ANÁLISE
A América de Biden ou a nova realidade estratégica
Acima da amizade estão os interesses. Para a Casa Branca,
a China é a prioridade. Depois do desastre afegão, os americanos restabelecem a
sua “credibilidade”, mesmo à custa da humilhação de um aliado.
Jorge Almeida
Fernandes
25 de Setembro de
2021, 7:00
https://www.publico.pt/2021/09/25/mundo/analise/america-biden-nova-realidade-estrategica-1978707
Muito se falou e
escreveu sobre a viragem dos Estados Unidos para o Indo-Pacífico. Depois de
muita doutrina, ei-la que passa a realidade. A parceria AUKUS (Austrália, Reino
Unido e Estados Unidos) é um revelador do novo contexto estratégico mundial.
Para Washington, a China é a prioridade. E o Indo-Pacífico é o principal teatro
do grande conflito geopolítico do século XXI.
Os EUA não
hesitaram em humilhar a França, o seu mais velho aliado e também a única
potência europeia no Índico e no Pacífico Sul. Nos seus territórios, vivem dois
milhões de franceses e há bases aeronavais, com 7000 militares estacionados.
Curiosamente, foi na Austrália que Macron fez, em 2018, o discurso de
lançamento do “Eixo Indo-Pacífico”, com o Japão e a Austrália, para
contrabalançar a hegemonia chinesa na região.
Os americanos
terão ficado “surpreendidos” com o vigor da reacção francesa. Pela primeira vez
na História da aliança franco-americana, que remonta a 1778, Paris chamou o seu
embaixador para consultas. Em breve voltará. Mas a ferida fica.
A ruptura do
contrato dos submarinos com a Austrália não é o mais grave. A seguir à
humilhação dos europeus na retirada do Afeganistão, a Casa Branca volta a agir
sem avisar os aliados. Uma vez é grave. Duas vezes faz pensar em novas regras
de conduta para com os aliados.
O inquilino da
Casa Branca já não se chama Donald Trump mas Joe Biden. É altura de os europeus
perceberam que, para lá da simpatia ou antipatia dos presidentes em relação à
Europa, se trata de uma questão estrutural. Ao contrário do tempo das duas
guerras mundiais e da Guerra Fria, a Europa já não está no centro do mundo. As
prioridades americanas deixaram de ser a Europa e o Médio Oriente.
Muitos conflitos
houve entre a França e os Estados Unidos. Em 1966, De Gaulle retirou a França
da estrutura militar da NATO (Paris só voltará em 2008) e denunciou a guerra do
Vietname. Antes disso, em 1956, o Presidente Eisenhower forçara, de forma
humilhante, Paris e Londres a retirar os seus pára-quedistas do canal do Suez,
nacionalizado por Nasser. Mensagem: acabou a era do imperialismo europeu. Os
EUA passavam a ser a potência hegemónica na região, em disputa com a União
Soviética. Em 2003, a França opôs-se à invasão do Iraque, o que abriu também
uma crise diplomática.
Mas todos estes
conflitos são de uma natureza diferente daquele que agora se abre. A mudança do
foco estratégico dos Estados Unidos tenderá a desvalorizar a NATO. A Aliança
Atlântica não desaparecerá, continuando a ser indispensável à segurança
europeia e necessária à estratégia global americana. Mas será mais periférica.
É previsível que as novas “alianças” no Indo-Pacífico, a AUKUS e a Quad
(Quadrilateral - EUA, Índia, Japão e Austrália) se tornem crescentemente
relevantes.
A famosa
autonomia estratégica da Europa continuará a ser um quebra-cabeças. Resta à UE
reajustar a sua posição perante a nova realidade estratégica, a começar pela
sua política chinesa.
Depois do
Afeganistão
As negociações
secretas com a Austrália terão demorado seis meses. O timing do anúncio da
parceria AUKUS foi determinado pela pouco honrosa retirada do Afeganistão.
Muito se falou da perda de credibilidade das garantias americanas de segurança.
A situação mudou de um dia para o outro. “As garantias de segurança americanas
ainda são as supremas”, escreveu o jornal Politico. A aprovação dos países mais
importantes da Ásia compensa o sacrifício do aliado francês.
A analista Sophie
Meunier escreveu no Washington Post que, para lá dos submarinos, é previsível
“uma debilitação indirecta da integração europeia, além da frustração das
expectativas sobre a renovada proximidade com os Estados Unidos pós-Trump”.
David Sanger,
correspondente do New York Times na Casa Branca, observa: “No fim de contas, a
decisão de Biden foi o resultado de um cálculo brutal que por vezes as nações
fazem, em que um aliado é considerado mais estrategicamente vital do que outro
– algo que alguns líderes nacionais e diplomatas não gostam de admitir em
público.”
Para os EUA, e
para a Austrália, é vital prevenir uma superioridade militar marítima da China,
frisa uma análise do Center for Strategic and International Studies (CSIS). Mas
o “custo estratégico” foi muito alto. “A Administração Biden não deveria
repetir este padrão, negligenciando aliados europeus de que continuará a
necessitar para negociar com a Rússia e, cada vez mais, com a China.”
O mérito de Xi
Xi Jinping é, de
certa forma, o mentor involuntário da parceria AUKUS. A Austrália tinha boas
relações com Pequim e, inclusive, dependia excessivamente do comércio com a
China. Mostrava-se relutante em alinhar em iniciativas de contenção da China.
Pequim interpretou isto como fraqueza.
Subitamente, tudo
mudou. Quando a Austrália pediu um inquérito internacional sobre a origem da
covid-19, a China respondeu com sanções comerciais e apresentou a Canberra um
documento com 14 exigências de mudanças de política.
Passou a usar uma
linguagem virulenta. E a Austrália mudou o seu olhar sobre a “ameaça chinesa”.
É esta viragem que leva à troca da parceria francesa pela protecção americana.
Nota simbólica: a França tinha proposto a Canberra vender os seus submarinos
movidos a urânio pouco enriquecido. Mas, para os australianos, o nuclear era
tabu. Agora, vão comprar submarinos que utilizam urânio altamente enriquecido.
A parceria AUKUS
é uma iniciativa destinada a desencorajar a disputa hegemonia regional pela
China. Não quer dizer que o consiga. Mas é uma jogada poderosa. Não se trata de
uma “NATO do Oriente”, mas de uma rede de organizações de dissuasão do poderio
chinês. O analista francês Antoine Bondaz resume: “Para a China, o pacto entre
Washington, Canberra e Londres é a realização de um medo antigo: a
multilateralização das alianças americanas na região. Hoje, a Austrália e o
Reino Unido. Amanhã, talvez o Japão.”
O mérito é de Xi
Jinping.
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