sábado, 6 de julho de 2013

Portugal arrisca-se a um segundo resgate ou a algo equivalente.


Portugal arrisca-se a um segundo resgate ou a algo equivalente.


Por Ana Henriques in Público
06/07/2013

Alfredo José de Sousa Presidiu ao Tribunal de Contas durante uma década e viu recentemente o Governo negar-se a reconduzi-lo no cargo de provedor de Justiça, por ter aludido a eventuais eleições antecipadas, cenário cada vez mais plausível

O juiz Alfredo José de Sousa empenhou-se nos últimos quatro anos na defesa dos direitos dos cidadãos face às pequenas e grandes prepotências da administração central e local. Aos 73 anos diz que a crise política ainda agora está a começar e que não vislumbra o seu desfecho. A entrevista foi feita antes dos últimos desenvolvimentos provocados pelas demissões de Vítor Gaspar e Paulo Portas.

Neste momento, à crise económica e social do país soma-se uma crise política. Acha que isso tornará inevitável um segundo resgate?

A crise política ainda está no começo e o seu desfecho não se vislumbra neste momento. As primeiras reacções dos mercados financeiros, e a subida de juros da dívida (e a queda das acções na bolsa nacional), bem como o prolongamento da instabilidade política, colocam essa hipótese. A menos que haja uma firme intervenção de mecanismos no interior do Eurogrupo e Banco Central Europeu! Mas se isto suceder, não será certamente sem condicionalismos idênticos aos de um resgate em relação ao défice e à dívida pública.

Como encara a demissão de Vítor Gaspar, seguida da de Paulo Portas? Passos Coelho ainda tem condições para governar o país ou é imperioso o Presidente da República agir e convocar eleições?

Torna-se indispensável uma intervenção activa do Presidente como garante do regular funcionamento das instituições democráticas. A dissolução da Assembleia da República e eleições antecipadas deverão ser o último recurso. Mas, se tiver que ser, que sejam simultâneas com as autárquicas, até porque isso acarreta menos custos financeiros e sociais para o país.

Foi por ter mencionado essa possibilidade que o Governo o "saneou", recusando-se a reconduzi-lo no cargo por mais um mandato?

A história desse "saneamento" é muito curiosa. O que disse em entrevista à Antena Um foi que só Paulo Portas poderia fazer cair o Governo e que, se isso acontecesse, ao menos que fosse a tempo de fazer eleições antecipadas a tempo das autárquicas. Mas também acrescentei que não acreditava que houvesse qualquer crise política antes da saída da troika do país. O grupo parlamentar do PSD afirmou que eu estava a exorbitar as minhas funções porque tinha defendido eleições antecipadas, o que não era verdade. Mas, mesmo que fosse, tenho direito a emitir uma opinião política. Isto foi um óptimo pretexto para o PSD, que não estará muito contente com a minha actuação como provedor de Justiça face a este Governo, anunciar que não me ia reconduzir, esquecendo-se que, face ao anterior executivo, do PS, a minha atitude foi igual...

Mas por que quereria o PSD arranjar tal pretexto?

Quando vim para aqui tinha uma auditoria do Tribunal de Contas, instituição a que presidi durante 10 anos, a dizer que a situação de 12 pessoas que prestavam funções na Provedoria, nomeadas pelo meu antecessor, era ilegal - entre outras razões, porque não tinha havido concurso. Não lhes renovei a nomeação. Alguns deles tinham estreitas ligações ao PSD. Até havia na altura um andar ao lado da sede do PSD onde essas pessoas trabalhavam quase todas, nas linhas de atendimento telefónico de crianças e idosos da Provedoria. Hoje essas linhas telefónicas funcionam na sede da Provedoria.

O facto de ter pedido ao Tribunal Constitucional que verificasse a legalidade dos cortes nas pensões dos reformados previstos no Orçamento do Estado terá pesado na não-recondução?

Tive que agir, porque me chegaram centenas de queixas dos reformados sobre isso. Trata-se de uma classe que tem sido sacrificada. Quem tem reformas que não são famosas, acima dos 1200 euros, está a ser prejudicado. Com o aumento do desemprego, há muitos reformados que são a segurança social privada dos seus familiares. Se desagradei ao Governo, foi porque estava a cumprir a minha função. Admito que por razões de discordância política o PSD não quisesse renovar-me o mandato. Agora não admito que me ponham na boca afirmações que não fiz nem que me acusem de falta de isenção, como sucedeu.

Sentiu-se enxovalhado?

Só me enxovalha quem eu quero. Nem todas as pessoas têm competência nem autoridade moral para me insultar. E vindo donde veio...

Antes de si houve uma série de figuras do PSD no cargo de provedor...

E do PS também. A Provedoria de Justiça nasceu em 75, mesmo antes de haver Constituição, e o primeiro provedor era um membro do Conselho da Revolução, o coronel Costa Brás. Julgo que sem qualquer ligação partidária devo ser praticamente o único provedor de Justiça até hoje.

Em Campo Maior um cidadão mandou o Presidente da República trabalhar e foi julgado em processo sumário. O PSD quer impedir temporariamente de entrar no Parlamento quem proteste nas bancadas do público. Serão sinais de que estamos a caminhar para uma democracia musculada?

Pode configurar [isso] - ou então uma tendência autoritária. Sou mais adepto do exercício sensato do poder, com os políticos, através do seu exemplo, a infundir o respeito. Há um descontentamento generalizado dos portugueses que se reflecte também nas queixas que surgem na Provedoria, algumas das quais são autênticos desabafos.

Já tem queixas relativamente ao adiamento do pagamentos dos subsídios de férias?

Tenho nove queixas.

Mas por que razão se passou o subsídio para Novembro?

Tem a ver com a troika. O défice é calculado ao trimestre, e se fosse pago em Junho poderia fazer aumentar o défice no final do ano, tendo pelo meio umas eleições autárquicas. Estou a falar não como provedor, mas como cidadão observador da coisa pública.

Como antigo presidente do Tribunal de Contas, como acha que foi possível o país chegar a este estado?

Tem a ver com aquilo a que o Presidente da República chamou espiral recessiva. A maior crítica alguma vez feita a este Governo foi esta. Aumenta o desemprego, sobem-se os impostos, baixa o consumo...

Tem dito várias vezes que o Estado nem sempre se comporta como uma pessoa de bem. Quer explicar?

Tenho muitas queixas sobre os atrasos no reembolso das contribuições para a Segurança Social indevidamente pagas por erro, por exemplo. O Estado recebe-as, o contribuinte pede o seu reembolso quando se apercebe do engano e o pagamento demora anos. No entanto, quem deixa de pagar a segurança social tem uma penhora às costas passados uns tempos - e muitas vezes penhoras ilegais, acima de um terço do ordenado, que é o máximo que permite a lei.

O fisco porta-se particularmente mal com os contribuintes?

Muitas vezes o sistema é cego. Basta carregar-se num botão para se desencadear um conjunto de operações que podem lesar os contribuintes.

No seu mandato também teve várias vitórias...

Um dos casos que mais satisfação me deram resolver foi o das arribas das praias. Quando tomei posse, em Julho de 2009, houve vários acidentes com arribas no Algarve, um dos quais, o da praia Maria Luísa, com mortos e feridos. Em Julho de 2012 foi alterada a legislação para obrigar à sinalização destas arribas e permitindo às autoridades intimar os banhistas que estejam debaixo delas a abandonar estes locais, graças a uma recomendação minha. A capacidade argumentativa dos juristas da Provedoria de Justiça leva muitas vezes a administração a reconhecer que errou e a corrigir, sem que o cidadão seja obrigado a ir para tribunal. Muitas vezes evita que os queixosos vão entupir os tribunais.

Lembra-se de outros casos?

O da regulação do poder paternal nos tribunais de menores, que chega a demorar anos por causa dos atrasos nos relatórios dos técnicos do serviço social. Fiz uma recomendação à ministra da Justiça e ao ministro da Segurança Social, que constituíram um grupo de trabalho para solucionar o problema.

Está resolvido?

Neste país, quando não se quer resolver os problemas nomeiam-se grupos de trabalho.

Como encara a co-adopção do ponto de vista legal?

O legislador pode ir à realidade social e dar-lhe um tratamento legal - foi o que sucedeu. E esta lei é mais no interesse da criança do que no dos co-adoptantes. É a minha opinião pessoal, que casos desses não aparecem na Provedoria. Nessa matéria há um princípio que é o superior interesse da criança.

O dr. Marinho e Pinto também fala nesse interesse para defender o contrário. Ele disse há algum tempo que gostaria de ocupar o cargo que vai deixar. Daria um bom provedor?

Não me vou pronunciar. É uma pessoa que suscita as mais desencontradas opiniões.

O que faz falta alterar no estatuto do provedor de Justiça?

O Governo não é obrigado a seguir as recomendações que lhe faz o provedor, mas tem 60 dias para lhes responder. Já no caso da Assembleia da República não existe um prazo: são distribuídas pelos grupos parlamentares e ficam ao cuidado e ao interesse dos deputados, que podem ou não interessar-se e levá-las a plenário. Devia haver também um prazo para os deputados dizerem ao provedor que posição tomam relativamente às suas recomendações e se vão actuar.

É uma pequena alteração...

Havendo esta alteração, fica a nu o incumprimento de uma norma por parte do Parlamento, que é quem faz as normas. Eu esperaria por condições mais favoráveis para a levar a cabo: há uma maioria que poderá não estar interessada em fazê-la.

Já lhe aconteceu as suas recomendações ao Parlamento caírem em saco roto?

Já. Uma das coisas que estavam pendentes quando vim para provedor era a restituição, pelo Ministério das Finanças ao patriarcado, da Igreja de Santo António, em Campolide. Aquilo ingressou no património do Estado com as expropriações da implantação da República, e um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça mandou-a restituir à paróquia em 1927. A minha recomendação é de 2010, ainda Teixeira dos Santos era ministro [de José Sócrates]. Não foi acatada: disse que a lei actual não permitia restituições gratuitas do património do Estado - argumentação que não convencia. Se o Estado quisesse ter sido pessoa de bem, era muito fácil, fazem-se tantas habilidades legislativas... era vendê-la pelo preço simbólico de um euro. Enviei o assunto ao Parlamento e nunca tive resposta. E eu a pensar que o CDS, por ser um partido democrata-cristão, iria pegar no assunto... Não pegou e a igreja continua a degradar-se.



Sem comentários: