sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Sobre a Lei da Nacionalidade: um esclarecimento e uma posição



OPINIÃO
Sobre a Lei da Nacionalidade: um esclarecimento e uma posição

Deverá o nascimento num determinado país constituir razão suficiente para a atribuição automática da nacionalidade a essa pessoa?

Jorge Mesquita
8 de Novembro de 2019, 15:30

O Bloco de Esquerda e o Livre anunciaram publicamente a sua intenção de alterar a Lei da Nacionalidade. Pretendem que todas as crianças nascidas em Portugal filhas de estrangeiros adquiram automaticamente a nacionalidade portuguesa. A deputada do Livre Joacine Katar Moreira vai ainda mais longe, ao defender “a nacionalidade retroactiva” “a quem nasceu entre 1981, 1996 e 2006” (sic) (ver entrevista ao PÚBLICO).

Como é sabido, historicamente, o direito da nacionalidade dos diferentes países assenta em duas concepções distintas: o jus sanguinis (direito do sangue) e o jus soli (direito do solo), com uma clara prevalência no mundo, em geral, e na Europa, em particular, do direito do sangue. Um e outro não são porém exclusivos: actualmente, as leis da nacionalidade de inúmeros países combinam, de forma variada, elementos de ambas as doutrinas.

Os países, em muito menor número, nos quais prevalece o jus soli situam-se predominantemente nas Américas (do Norte, Centro e Sul), facto que se explica por serem países em que a imigração foi um factor determinante na sua própria criação.

Em Portugal, a Lei da Nacionalidade, cuja versão inicial é de 1981, sempre combinou o jus sanguinis com o jus soli, ao atribuir também, desde então, a nacionalidade portuguesa de origem a todos os nascidos em território português filhos de estrangeiros que aí residissem há pelo menos seis anos, mediante declaração de vontade. Tal disposição foi ainda mais alargada na 5.ª versão da Lei, de 2006, ao estipular que, no momento do nascimento, apenas um dos progenitores estrangeiros residisse legalmente em Portugal há pelo menos cinco anos (cf. art. 1.°, alínea e).

Na sua penúltima versão, de 2015, é uma lei extremamente generosa, não só nos direitos de atribuição da nacionalidade, mas também nos de aquisição e naturalização, quando comparada com as leis de muitos outros países, e provavelmente a mais generosa de todos os países da União Europeia. Quem tiver dúvidas, pode consultá-la, nas suas sucessivas versões, e compará-la, por exemplo, com as disposições do Código Civil francês sobre a nacionalidade. Segundo o Pordata, cujos dados apresentados não são sequer exaustivos, só nos últimos dez anos, e só por via da naturalização, mais de 250.000 estrangeiros adquiriram a nacionalidade portuguesa.

Entretanto, na sua última (e 10.) versão, de 2018, a Lei passou a declarar também portugueses de origem os indivíduos nascidos no território português, filhos de estrangeiros “que não declarem não querer ser portugueses, desde que, no momento do nascimento, um dos progenitores aqui resida legalmente há pelo menos dois anos" (art. 1.°, alínea f).

Estes dois elementos – a passagem de uma declaração de vontade, ou de “querer ser”, para um “ser” automático, salvo declaração em contrário, e a redução do tempo de residência legal dos progenitores de cinco para dois anos – introduziram uma mudança qualitativa na Lei, disrompendo o seu equilíbrio anterior.

A pretensão do Bloco de Esquerda e do Livre de atribuir automaticamente a nacionalidade portuguesa a todos os indivíduos nascidos em Portugal filhos de estrangeiros surge na senda desta última e recentíssima alteração da Lei.

Mas será uma criança nascida em Portugal filha de estrangeiros “estrangeira no seu próprio país”, slogan caro ao Bloco de Esquerda? Por outras palavras, deverá o nascimento num determinado país constituir razão suficiente para a atribuição automática da nacionalidade a essa pessoa?

Talvez os dois exemplos seguintes nos ajudem a melhor cernir a questão.

Imaginemos uma criança nascida na Tailândia, de pais portugueses, que aí tenha vivido seis anos, no termo dos quais os pais tenham regressado com ela a Portugal. Tendo nascido nesse país, tendo aí vivido seis anos, poucos terão dúvidas de que é portuguesa: pela sua ascendência, pela sua cultura, e pela sua vida subsequente passada em Portugal. Para ela, ter-se-ia talvez tornado também tailandesa se tivesse permanecido na Tailândia, mas os seis anos aí vividos não fizeram dela tailandesa.

Imaginemos outra criança, nascida na Bélgica, de pais portugueses, já maior, que, tendo podido legitimamente declarar a sua vontade de ser também belga na maioridade, não o fez: tendo nascido na Bélgica, continua a ser portuguesa.

O mesmo não valerá para uma criança nascida em Portugal filha de estrangeiros?

Num mundo em que a mobilidade das pessoas é cada vez maior, pode acontecer, com cada vez maior probabilidade, que o local de nascimento seja um mero acidente na vida dos filhos. Além disso, a migração circular (do país de origem para o país ou os países de imigração, com regresso ao país de origem) terá nele um peso cada vez maior.

É também conhecido que a aplicação mecânica do direito do solo por um país dá muitas vezes azo a um “turismo natal” oportunista, praticado com o único intuito de que o filho nascido nesse país adquira automaticamente a sua nacionalidade. Trata-se de um fenómeno muito frequente nos EUA, um dos países que aplicam o jus soli e cuja nacionalidade é das mais apetecidas.

Bem mais importante ainda, qualquer migrante leva consigo usos e costumes, convicções, uma língua, valores, que são o património imediato dos filhos. Só o tempo, a escolarização, a socialização e, por essa via, a assimilação dos valores culturais do país de acolhimento os tornam também, assim o querendo, seus nacionais.

Quem se der ao cuidado de comparar, nos diversos ordenamentos jurídicos europeus, as regras de atribuição da nacionalidade a crianças nascidas num dado país filhas de estrangeiros observará a presença repetida desta dupla exigência: de uma residência continuada e uma escolarização nesse país e de uma declaração de vontade.

É com estas regras, que conjugam sabedoria, generosidade e prudência, e que subscrevo, que o Bloco de Esquerda e o Livre pretendem agora romper.

Pelos argumentos acima expostos, a sua intenção é insensata e errada. A ser aprovada no Parlamento, tanto quanto pude apurar, não terá paralelo em mais nenhum país europeu. E contribuirá ainda mais para a percepção crescente, em países de imigração, da nacionalidade portuguesa como uma “nacionalidade de conveniência”, fácil de obter e de usar. Se a votar, o Partido Socialista assumirá uma pesada responsabilidade e deverá explicações aos portugueses.

Por tudo o que antecede, afirmo a minha discordância e oposição à alteração da Lei da Nacionalidade preconizada pelo Bloco de Esquerda e pelo Livre.

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