sábado, 2 de novembro de 2019

Quão gago pode ser um deputado? / VIDEO:A primeira intervenção de Joacine Katar Moreira no Parlamento





Quão gago pode ser um deputado?

Joacine não merece que eu tenha pena dela, nem que adopte um registo paternalista para silenciar aquilo que é um manifesto desastre.

João Miguel Tavares
2 de Novembro de 2019, 6:18

A resposta é: pode ser tão gago quanto Joacine Katar Moreira, desde que não seja o único deputado do seu partido. A palavra “parlamento” vem do francês “parler”. Significa falar ou discursar. Não há democracia sem debate, e não é possível debater num Parlamento sem um mínimo de fluência discursiva. Se Joacine pertencesse a um grupo parlamentar haveria sempre outros deputados disponíveis para discursar em plenário, e ela poderia dedicar-se a escrever propostas de lei, definir orientações estratégicas ou preparar os discursos dos outros. Não existindo mais ninguém, as suas intervenções na Assembleia da República são triplamente absurdas: para ela, que deve sofrer horrores com aquela exposição; para os restantes deputados, que nem sabem para onde olhar quando ela fala; e para jornalistas e eleitores, que não percebem nada do que ela diz.

Escrever isto é duro e é cruel. Resolvi fazê-lo por duas razões. Em primeiro lugar, porque se não o fizesse estaria a ser profundamente complacente com uma mulher que, pelo seu percurso de vida, pelas suas capacidades e pelo seu esforço ganhou o direito a ser tratada com a máxima exigência e honestidade intelectual. Joacine não merece que eu tenha pena dela, nem que adopte um registo paternalista para silenciar aquilo que é um manifesto desastre. A deputada do Livre demorou 60 segundos a fazer as saudações iniciais (“senhor presidente, senhor primeiro-ministro, membros do executivo e senhores e senhoras deputadas”) e gastou quatro minutos e meio com uma intervenção de meia-dúzia de frases. Dizer isto é humanamente desagradável; não dizer isto é politicamente inaceitável. Se queremos um país mais exigente e um Parlamento mais qualificado, temos de começar por admitir que os princípios da inclusão e da tolerância não significam que tudo passe a ser magicamente possível, só porque esse é o nosso mais profundo desejo.

Joacine disse uma excelente frase quando foi ao programa de Ricardo Araújo Pereira: “Eu gaguejo quando falo, não quando penso. O perigo na Assembleia é os indivíduos que gaguejam quando pensam.” Mas mesmo para esta formulação ter força retórica, ela precisa de ter um mínimo de fluência quando é proferida – coisa de que Joacine foi capaz na televisão, mas não no Parlamento. Claro que se pode argumentar que ela estava nervosa na estreia, e que em futuras intervenções talvez a sua gaguez diminua para níveis aceitáveis, como já aconteceu noutras ocasiões. Espero sinceramente que isso aconteça, ou que o próprio regimento da Assembleia da República passe a permitir que ela tenha um porta-voz – tudo, menos fingir que o que se passou é razoável, porque isso seria compactuar com uma fraude intelectual autoimposta, e com uma actividade política desprovida de qualquer racionalidade, em nome dos bons sentimentos.

Essa é a segunda razão para este artigo. Joacine Katar Moreira tem sido apresentada como mulher, negra e gaga, como se o seu corpo fosse apenas uma urna de desvantagens sociais e existenciais, no qual fomos convidados a depositar o voto em nome de um Portugal mais justo. Esta redução do deputado a um símbolo crístico limita o eleitorado ao papel de pietà: não há fala nem debate, porque basta o silêncio contemplativo perante uma terrível injustiça. Aquilo que as pessoas defendem e argumentam deixa de importar. As chagas do corpo são o programa político. Este é um tipo de política que mata a boa política, desde sempre feita de debate, confronto, compromisso e negociação.

Jornalista


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