domingo, 1 de março de 2015

Cem dias sem (estado de) graça / Os problemas de Costa não estão nos seus primeiros 100 dias. Estão nos próximos 200 / José Manuel Fernandes

Costa tem, como diz o povo, "feito de mula", evitando falar e comprometer-se.

Cem dias sem (estado de) graça
01 Março
Liliana Valente / OBSERVADOR

 Dentro e fora da direção do PS, António Costa ouve reparos e críticas. Todos querem mais ação do líder e mais propostas. Já há quem fale em desilusão e problemas de comunicação.
O problema das vitórias gordas são as expetativas. Ou melhor: as altas expetativas. A fasquia estava algures além dos 40%, o valor a que Seguro não chegou nas eleições europeias e que levou Costa a desafiar a liderança socialista. E nestes 100 dias, o novo secretário-geral do PS viu que o caminho da maioria absoluta também tem espinhos: o PS não descola nas sondagens, vê PSD e CDS a ganharem terreno e o desconforto faz-se sentir nas hostes socialistas. Alguns já ensaiam o argumento de que a comunicação não está a funcionar, outros dizem que a detenção de José Sócrates foi o empecilho que está a ser difícil para Costa de se desenvencilhar. Mas o maior problema desta nova direção do PS é o desânimo de alguns – há quem fale em desilusão -, que querem mais ação e mais atrevimento. Os críticos e os que que lhe são próximos são unânimes numa ideia: tem de haver mais PS (e Costa) na praça pública, com propostas e declarações.

As palavras saem dos críticos, mas também de socialistas apoiantes de António Costa. A ausência de António Costa na Assembleia da República faz com que muitas vezes o líder socialista não tenha espaço de antena. Mas para muitos nem é o facto de não haver espaço na praça pública, mas das poucas ideias claras para o preencher. Costa está a “navegar ao sabor do vento”, está numa de “fazer-se de morto” ou “a não arriscar” para não vir a ser confrontado com ideias que não poderá concretizar no futuro. Dos vários socialistas com quem o Observador falou nos últimos dias, todos querem mais, admitindo que a força destes três meses tem sido muito menor do que o impulso que esperavam. O entusiasmo inicial está a dar lugar a desalento ou desânimo.

"Não vamos estar a desfilar propostas. É o tempo de julgar o que já foi feito"
Sérgio Sousa Pinto

Apesar deste sentimento, quando a questão é a de falar sobre o assunto, as críticas são contidas. Os mais próximos de Costa falam na necessidade de propostas mas com conta, peso e medida, para que as ideias não sejam escrutinadas antes de tempo.

Numa das últimas reuniões da bancada parlamentar, houve quem abordasse o assunto. Se em janeiro houve quem levasse assuntos concretos, como escreveu o Observador, as últimas reuniões têm sido menos participadas e com menos chamadas de atenção. Ainda não há confrontação direta e as críticas quer a Ferro Rodrigues, na liderança dos deputados, quer a Costa, são feitas com pinças. Depois de uma dessas reuniões parlamentares, questionado pelo Observador sobre a estratégia seguida pelo partido, Sérgio Sousa Pinto, secretário-nacional do PS, defendia que o tempo era outro, o de fazer oposição ao atual Governo, mais do que apresentar propostas, até porque a apresentação do programa foi empurrada para o final de junho. “Não vamos estar a desfilar propostas. É o tempo de julgar o que já foi feito”, diz Sousa Pinto.

Em entrevista ao Observador, Pedro Bacelar Vasconcelos, um dos nomes que Costa chamou para a nova direção, tem uma opinião ligeiramente diferente. Não concorda com a visão de falta de ideias: “Não me apercebo de um vazio de opiniões que possa corresponder a uma forma malandra de manter o silêncio para não se comprometer”.

“Não me apercebo de um vazio de opiniões que possa corresponder a uma forma malandra de manter o silêncio para não se comprometer”

O mesmo acredita Ferro Rodrigues. O líder da bancada parlamentar, defende em conversa com o Observador que têm sido apresentadas ideias, mas que Costa não quer prometer o que pode não vir a conseguir cumprir. Ou seja, para Ferro, o silêncio não significa que Costa não tem ideias, mas que é preferível ter cuidado. “Faz mais sentido não avançar com propostas ou proclamações que depois não são possíveis de levar à prática depois das eleições. Há uma grande preocupação dele [Costa] em relação a isso e acho que tem demonstrado ter toda a razão”, acrescenta.

Mas os seguristas não escondem que Costa não é assim tão diferente do que era a liderança de António José Seguro. Álvaro Beleza, um dos mais próximos de Seguro diz que Costa “tem sido moderado, cauteloso e prudente, porventura às vezes até em excesso”, mas também concorda que “é melhor não prometer, do que prometer o que não se pode cumprir”, assim como fazia Seguro, acrescenta e que nem sempre era compreendida por todos.

Mesmo não tendo apresentado muitas propostas, há outro problema que os socialistas já começam a falar: o que “é dito”, para os socialistas, não passa. O exemplo que apontam é sobretudo um. No início do mês de março, o PS apresentou no mesmo dia um pacote de seis propostas na Assembleia da República na área da economia – ver aqui e aqui - e a cobertura da comunicação social desagradou aos socialistas. Ferro Rodrigues referiu-o numa reunião da bancada parlamentar que aconteceu um dia depois. O líder parlamentar falou da dificuldade de passar a mensagem, uma queixa antiga e roubada à anterior liderança socialista de António José Seguro. Ao Observador, admitiu essa “fatalidade” e deixou a receita: “É preciso repetir a mensagem nem que seja preciso repeti-la 500 vezes”.

"Os resultados [das sondagens] não são os que desejamos, mas há um trabalho de preparação do programa eleitoral que está a ser feito e que vai permitir ao PS afinar a sua alternativa e preparar as pessoas para ela"
Pedro Nuno Santos

A relação com a comunicação social tem sido aliás o calcanhar de Aquiles para António Costa nestes 100 dias de liderança. Muitas vezes em que aparece em público opta por não falar aos jornalistas, além de que durante boa parte inicial do mandato, tinha uma agenda pública mais reduzida. E das últimas vez que o fez, não correu bem.

A última semana foi talvez a semana mais negra para o secretário-geral do PS. Fez um discurso sobre o Estado do país para uma plateia de investidores chineses, dizendo que Portugal estava “diferente” de há quatro anos, mas dando a entender que era no bom sentido. E PSD e CDS cavalgaram a onda. A trica política poderia ter ficado por aqui, não fosse um fundador do partido, Alfredo Barroso, ter batido com a porta depois de mais esta gota de água, que lhe fez transbordar o copo da insatisfação que vinha a encher há meses. Terceiro problema: Costa, ao tentar apagar o fogo, deu-lhe mais importância, desdobrando-se em esclarecimentos, comunicados e até uma sms aos militantes. Lei de Murphy: Se há qualquer coisa que possa correr mal, vai correr mal. Correu.

Do lado do Rato, a justificação é a de que cavalo que vai à frente é o mais mal amado e, como consequência, aquele a que todos apontam baterias, da oposição à comunicação social: “O PS e António Costa, por serem aqueles que aparecem à frente nas sondagens e com possibilidade de formar Governo, são muito criticados. Isso é óbvio que é o que vai acontecer daqui até às eleições, temos de achar isso uma coisa perfeitamente normal”, diz Ferro Rodrigues.

“O PS e António Costa, por serem aqueles que aparecem à frente nas sondagens e com possibilidade de formar Governo, são muito criticados. Isso é óbvio que é o que vai acontecer daqui até às eleições, temos de achar isso uma coisa perfeitamente normal”

Para fechar a semana com o nó na garganta a apertar, chegou mais uma má notícia. A sondagem do Expresso trazia o maior amargo de boca. PSD e CDS coligados estão em empate técnico com o PS. Se as anteriores sondagens já tinham feito aquecer o Largo do Rato, esta última faz soar todas as campainhas de alarme. É que se há coisa que une os socialistas é a vontade de maioria absoluta e uma não coligação alargada formando um novo bloco central e com os resultados nas sondagens a mostrarem PS e coligação PSD/CDS em empate técnico, muitos temem que essa possa vir a ser uma possibilidade. Álvaro Beleza pede um “não” claro a coligações à direita e o mesmo diz o dirigente Bacelar Vasconcelos: “Com este PSD e com este CDS – e perante as políticas que têm levado a cabo, e que vão continuar a levar até ao final do mandato -, não há terreno possível para um acordo”.

Há uma nuance: “Este” não pode não ser “o” PSD do futuro. E se for diferente? A resposta já não é tão taxativa de todos. Bacelar Vasconcelos até diz que há várias formas de governação – o mesmo que Costa põe na moção ao congresso – e que há no PSD e no CDS pessoas “com as quais é possível dialogar”. Certo é que se as urnas ditarem uma vitória à justa, repetindo o cenário do governo de Guterres, há várias variáveis que vão dividir os socialistas, mesmo os próximos de Costa: a decisão do Presidente de não dar posse a um governo minoritário sem qualquer tipo de acordo (Cavaco já deixou claro que o próximo Governo pode não ser de maioria absoluta, mas te de dar garantias de estabilidade, o que pode ser conseguido com acordos na Assembleia da República, por exemplo); ou a decisão de Passos, mesmo perdendo, não abandonar o PSD. “O” PSD continuaria a ser assim “este” PSD e não mudando de líder, dificulta ainda mais a tarefa a entendimentos futuros. Até porque nos corredores socialistas corre a ideia que se fosse Rui Rio o líder social-democrata poderia haver uma possibilidade de entendimento.

Comunicar é repetir

Certo é que os socialistas não contavam estar a fazer contas à justa por esta altura. Quando Costa foi eleito, acreditavam que este daria um salto nas sondagens. Mas se lá dentro começa a sentir-se um clima de preocupação e tensão, a ideia para fora é a de que cada coisa tem o seu tempo e que há tempo para acertar ponteiros na mensagem a transmitir aos portugueses.

“Não há problema de comunicação. A mensagem vai-se afinando”, diz Sérgio Sousa Pinto.
A apresentação do programa de António Costa, que esteve prevista para a primavera, deverá chegar já com o sol primaveril a cheirar a estio (dia 20 de junho), mais um adiamento que aumenta o tempo em que o PS estará a navegar à bolina, sem fio condutor a que se agarrar. “Os resultados [das sondagens] não são os que desejamos, mas há um trabalho de preparação do programa eleitoral que está a ser feito e que vai permitir ao PS afinar a sua alternativa e preparar as pessoas para ela”, diz Pedro Nuno Santos.

Além disso, António Costa, ao contrário de Seguro que tinha secretários nacionais a reagir a tudo o que era dito e feito pelo Governo, a partir do Rato ou na Assembleia da República, optou por um modelo diferente: os porta-vozes do partido estão no Parlamento… Onde Costa não está. Da direção socialista, poucos têm sido os nomes a falar em nome do PS. João Galamba e Sérgio Sousa Pinto são os mais ativos em declarações e Porfírio Silva, que tem nas mãos a relação com a comunicação social, prefere ficar atrás das câmaras.

Na reta final dos trabalhos parlamentares, a estratégia do grupo parlamentar será a de apresentar algumas propostas que marquem até ao verão, mas que não tenham impacto orçamental significativo e confrontar o governo em debates de urgência.

Um impasse chamado Syriza

A Grécia foi talvez o maior teste de fogo deste início de mandato de Costa e aquele que vai trazer incerteza aos próximos meses. Além disso, obrigou os socialistas a definirem uma posição mais rápido do que esperavam o que acabou por fazer aparecer posições diferentes mesmo dentro da própria equipa de Costa, que se dividiu entre os mais conservadores em relação à vitória do Syriza e aqueles que ficaram mais entusiasmados com a possibilidade de haver um novo rumo na Europa.
Costa ouve um lado (os mais velhos) e outro (os mais novos) e numa primeira reação até se mostrou satisfeito por Alexis Tsipras. Quem falou em nome do partido em relação à Grécia foi sempre João Galamba, secretário-nacional, mais entusiasta que a maioria dos colegas de direção. Sérgio Sousa Pinto acompanhou-o na leitura. Ao Observador, prefere criticar a posição do Governo dizendo que “é um bocado deprimente fazer o jogo dos países com interesses diferentes dos nossos”. E Bacelar Vasconcelos diz que Portugal “tem uma dívida para com a Grécia, pela sua ousadia”.

Mas se com Sócrates o mundo mudou em 15 dias, na Grécia tem mudado todos os dias. E depois do entusiasmo inicial, houve um refrear das palavras e da colagem ao próprio Syriza. Ao ponto de o próprio Ferro Rodrigues, em conversa com o Observador, notar que o partido da esquerda radical grega fez cedências nas negociações tendo agora “uma posição mais suave do que antes das eleições”.

"O PS tem uma situação bastante infeliz com o facto de o antigo primeiro-ministro estar em prisão preventiva, uma situação que causa evidentemente grandes dificuldades"
Ferro Rodrigues

Balança pesada no negativo

Foram cem dias com muitos percalços. Muitos deles com estrondo. Até porque 100 dias de Costa são também 100 dias de José Sócrates detido. Foi uma coincidência que assombrou a início de mandato do novo líder socialista. Começou o mandato a descolar-se do antigo primeiro-ministro, dividindo entre aquilo que era o homem e o Governo. Mas a separação entre a amizade e a política, apesar de bem gerida – dizem os vários socialistas ouvidos pelo Observador – deixa marcas no povo… e nas intenções de voto. Chamar-lhe “incómodo” é pouco. Ferro Rodrigues prefere chamar-lhe uma “infelicidade” que causou dificuldades: “O PS tem uma situação bastante infeliz com o facto de o antigo primeiro-ministro estar em prisão preventiva, uma situação que causa evidentemente grandes dificuldades”, diz.

Além disso, há um duplo escrutínio a António Costa: apesar de todos dizerem que Costa está a conseguir conciliar o trabalho na Câmara de Lisboa e a liderança no PS, a atuação na autarquia é agora passada a pente fino, o que já lhe trouxe vários dissabores, desde as inundações, aos buracos nas ruas, às “taxas e taxinhas” do turismo a terminar já este mês com a isenção ao Benfica.


Depois de 100 dias conturbados, faltam pouco mais de sete meses para as eleições legislativas. O próximo momento para os socialistas serão as jornadas parlamentares a 13 e 14 de março. E ficam várias perguntas sem resposta: com estes resultados, vai Costa ficar até ao fim na câmara? Vai mudar a estratégia? Vai antecipar a apresentação de propostas? Depois, disso em abril, será a discussão do Documento de Estratégia Orçamental, um momento de clarificação do que serão as diferenças de fundo (se as haverá) entre o Governo e o maior partido da oposição.

Os problemas de Costa não estão nos seus primeiros 100 dias. Estão nos próximos 200
José Manuel Fernandes  1/3/2015, OBSERVADOR

Costa tem, como diz o povo, "feito de mula", evitando falar e comprometer-se. É compreensível. Não sabe o que a Europa lhe vai permitir prometer, nem sabe que sarilhos ainda criarão os mitos do Syriza


Vai pelas hostes socialistas algum alvoroço sobre “problemas de comunicação”, “tiros no pé”, “falta de propostas”, “desilusão”. Ao cabo dos seus primeiros 100 dias, António Costa não transformou o partido aos olhos dos portugueses, como mostram as sondagens, e ele próprio esteve muito longe de se transfigurar no “salvador” que tantas expectativas criou ao ser eleito já lá vão cinco meses.

Porém, se olharmos com alguma frieza para o que podia António Costa ter feito para hoje a situação ser radicalmente diferente, chegamos a uma conclusão simples: é muito mais difícil ser líder do PS do que parece, porque é muito difícil ser líder de qualquer partido socialista na Europa de 2015. António José Seguro tinha alguma razão quando insistia, à beira do desespero, que o sofrível resultado eleitoral do PS nas Europeias do Verão passado era, mesmo assim, o segundo melhor resultado de um partido socialista nessas eleições, só superado pelo dos camaradas italianos, esses beneficiando nessa altura de ventos especialmente favoráveis.

Costa, que anda nisto há muitos e muitos anos, tem consciência desta situação. E é por isso que vai fazendo de mula, evitando falar e comprometer-se, pois sabe que quem anda à chuva molha-se. E para aqueles lados está a chover imenso.

1. Onde está o PS? No centro-esquerda ou cada vez mais próximo da esquerda radical?

O primeiro problema de Costa é saber onde situar o seu PS: no centro-esquerda, onde sempre esteve e onde obteve os seus melhores resultados eleitorais, ou mais à esquerda, para cobrir um flanco que, como se vê por essa Europa fora, mas é sobretudo evidente em Espanha e na Grécia, pode estar vulnerável?

Costa, como político pragmático, tem por certo consciência que o PS português só não se encontra numa situação parecida às do PASOK ou do PSOE porque teve a sorte de não ter de ser ele a aplicar o memorando da troika (agora chamada “as instituições”). É certo que o assinou e até foi o principal responsável, de longe, pelos seus termos e pelas suas metas, mas beneficiou do conforto de a partir daí estar na oposição e ser apenas treinador de bancada. Mais: mesmo que a “troika” não tivesse chegado na altura em que chegou, por via de um PEC IV, ou PEC V, ou PEC VI, o PS teria tido de apertar a tarracha como o fizeram os socialistas espanhóis, mesmo sem a presença dos inspectores das “instituições”. Ou seja, teria tido um desgaste que não teve.

Quem quer tenha este realismo sabe, tem de saber, que não pode fazer grandes promessas. Não se trata de não ter ainda elementos ou estudos para poder concretizar essas promessas, é pura e simplesmente não as poder fazer. Pela razão simples de que o nosso futuro, tal como o dinheiro de que vamos dispor, deixou de estar nas nossas mãos ou de depender da nossa vontade. Foi isso mesmo que o próprio António Costa reconheceu esta semana no Lisbon Summit promovido pela Economist: “Numa União a 28 não é possível prometer um resultado que depende de negociações com várias instituições, múltiplos governos, de orientações diversas. Como se tem visto nas últimas semanas, é um erro definir uma estratégia nacional que ignore a incerteza negocial e se bloqueie numa e única solução.”

2. Uma dor de cabeça chamada Syriza. Ou Podemos.

Penso que Costa não podia ser mais claro: o futuro não está nas suas mãos, não se espere muito do seu programa de governo, contentem-se lá com “uma visão para uma década” e não peçam muito mais.

É possível que, aqui há uns meses, ele ainda julgasse que podia um dia ser concreto, é possível que ao adiar a apresentação do programa para Junho ainda pensasse poder contar com uma definição mais a seu gosto das políticas europeias. Mas com o Syriza o céu caiu-lhe, literalmente, em cima da cabeça. A emergência foi tal que foi a correr dar uma entrevista ao Público quase só sobre a crise grega, porventura para deitar alguma água fria em algumas moleirinhas esquentadas da sua própria direcção política.

As primeiras quatro semanas de Syriza foram suficientes para que caíssem por terra alguns dos argumentos mais vezes repetidos pelo PS, em especial pelo PS de Costa. O primeiro desses argumentos é que tudo seria diferente se, em Portugal, estivesse um governo que levantasse a voz à Europa. O Syriza experimentou esse caminho e acabou por capitular, tendo tido apenas ganhos de causa semânticos. O segundo é que haveria espaço para uma grande renegociação das dívidas, talvez mesmo uma conferência europeia, mas tal ideia morreu quando o presidente do Eurogrupo, por sinal um socialista, disse em Atenas que essa conferência até já existe e chama-se… Eurogrupo.

Mas as dores de cabeça criadas pelo desenvolvimento da crise grega não se ficaram por aqui. Estão já marcados dois novos embates entre o Eurogrupo e a Grécia, ambos de desfecho altamente incerto, um para os finais de Abril, outro, porventura o decisivo, para finais de Junho. Como o que o PS pode ou não escrever no seu programa eleitoral depende muito de como acabarem essas duas rondas negociais com Atenas, a tinta ameaça secar nas canetas socialistas ainda antes de estas terem chegado a alinhar algumas ideias mais concretas no papel.

3. A esquerda socialista europeia está sem programa

Estes dilemas socialistas têm um pano de fundo: a esquerda socialista está sem programa e sem foco em toda a Europa. A seguir à queda do Muro de Berlim os socialistas ainda tentaram uma “terceira via”, um socialismo com ingredientes daquilo a que acintosamente chamam neoliberalismo, e políticos como Guterres, Blair e Schroeder até conseguiram alguns sucessos eleitorais seguindo essa via, mesmo quando muitos grunhiam nas bases dos seus partidos. Não nos esqueçamos, por exemplo, que o primeiro-ministro que mais privatizou em Portugal foi Guterres e que o político que mais mudou as leis laborais na Alemanha foi Schroeder. Mas, para sua desgraça, esse equilibrismo só foi possível enquanto houve dinheiro e, sobretudo, enquanto se viveu na ilusão de que estávamos num tempo em que o capitalismo superara as suas crises cíclicas e se podia beneficiar da bonança de longos períodos de crescimento económico.

O dilema actual da generalidade dos partidos socialistas dos países desenvolvidos da Europa Ocidental é que, cada um à sua maneira, estão a ser vítimas do seu próprio sucesso, isto é, da concretização do modelo de sociedade que sempre defenderam: economia de mercado com Estado Social. E estão a lidar mal com os dilemas que as necessidades de reforma desse mesmo Estado Social coloca. Enquanto foi possível ir aumentando os impostos, foi possível pagar as promessas que se iam fazendo, mas isso começou a acabar ainda na década de 1970 nos países nórdicos e em Inglaterra. Mais tarde acreditou-se que o dinheiro barato poderia substituir os impostos que faltavam, e muitos começaram a endividar-se, mas tal levou depressa a descalabros como o grego e o português.

Agora a única esperança de muitos socialistas, sobretudo nos países do sul da Europa, é que sejam outros – os países do Norte – a pagar as suas despesas, em nome da “solidariedade”. É isso que está por detrás de muitas propostas que o PS tem acarinhado, da mutualização da dívida à possibilidade, por exemplo, de políticas sociais europeias. Acontece que os eleitorados a quem se pede essas transferências sabem que também eles precisam do seu dinheiro para pagar um Estado Social que, mesmo sem lhe acrescentar novas valências, todos os anos consome mais dinheiro e mais dinheiro. E servem de muito pouco os choradinhos, sobretudo quando, como sucede com os gregos, as transferências de fundos da União para Atenas são superiores a tudo o que, neste momento, Atenas paga de juros da sua gigantesca dívida.

É por isto que o PS e António Costa não têm conseguido sair de generalidades sobre a aposta na educação, na inovação ou no aumento da competitividade: é que não sabem como poderão pagar as suas promessas porque já nem sabem como conseguirão pagar uma Segurança Social que todos os anos exige mais recursos ou uma Saúde cada vez mais cara porque há novos medicamentos, novos tratamentos e mais exigência ao mesmo tempo que temos uma população cada vez mais envelhecida.

Durante muitas décadas os socialistas europeus estiveram protegidos de grandes dissidências à esquerda pela presença de partidos comunistas cuja ligação à URSS limitava as possibilidades do seu crescimento eleitoral. Mas agora, quando surgem os Syrizas e os Podemos a fazerem o tipo de discurso que uma boa parte da base eleitoral dos socialistas sempre gostou de ouvir, todos os Costas desta velha Europa se sentem acossados.

4. A sombra do preso nº 44

No caso do nosso Costa, como se todas estes problemas não fossem suficientes num tempo em que os eleitorados se tornaram mais exigentes, e pedem aos candidatos para fazerem contas, ainda tem de viver com mais duas sombras que são também duas imprevisibilidades.

A primeira é a tímida recuperação económico que estamos a viver prosseguir, tornando menos pesada a carga que o governo carrega aos ombros. E mais fácil o seu discurso.

A segunda é a de Sócrates, uma sombra que para mais ameaça crescer nos próximos meses e cair sobre a campanha eleitoral. Costa deve estar a antecipar a tempestade, senão não teria gerido de forma tão cínica e tão calculista a sua única deslocação a Évora, a sua rápida visita ao preso nº 44.

A história tem pois destas ironias: o homem que calculou todos os timings para só ocupar o palco no timing certo e ter pela frente uma autoestrada que o levaria ao poder, é o mesmo homem que não consegue controlar qualquer timing, que não consegue sequer saber o que deve pensar e defender. Não gostava de lhe estar na pele, sobretudo depois das expectativas que suscitou.

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