terça-feira, 5 de novembro de 2019

André Ventura desafia Parlamento a criar comissão para debater redução de deputados / Quem tem medo de André Ventura?



ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA
André Ventura desafia Parlamento a criar comissão para debater redução de deputados

Deputado do Chega entrega projecto de resolução propondo que o Governo abra o debate - mas o tema é de reserva legislativa do Parlamento. Ventura quer um “sistema político mais barato, reduzido e eficiente”.

Maria Lopes
Maria Lopes 5 de Novembro de 2019, 6:31

O deputado André Ventura quer que a Assembleia da República constitua uma “comissão de estudo sobre a melhor forma de articular a redução do número de deputados com a legislação eleitoral portuguesa”. Essa proposta é feita num projecto de resolução que o deputado único do Chega entregou no Parlamento nesta segunda-feira ao fim da tarde.

O repto é claro: no texto, André Ventura propõe que o Parlamento “se digne a aceitar o desafio de abrir a discussão da redução do número de deputados”, mas sem fixar qualquer limite, apesar de sempre ter defendido que o hemiciclo deveria passar dos actuais 230 eleitos para o patamar mínimo de 180 admitido pela Constituição.


O deputado critica a actual forma de funcionar do Parlamento “como um qualquer reduto, quase sempre amorfo e viciado”, uma instituição que “mais parece interessada em afunilar-se numa pequena franja ou elite social”, levando ao “afastamento dos cidadãos”. Um dos sinais evidentes é a crescente abstenção. “Não são necessários 230 deputados num país com a dimensão e as clivagens político-ideológicas existentes em Portugal”, lê-se no diploma.

Com este projecto de resolução, André Ventura tenciona dar início a um processo de concretização de uma das suas bandeiras eleitorais e parece preparado para que ele seja longo. É que, apesar de a revisão das leis eleitorais e da orgânica do Parlamento ser de reserva absoluta da Assembleia da República, o deputado titula o texto como uma recomendação ao Governo.

Questionado pelo PÚBLICO sobre esta dualidade de competências, André Ventura justificou que a interpretação do Chega é a de que “o Governo deve iniciar os passos para um grupo de trabalho referente à redução do número de deputados. Mesmo tendo em conta a reserva da legislação eleitoral e mesmo da orgânica da AR, parece-nos ser ao Governo que cabe iniciar um grupo de trabalho que faça um levantamento de vários cenários (por exemplo Direito comparado) e compatibilização entre essa redução e o número de deputados.” O que poderia até incluir uma revisão do actual método de Hondt. Depois desse trabalho do Governo, acrescenta André Ventura, os partidos poderiam avançar para projectos de lei devidamente sustentados.

Se esta proposta ficar pelo caminho, o deputado já tem o plano traçado: apresenta o seu projecto de lei para a redução de deputados e será constituído um grupo de trabalho dentro do partido.

“Um Portugal melhor e mais capacitado para enfrentar o caleidoscópio de exigências que são os tempos modernos será forçosamente um Portugal em que o seu Parlamento é composto por menos deputados e por um sistema político mais barato, reduzido e eficiente”, defende o deputado. “A máquina do Estado, em toda a sua totalidade, é hoje uma afronta a todo o povo português.” E acrescenta que a Assembleia da República “não consegue ser representante fiel dos desejos do povo” que a elegeu, apontando ainda a sua “paupérrima capacidade de intervenção política real”.

“Os portugueses não compreenderão que não sejamos capazes de implementar no Parlamento os mesmos sacrifícios que exigimos às empresas e às famílias: menos gastos, menos excessos e maior eficiência”, insiste o deputado que usa no projecto de resolução muita da argumentação anti-sistema que se lhe ouviu nos últimos meses - e que facilmente colocará em causa o apoio de outros partidos.



OPINIÃO
Quem tem medo de André Ventura?

Ventura não é causa de nada – ele é consequência de um sistema político em desagregação. Querem combatê-lo? Tirem a mola do nariz e lutem por melhores políticas e por melhores políticos.

João Miguel Tavares
12 de Outubro de 2019, 6:17

Lição número um, que já deveria ter sido aprendida com Marine Le Pen, Donald Trump ou Jair Bolsonaro: de nada vale enfrentar líderes de extrema-direita com uma mola no nariz e gritinhos de “ai que nojo!”. Esse é meio caminho para a desgraça. O mundo da política não é uma vernissage. Quando entra um senhor com maus modos e ideias perigosas na Assembleia da República, é inútil passar o tempo todo a deitar culpas a quem o deixou entrar, seja o povo que o elegeu, seja a comunicação social que o promoveu, sejam os céus que não o fulminaram com um raio mortífero. O que há a fazer é isto: combater os seus maus modos com inteligência, com verve, com sarcasmo e com energia; enfrentar as suas péssimas ideias com ideias melhores; e, sobretudo, manter alguma fé na democracia liberal. A democracia liberal é o melhor modelo político que o Homem até hoje inventou para gerir em paz e com prosperidade a nossa vida social, mas para se manter é preciso uma coisinha muito importante: as pessoas têm de acreditar nele.

Rui Tavares escreveu no PÚBLICO um artigo intitulado “Acabou-se a sorte” sobre a ascensão de André Ventura, e disparou para todo o lado: 1) culpou Passos Coelho por o ter convidado para candidato do PSD à câmara de Loures; 2) culpou “o canal televisivo que lhe deu guarida” pela “ascensão do comentador-desportivo-tornado-político”; 3) culpou a falta de investigação jornalística pela incapacidade em explicar onde é que Ventura foi buscar tanto dinheiro para pagar a campanha. Acerca de todos estes pontos Rui Tavares tem alguma razão, mas a sua razão explica pouca coisa. Pior do que isso: este é o tipo de artigo que alimenta uma postura Calimero, que até pode dar jeito a um Livre cheiinho de vontade de se posicionar como a força anti-Chega por excelência, mas não serve para enfrentar com eficácia figuras como Ventura.

Vamos por pontos.

1) Sim, Passos errou tremendamente ao convidá-lo, e errou ainda mais ao não lhe retirar o apoio quando Ventura entrou em modo anti-cigano. Mas o equívoco é fácil de explicar. Passos Coelho não percebeu quem Ventura era porque Ventura não era nada. André Ventura foi, e é, em primeiro e último lugar, um tipo ambicioso e calculista, que se posicionou no sítio em que percebeu que ia ter votos. Ponto final. Ele não é de extrema-direita por convicção. É de extrema-direita por oportunismo. O que só o torna mais perigoso.

2) Já se percebeu que Ventura vai estar na política como está no comentário desportivo: sempre que pode, irrompe e interrompe, potencia o fanatismo e repete argumentos até à exaustão do adversário. É a técnica Pedro Guerra. Mas o mundo do futebol que lhe dá palco é também o mundo que o fragiliza. Em primeiro lugar, não me parece grande ideia um candidato com ambições políticas ter o carimbo de fanático do Benfica, por maior que o Benfica seja. Em segundo lugar, as suas ligações ao futebol e a Luís Filipe Vieira estão em absoluta contradição com aquilo que vai defender no Parlamento. Afinal, como é que se explica que o campeão da ética e do discurso anti-corrupção continue travestido de cartilheiro de Vieira na CMTV?


3) A questão do financiamento partidário do Chega é muito pertinente e devia, de facto, ser investigada. Só que não é só do Chega. É de quase todos os partidos. E este é o ponto. Ventura não é causa de nada – ele é consequência de um sistema político em desagregação. Querem combatê-lo? Tirem a mola do nariz e lutem por melhores políticas e por melhores políticos


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