domingo, 26 de setembro de 2021

A América de Biden ou a nova realidade estratégica

 


ANÁLISE

A América de Biden ou a nova realidade estratégica

 

Acima da amizade estão os interesses. Para a Casa Branca, a China é a prioridade. Depois do desastre afegão, os americanos restabelecem a sua “credibilidade”, mesmo à custa da humilhação de um aliado.

 


Jorge Almeida Fernandes

25 de Setembro de 2021, 7:00

https://www.publico.pt/2021/09/25/mundo/analise/america-biden-nova-realidade-estrategica-1978707

 

Muito se falou e escreveu sobre a viragem dos Estados Unidos para o Indo-Pacífico. Depois de muita doutrina, ei-la que passa a realidade. A parceria AUKUS (Austrália, Reino Unido e Estados Unidos) é um revelador do novo contexto estratégico mundial. Para Washington, a China é a prioridade. E o Indo-Pacífico é o principal teatro do grande conflito geopolítico do século XXI.

 

Os EUA não hesitaram em humilhar a França, o seu mais velho aliado e também a única potência europeia no Índico e no Pacífico Sul. Nos seus territórios, vivem dois milhões de franceses e há bases aeronavais, com 7000 militares estacionados. Curiosamente, foi na Austrália que Macron fez, em 2018, o discurso de lançamento do “Eixo Indo-Pacífico”, com o Japão e a Austrália, para contrabalançar a hegemonia chinesa na região.

 

Os americanos terão ficado “surpreendidos” com o vigor da reacção francesa. Pela primeira vez na História da aliança franco-americana, que remonta a 1778, Paris chamou o seu embaixador para consultas. Em breve voltará. Mas a ferida fica.

 

A ruptura do contrato dos submarinos com a Austrália não é o mais grave. A seguir à humilhação dos europeus na retirada do Afeganistão, a Casa Branca volta a agir sem avisar os aliados. Uma vez é grave. Duas vezes faz pensar em novas regras de conduta para com os aliados.

 

O inquilino da Casa Branca já não se chama Donald Trump mas Joe Biden. É altura de os europeus perceberam que, para lá da simpatia ou antipatia dos presidentes em relação à Europa, se trata de uma questão estrutural. Ao contrário do tempo das duas guerras mundiais e da Guerra Fria, a Europa já não está no centro do mundo. As prioridades americanas deixaram de ser a Europa e o Médio Oriente.

 

Muitos conflitos houve entre a França e os Estados Unidos. Em 1966, De Gaulle retirou a França da estrutura militar da NATO (Paris só voltará em 2008) e denunciou a guerra do Vietname. Antes disso, em 1956, o Presidente Eisenhower forçara, de forma humilhante, Paris e Londres a retirar os seus pára-quedistas do canal do Suez, nacionalizado por Nasser. Mensagem: acabou a era do imperialismo europeu. Os EUA passavam a ser a potência hegemónica na região, em disputa com a União Soviética. Em 2003, a França opôs-se à invasão do Iraque, o que abriu também uma crise diplomática.

 

Mas todos estes conflitos são de uma natureza diferente daquele que agora se abre. A mudança do foco estratégico dos Estados Unidos tenderá a desvalorizar a NATO. A Aliança Atlântica não desaparecerá, continuando a ser indispensável à segurança europeia e necessária à estratégia global americana. Mas será mais periférica. É previsível que as novas “alianças” no Indo-Pacífico, a AUKUS e a Quad (Quadrilateral - EUA, Índia, Japão e Austrália) se tornem crescentemente relevantes.

 

A famosa autonomia estratégica da Europa continuará a ser um quebra-cabeças. Resta à UE reajustar a sua posição perante a nova realidade estratégica, a começar pela sua política chinesa.

 

Depois do Afeganistão

As negociações secretas com a Austrália terão demorado seis meses. O timing do anúncio da parceria AUKUS foi determinado pela pouco honrosa retirada do Afeganistão. Muito se falou da perda de credibilidade das garantias americanas de segurança. A situação mudou de um dia para o outro. “As garantias de segurança americanas ainda são as supremas”, escreveu o jornal Politico. A aprovação dos países mais importantes da Ásia compensa o sacrifício do aliado francês.

 

A analista Sophie Meunier escreveu no Washington Post que, para lá dos submarinos, é previsível “uma debilitação indirecta da integração europeia, além da frustração das expectativas sobre a renovada proximidade com os Estados Unidos pós-Trump”.

 

David Sanger, correspondente do New York Times na Casa Branca, observa: “No fim de contas, a decisão de Biden foi o resultado de um cálculo brutal que por vezes as nações fazem, em que um aliado é considerado mais estrategicamente vital do que outro – algo que alguns líderes nacionais e diplomatas não gostam de admitir em público.”

 

Para os EUA, e para a Austrália, é vital prevenir uma superioridade militar marítima da China, frisa uma análise do Center for Strategic and International Studies (CSIS). Mas o “custo estratégico” foi muito alto. “A Administração Biden não deveria repetir este padrão, negligenciando aliados europeus de que continuará a necessitar para negociar com a Rússia e, cada vez mais, com a China.”

 

O mérito de Xi

Xi Jinping é, de certa forma, o mentor involuntário da parceria AUKUS. A Austrália tinha boas relações com Pequim e, inclusive, dependia excessivamente do comércio com a China. Mostrava-se relutante em alinhar em iniciativas de contenção da China. Pequim interpretou isto como fraqueza.

 

Subitamente, tudo mudou. Quando a Austrália pediu um inquérito internacional sobre a origem da covid-19, a China respondeu com sanções comerciais e apresentou a Canberra um documento com 14 exigências de mudanças de política.

 

Passou a usar uma linguagem virulenta. E a Austrália mudou o seu olhar sobre a “ameaça chinesa”. É esta viragem que leva à troca da parceria francesa pela protecção americana. Nota simbólica: a França tinha proposto a Canberra vender os seus submarinos movidos a urânio pouco enriquecido. Mas, para os australianos, o nuclear era tabu. Agora, vão comprar submarinos que utilizam urânio altamente enriquecido.

 

A parceria AUKUS é uma iniciativa destinada a desencorajar a disputa hegemonia regional pela China. Não quer dizer que o consiga. Mas é uma jogada poderosa. Não se trata de uma “NATO do Oriente”, mas de uma rede de organizações de dissuasão do poderio chinês. O analista francês Antoine Bondaz resume: “Para a China, o pacto entre Washington, Canberra e Londres é a realização de um medo antigo: a multilateralização das alianças americanas na região. Hoje, a Austrália e o Reino Unido. Amanhã, talvez o Japão.”

 

O mérito é de Xi Jinping.

Sem comentários: