terça-feira, 26 de novembro de 2019

Tribunal aceita providência cautelar contra projecto no antigo Hospital da Marinha



Tribunal aceita providência cautelar contra projecto no antigo Hospital da Marinha

Associação contesta construções novas por considerar que descaracterizam a zona envolvente. Câmara de Lisboa deu relevância à demolição de edifícios degradados para a libertação de um logradouro.

João Pedro Pincha
João Pedro Pincha 26 de Novembro de 2019, 20:26

O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa aceitou a providência cautelar que uma associação interpôs contra o projecto aprovado pela Câmara de Lisboa para o antigo Hospital da Marinha, no Campo de Santa Clara. Os trabalhos terão de ser suspensos.

A recém-criada Associação de Defesa do Património Cultural Edificado de São Vicente (ADPEV) opõe-se à construção de dois edifícios novos ao lado do antigo hospital, argumentando que isso não respeita as normas do Plano Director Municipal (PDM) sobre os imóveis e conjuntos arquitectónicos que constam na Carta Municipal do Património. O Hospital da Marinha integra esta carta.

Para a associação, os princípios do PDM foram postos em causa quando a câmara, por despacho do então vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, aprovou o projecto com construções novas e não apenas com a recuperação do imóvel original. “Nós não temos nada contra a reabilitação do antigo Hospital da Marinha e da antiga escola adjacente, desde que sejam feitos com respeito ao legado patrimonial, exterior e interior. O que contestamos é a construção de prédios novos ao lado”, sublinha Catherine Morisseau, dirigente da ADPEV.

O PDM diz que “as intervenções em conjuntos arquitectónicos da Carta Municipal do Património devem respeitar quer a morfologia e as estruturas urbanas na sua interligação com o território envolvente, quer as características arquitectónicas substanciais dos imóveis que contribuem para a continuidade urbana”. Estabelece também que “deve ser privilegiada a conservação do edificado para a preservação da identidade cultural e histórica da cidade”, que a intervenção “deve respeitar o critério da autenticidade” e que deve ser usada “uma linguagem arquitectónica que promova a harmonização com a envolvente”.

Ao PÚBLICO, fonte oficial da câmara informou que já tinha chegado um e-mail do tribunal a referir a providência cautelar. Já uma fonte da Stone Capital, empresa proprietária do imóvel, adiantou que ainda não tinha recebido notificação. A partir da citação oficial começa a contar um período de dez dias para ambas – autarquia e empresa – apresentarem oposição.

A Stone Capital é dona do antigo Hospital da Marinha desde 2016, ano em que o Estado o pôs à venda, pouco depois de o imóvel deixar de ter função hospitalar. O projecto é do arquitecto Samuel Torres de Carvalho (responsável pelas obras no Palácio de Santa Helena, também da Stone) e contempla usos de hotelaria, comércio e habitação.

A ADPEV argumenta que foram violados os artigos 26º e 27º do PDM, mas, na memória descritiva, o arquitecto recorre ao 28º para justificar a sua legalidade. Nesse artigo lê-se que “em bens imóveis da Carta Municipal do Património são admitidas obras de conservação e, ainda, obras de alteração e de ampliação”, desde que sujeitas a condições. Uma delas é a “reposição das características e coerência arquitectónica ou urbanística do imóvel”.


Ainda que sublinhando que “as alterações preconizadas (…) cumprem todo o elenco” de condições referidas no tal artigo 28º, esta é a que está na origem de o projecto incluir construção nova. Com a “demolição de todos os anexos e acrescentos dissonantes existentes no logradouro”, a edificabilidade a eles associada é transferida para os prédios novos. “A nova construção resulta da substituição dessas construções por outras, com libertação de uma extensa área de jardim 100% permeável”, sublinhara a Stone ao PÚBLICO no ano passado.

Esta interpretação vingou na autarquia. Há pouco mais de um ano, Catherine Morisseau dinamizou uma petição contra o projecto que foi apreciada na assembleia municipal. Chamado a pronunciar-se, o vereador Manuel Salgado defendeu que se tratava de “um bom projecto”, salientou a remoção das construções degradadas e a libertação do logradouro. Disse ainda que os peticionários, moradores da Rua do Paraíso, estavam preocupados sobretudo porque iriam perder a vista desafogada para o rio.

A dirigente da ADPEV diz que a associação, constituída em Maio, tem inúmeras pessoas que não habitam a zona e contra-argumenta que não são as vistas do Tejo que a movimentam. “Nós amamos esta cidade antiga, não podemos deixar que em pouquíssimos anos, e só por causa da ganância de alguns e da negligência de outros, seja destruída para sempre esta beleza”, diz Catherine Morisseau.

O edifício em que funcionou o hospital, aberto em 1806 e encerrado definitivamente em 2015, tem perto de 15 mil metros quadrados e sete pisos. Tem entrada pelo Campo de Santa Clara e uma extensa frente para a Rua do Paraíso, mas só se percebe a sua verdadeira dimensão descendo a Calçada do Cardeal. Nas traseiras do imóvel oitocentista, de onde se vê Santa Apolónia, o Tejo e o Terminal de Cruzeiros, foram construídos vários corpos no século XX que a Stone quer agora demolir.

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