A autofagia que engoliu o Museu Romântico
2021/09/02 POR
MARIA ISABEL ROQUE
O Museu Romântico
era isso mesmo: um espaço romântico, evocativo do espírito nostálgico e
introspetivo do século XIX. Numa altura em que se pretende suscitar
experiências sensoriais e emotivas no museu, este, apesar da apresentação
convencional, cumpria esses desígnios, numa atmosfera que nos remetia para as
páginas literárias carregadas de alvoroço amoroso e sentimentalismos
exacerbados.
Localizado numa
casa do século XVIII da Quinta da Macieirinha, voltado para o Rio Douro e
rodeado pelo verde dos Jardins do Palácio de Cristal, o ambiente idílico
transportava-nos para o espírito da época. Aqui viveu e morreu o exilado Rei da
Sardenha e Príncipe do Piemonte, Carlos Alberto de Saboia-Carignano
(1798-1849). Depois de a propriedade ter sido comprada pela Câmara Municipal do
Porto, Humberto de Saboia ofereceu uma réplica dos móveis que tinham servido a
Carlos Alberto Saboia, seu trisavô, fazendo nascer a ideia de um museu do
romantismo portuense. Foi feita uma pesquisa documental e iconográfica, através
de publicações da época, nomeadamente, dos desenhos e aguarelas dos aposentos
do Rei, para fundamentar a recriação dos ambientes e procedeu-se à aquisição de
mobiliário português da época, refletindo o gosto eclético e as influências
francesa, alemã e inglesa. Assim, com um acervo de mobiliário, pintura, têxteis
e artes decorativas do século XIX, o museu pretendia reconstituir o quotidiano
de uma casa burguesa no Porto da época romântica em Oitocentos.
O museu foi
inaugurado em 1972 e tornou-se um dos mais conhecidos e frequentados dos museus
municipais do Porto. Em 2018, reabriu depois de um investimento superior a meio
milhão de euros em obras de requalificação, sob a orientação do arquiteto
Camilo Rebelo e com a colaboração do cenógrafo Tito Celestino. Na inauguração
após as obras, Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto e vereador da Cultura
sublinhava que, mesmo antes das obras, já era “o mais visitado dos nossos
espaços museológicos”, talvez porque, segundo admitia “o ambiente de época, o
nome, os jardins abertos ao público do Palácio de Cristal e da Casa Tait que o
envolvem compõem um discreto charme que convida a entrar” (cit. in “Museu Romântico”,
2018).
No passado
sábado, 28 de agosto, um post na página de Facebook da Feira do Livro do Porto,
anunciando que um “novo núcleo do Museu da cidade” tinha sido inaugurado no
âmbito da Feira, desafiava à sua visita nos seguintes termos:
Se conhecia o
anterior Museu Romântico da Macieirinha, prometemos que este novo espaço nada
tem a ver com o local que outrora visitou. O espaço despiu-se dos adereços [?]
de casa burguesa oitocentista e vestiu-se de contemporaneidade.
Não acredita?
Visite a exposição “Quando a Terra Voltar a Brilhar Verde para Ti”, veja as
relações criadas no seu interior e comprove isso mesmo […].
A informação
gerou quase 700 reações, a maioria de tristeza e raiva, e quase 600
comentários, em regra, também de estupefação e indignação. E resultou na
abertura da Petição Pública “Pela reposição da decoração interior oitocentista
do Museu Romântico da Quinta da Macieirinha no Porto” onde todas estas reações
estão plasmadas:
Uma casa burguesa
musealizada e com abertura ao público que mostrava como se vivia no Porto
romântico oitocentista e que deu agora lugar a mais um espaço de
contemporaneidade desintegrada como tantos outros e completamente dissociado da
vivência original que (também e principalmente) constituía a sua riqueza
patrimonial.
Despida da sua
decoração romântica integradora a que chama a Câmara Municipal do Porto, com
desprezo, de “adereços” como: o mobiliário fixo e móvel, as artes decorativas,
os têxteis, a iluminação e tudo o que mais comporta (que sendo ou não
originais, evocam o seu Tempo), descaracterizando os espaços, as funções e as
vivências que tão bem retratavam.
No texto da
Petição, estão plasmadas as questões que nos assaltam a todos e que têm a ver com
o destino do espólio (onde está e para onde vai?) e com a destruição do
património e descaraterização do espaço.
Em resposta ao
JN, Rui Moreira defende, agora, a nova configuração e afiança que “Nenhum
espólio foi destruído, nenhuma obra desperdiçada”, justificando que “a nossa
visão do Romantismo não é a de uma casa com janelas entaipadas e exposições
apresentadas por trás de baias, para que as pessoas ali imaginem a vida dos
ricos ou dos nobres do século XIX”. Não deixa de ser curioso que o vereador da
cultura da segunda maior cidade do país demonstre uma tal ignorância acerca do
objetivo do museu, o qual não era exatamente mostrar a “vida dos ricos”, e dos
processos museológicos, mas sobretudo esta displicência e desprezo pelo
património que lhe cabe preservar e divulgar.
Por seu turno,
Nuno Faria, designado “diretor-artístico” do Museu da Cidade apresentou a
“Extensão do Romantismo”, nome que passa a designar o espaço do antigo Museu
Romântico, confirmando que o espólio “foi recolhido para ser novamente
apresentado noutros espaços do Museu da Cidade”. E assegurou que a “matriz
romântica – essa – continua viva por toda a casa, com a vantagem de agora não
haver baias a delimitar os espaços que, invariavelmente, remetiam para uma
encenação teatral de um quotidiano burguês que ali não perdurou muito
tempo”. O cargo que ocupa,
“diretor-artístico”, é inédito e parece derivar das artes performativas e não se
percebe o que uma “extensão” ou aquilo de que é extensão. E, ao que parece, o
que era um museu passa a ser um espaço performativo das vaidades políticas e
pseudointelectuais de quem procura parecer moderno, fazendo uso de uns quantos
chavões em moda, como quando refere que “Todas as montagens serão sazonais,
imprimindo dinamismo à sua matriz conceptual”. Ou que o “programa passa por
ligar espaços tão heteróclitos e tão radicalmente diferentes entre si, a
Extensão do Romantismo será um lugar em que se repensa a própria condição do
espírito romântico como sendo trans-histórica, atemporal e, por isso mesmo
também – e muito – contemporânea” (“Nuno Faria…”, 2021). O discurso é vazio,
fátuo e pomposo, a esconder a nulidade dos argumentos.
Há aqui,
obviamente, uma marca da sociedade atual, ou do hipermodernismo defendido por
Lipovetsky, assumindo os efeitos da globalização, das modas, dos media, do
consumismo, dos mercados, e da própria modernidade, e que estão subjacentes ao
desejo de quebrar o passado e romper com as suas evidências e nostalgias – ou
seja, precisamente, ao que simbolizava o Museu Romântico. Segundo Lipovetsky ,
“o que define a hipermodernidade não é exclusivamente a autocrítica dos saberes
e das instituições modernas; é também a memória revisitada, a remobilização das
crenças tradicionais, a hibridização individualista do passado e do presente”
(Lipovetsky, 2004, p. 98). Lipovetsky afirmava ainda que “na hipermodernidade,
a fé no progresso foi substituída não pela desesperança nem pelo niilismo, mas
por uma confiança instável, oscilante, variável em função dos acontecimentos e
das circunstâncias” (id., p. 70). Porém, a hipermodernidade é também a “era do
vazio”, marcada pela fluidez e pela aparência – e isso é precisamente aquilo
que os museus procuram compensar, fornecendo uma âncora que nos fixa a uma
matriz cultural, aquilo que nos permite a confiança na continuidade e na
permanência.
Esta descarada
reconversão do Museu Romântico, engolido por qualquer coisa que, sendo fluída,
ainda não é completamente apreensível, é o mais evidente ato de autofagia que,
a espaços, ameaça o mundo da cultura. Até pode ser desejável encontrar as tais
“montagens sazonais” que se anunciam para este espaço. Apenas não são
desejáveis aqui e à custa do que era um museu com caraterísticas muito
particulares, um discurso bem elaborado e sustentado, e, sobretudo, no qual a
comunidade se revia.
A autofagia é
fruto da ignorância, a qual também justifica o tom sobranceiro e atrevido dos
discursos de quem a promove. Cabe a todos lutar contra ela, sobrepondo-lhes a
vontade de preservar o património e manter a memória do lugar.
Referências:
“Nuno Faria em entrevista: ‘Os museus passam por fases de transformação ao longo do tempo’”. In Porto. Acedido em https://www.porto.pt/pt/noticia/nuno-faria-em-entrevista-os-museus-passam-por-fases-de-transformacao-ao-longo-do-tempo
“Museu Romântico
reabre após investimento superior a meio milhão de euros em obras de
requalificação” In Porto. Acedido em
https://www.porto.pt/pt/noticia/museu-romantico-reabre-apos-investimento-superior-a-meio-milhao-de-euros-em-obras-de-requalificacao
Lipovetsky, G.
(2004). Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla.
Silva, H. T.
(2021, 31 ago.). Petição pede versão antiga do Museu Romântico do Porto. JN. Acedido
em
https://www.jn.pt/artes/peticao-pede-versao-antiga-do-museu-romantico-do-porto-14078506.html
Imagens do
interior do Museu Romântico in: Oliveira, S. S. (2028, 2 mar.). À descoberta do
renovado Museu Romântico do Porto. Visão. Acedido em https://visao.sapo.pt/visaose7e/ver/2018-03-02-a-descoberta-do-renovado-museu-romantico-do-porto-1/#&gid=0&pid=10
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