados.

 

Localizado numa casa do século XVIII da Quinta da Macieirinha, voltado para o Rio Douro e rodeado pelo verde dos Jardins do Palácio de Cristal, o ambiente idílico transportava-nos para o espírito da época. Aqui viveu e morreu o exilado Rei da Sardenha e Príncipe do Piemonte, Carlos Alberto de Saboia-Carignano (1798-1849). Depois de a propriedade ter sido comprada pela Câmara Municipal do Porto, Humberto de Saboia ofereceu uma réplica dos móveis que tinham servido a Carlos Alberto Saboia, seu trisavô, fazendo nascer a ideia de um museu do romantismo portuense. Foi feita uma pesquisa documental e iconográfica, através de publicações da época, nomeadamente, dos desenhos e aguarelas dos aposentos do Rei, para fundamentar a recriação dos ambientes e procedeu-se à aquisição de mobiliário português da época, refletindo o gosto eclético e as influências francesa, alemã e inglesa. Assim, com um acervo de mobiliário, pintura, têxteis e artes decorativas do século XIX, o museu pretendia reconstituir o quotidiano de uma casa burguesa no Porto da época romântica em Oitocentos.

 

O museu foi inaugurado em 1972 e tornou-se um dos mais conhecidos e frequentados dos museus municipais do Porto. Em 2018, reabriu depois de um investimento superior a meio milhão de euros em obras de requalificação, sob a orientação do arquiteto Camilo Rebelo e com a colaboração do cenógrafo Tito Celestino. Na inauguração após as obras, Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto e vereador da Cultura sublinhava que, mesmo antes das obras, já era “o mais visitado dos nossos espaços museológicos”, talvez porque, segundo admitia “o ambiente de época, o nome, os jardins abertos ao público do Palácio de Cristal e da Casa Tait que o envolvem compõem um discreto charme que convida a entrar” (cit. in “Museu Romântico”, 2018).

 





No passado sábado, 28 de agosto, um post na página de Facebook da Feira do Livro do Porto, anunciando que um “novo núcleo do Museu da cidade” tinha sido inaugurado no âmbito da Feira, desafiava à sua visita nos seguintes termos:

 

Se conhecia o anterior Museu Romântico da Macieirinha, prometemos que este novo espaço nada tem a ver com o local que outrora visitou. O espaço despiu-se dos adereços [?] de casa burguesa oitocentista e vestiu-se de contemporaneidade.

Não acredita? Visite a exposição “Quando a Terra Voltar a Brilhar Verde para Ti”, veja as relações criadas no seu interior e comprove isso mesmo […].

 


A informação gerou quase 700 reações, a maioria de tristeza e raiva, e quase 600 comentários, em regra, também de estupefação e indignação. E resultou na abertura da Petição Pública “Pela reposição da decoração interior oitocentista do Museu Romântico da Quinta da Macieirinha no Porto” onde todas estas reações estão plasmadas:

 

Uma casa burguesa musealizada e com abertura ao público que mostrava como se vivia no Porto romântico oitocentista e que deu agora lugar a mais um espaço de contemporaneidade desintegrada como tantos outros e completamente dissociado da vivência original que (também e principalmente) constituía a sua riqueza patrimonial.

 

Despida da sua decoração romântica integradora a que chama a Câmara Municipal do Porto, com desprezo, de “adereços” como: o mobiliário fixo e móvel, as artes decorativas, os têxteis, a iluminação e tudo o que mais comporta (que sendo ou não originais, evocam o seu Tempo), descaracterizando os espaços, as funções e as vivências que tão bem retratavam.

 

No texto da Petição, estão plasmadas as questões que nos assaltam a todos e que têm a ver com o destino do espólio (onde está e para onde vai?) e com a destruição do património e descaraterização do espaço.

 

Em resposta ao JN, Rui Moreira defende, agora, a nova configuração e afiança que “Nenhum espólio foi destruído, nenhuma obra desperdiçada”, justificando que “a nossa visão do Romantismo não é a de uma casa com janelas entaipadas e exposições apresentadas por trás de baias, para que as pessoas ali imaginem a vida dos ricos ou dos nobres do século XIX”. Não deixa de ser curioso que o vereador da cultura da segunda maior cidade do país demonstre uma tal ignorância acerca do objetivo do museu, o qual não era exatamente mostrar a “vida dos ricos”, e dos processos museológicos, mas sobretudo esta displicência e desprezo pelo património que lhe cabe preservar e divulgar.

 




Por seu turno, Nuno Faria, designado “diretor-artístico” do Museu da Cidade apresentou a “Extensão do Romantismo”, nome que passa a designar o espaço do antigo Museu Romântico, confirmando que o espólio “foi recolhido para ser novamente apresentado noutros espaços do Museu da Cidade”. E assegurou que a “matriz romântica – essa – continua viva por toda a casa, com a vantagem de agora não haver baias a delimitar os espaços que, invariavelmente, remetiam para uma encenação teatral de um quotidiano burguês que ali não perdurou muito tempo”.  O cargo que ocupa, “diretor-artístico”, é inédito e parece derivar das artes performativas e não se percebe o que uma “extensão” ou aquilo de que é extensão. E, ao que parece, o que era um museu passa a ser um espaço performativo das vaidades políticas e pseudointelectuais de quem procura parecer moderno, fazendo uso de uns quantos chavões em moda, como quando refere que “Todas as montagens serão sazonais, imprimindo dinamismo à sua matriz conceptual”. Ou que o “programa passa por ligar espaços tão heteróclitos e tão radicalmente diferentes entre si, a Extensão do Romantismo será um lugar em que se repensa a própria condição do espírito romântico como sendo trans-histórica, atemporal e, por isso mesmo também – e muito – contemporânea” (“Nuno Faria…”, 2021). O discurso é vazio, fátuo e pomposo, a esconder a nulidade dos argumentos.

 

Há aqui, obviamente, uma marca da sociedade atual, ou do hipermodernismo defendido por Lipovetsky, assumindo os efeitos da globalização, das modas, dos media, do consumismo, dos mercados, e da própria modernidade, e que estão subjacentes ao desejo de quebrar o passado e romper com as suas evidências e nostalgias – ou seja, precisamente, ao que simbolizava o Museu Romântico. Segundo Lipovetsky , “o que define a hipermodernidade não é exclusivamente a autocrítica dos saberes e das instituições modernas; é também a memória revisitada, a remobilização das crenças tradicionais, a hibridização individualista do passado e do presente” (Lipovetsky, 2004, p. 98). Lipovetsky afirmava ainda que “na hipermodernidade, a fé no progresso foi substituída não pela desesperança nem pelo niilismo, mas por uma confiança instável, oscilante, variável em função dos acontecimentos e das circunstâncias” (id., p. 70). Porém, a hipermodernidade é também a “era do vazio”, marcada pela fluidez e pela aparência – e isso é precisamente aquilo que os museus procuram compensar, fornecendo uma âncora que nos fixa a uma matriz cultural, aquilo que nos permite a confiança na continuidade e na permanência.

 

Esta descarada reconversão do Museu Romântico, engolido por qualquer coisa que, sendo fluída, ainda não é completamente apreensível, é o mais evidente ato de autofagia que, a espaços, ameaça o mundo da cultura. Até pode ser desejável encontrar as tais “montagens sazonais” que se anunciam para este espaço. Apenas não são desejáveis aqui e à custa do que era um museu com caraterísticas muito particulares, um discurso bem elaborado e sustentado, e, sobretudo, no qual a comunidade se revia.

 

A autofagia é fruto da ignorância, a qual também justifica o tom sobranceiro e atrevido dos discursos de quem a promove. Cabe a todos lutar contra ela, sobrepondo-lhes a vontade de preservar o património e manter a memória do lugar.

 

Referências:

“Nuno Faria em entrevista: ‘Os museus passam por fases de transformação ao longo do tempo’”. In Porto. Acedido em https://www.porto.pt/pt/noticia/nuno-faria-em-entrevista-os-museus-passam-por-fases-de-transformacao-ao-longo-do-tempo

“Museu Romântico reabre após investimento superior a meio milhão de euros em obras de requalificação”  In Porto. Acedido em https://www.porto.pt/pt/noticia/museu-romantico-reabre-apos-investimento-superior-a-meio-milhao-de-euros-em-obras-de-requalificacao

Lipovetsky, G. (2004). Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla.

Silva, H. T. (2021, 31 ago.). Petição pede versão antiga do Museu Romântico do Porto. JN. Acedido em https://www.jn.pt/artes/peticao-pede-versao-antiga-do-museu-romantico-do-porto-14078506.html

 

Imagens do interior do Museu Romântico in: Oliveira, S. S. (2028, 2 mar.). À descoberta do renovado Museu Romântico do Porto. Visão. Acedido em https://visao.sapo.pt/visaose7e/ver/2018-03-02-a-descoberta-do-renovado-museu-romantico-do-porto-1/#&gid=0&pid=10

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