domingo, 21 de julho de 2013

Cavaco num palco sem luzes.


Algum líder propôs um esboço de pedido formal e escrito à troika para uma flexibilização?
D epois de 21 longos dias de agitação e suspense, Portugal - e Bruxelas - espera pelo próximo gesto de Cavaco Silva. Falhada a sua proposta ambiciosa, o que vai fazer o Presidente?
Entre os que esperam ver o plano B de Cavaco - convictos de que o Presidente não arriscaria um voo tão alto se não tivesse antecipadamente acordado compromissos alternativos - e os que apostam numa abertura significativa da troika que permita a muito pedida "alteração da trajectória" - até Pedro Mota Soares, do CDS, usou ontem a expressão -, não parece haver muitos cenários disponíveis.
Tudo converge para aquilo que muitos em Portugal não queriam que acontecesse, entre os quais o próprio Presidente da República: o Governo mudar aqui e ali a sua composição, dar mais uns galões a Paulo Portas e, na prática, manter tudo como estava antes de Vítor Gaspar e Portas se terem demitido. Ou seja, avançar com a remodelação cosmética que Cavaco chumbou há menos de duas semanas.
Em cima da mesa, Belém tem uma solução que não é mais do que uma saída airosa baseada numa technicality, um formalismo legal que permitirá ao Presidente e ao Governo (tentar) dizer que a crise acabou: dar luz verde à remodelação governamental de Passos explicando aos partidos e ao país que nunca chegou a receber uma proposta formal da remodelação. Independentemente do que vamos sabendo sobre a informalidade com que Passos trata alguns assuntos de Estado - enviou um SMS a Portas sobre a polémica nomeação de Maria Luís Albuquerque, etc. - esta solução, mesmo que permita a não convocação de eleições agora, não ajudará com certeza os portugueses a aproximarem-se da classe política.
A maioria do país - tal como expresso em sondagens, em apelos e manifestos dos últimos dias - não queria eleições antecipadas mas um acordo. O país está cansado da crise e cada vez mais distante dos políticos. As pessoas têm cada vez menos dinheiro e cortam cada vez mais em bens básicos como pão, azeite e fruta.
Os últimos dois dias foram os dias dos partidos. O PS disse que a culpa foi do PSD e do CDS-PP, O PSD disse que estava de "consciência tranquila", o CDS disse lamentar a posição do PS. Não sabemos ainda quem deu que passos exactos durante as negociações e passaremos os próximos 21 dias - para não dizer 21 meses - a ouvir trocas de culpas. Continuamos no entanto sem saber o essencial: o que fizeram de facto os líderes dos três partidos para convencer a troika a aceitar uma maior flexibilização? Tentou o Governo e exigiu o PS ao Governo escrever um pedido concreto à troika? Sendo óbvio que a troika estava à mesa das negociações, e não apenas de forma virtual, deveriam ter começado por aí.
Cavaco está agora no centro do palco, mas as luzes estão apagadas. Está escuro, não se vê nada e não parece haver nenhuma ideia luminosa à vista.
Editorial / Público


A crise por detrás da "crise"

Andamos tempo de mais a esquecer-nos de que Portugal ainda é uma democracia. Esquecemo-nos também de que Portugal ainda é um país soberano e independente. Há demasiadas pessoas a dizerem-nos que tudo isto é só nominal, porque não podemos viver em democracia sob o jugo da "economia" e não há soberania, enquanto houver Memorando. Aceitem e calem-se, porque o país deve ser governado sem lei, nem Constituição, e submetam-se a tudo que a troika nos diz, porque os nossos soberanos são os "credores". Isto, dizem-nos, é indiscutível, é a "realidade", no dizer do primeiro-ministro, e a "realidade" não se discute.
Daqui resulta uma enorme perturbação, como se vê nos filmes de ficção científica quando o Sol resolve destruir-nos, ou surge do fundo do Pacífico o grande lagarto Godzilla, ou as plantas resolvem matar-nos. O ministro dos Negócios Estrangeiros acha normal descrever o seu país como um protectorado. Como eram Marrocos, a Manchúria, a Boémia e Morávia, a Basotulândia, ou as ilhas Tonga. Repito: eu posso dizê-lo, ele não. O facto de o ministro usar essa classificação (ele não é analista, é ministro, pelo que a sua voz é aceite pelas diplomacias estrangeiras como sendo a descrição legítima, não só de facto mas de jure, da situação portuguesa) não tem origem em nenhum acto do Parlamento, nenhuma rendição de tropas, nenhum Pétain a assinar a submissão a Hitler, em nome da "salvação nacional". Se somos um protectorado, devemos organizar a resistência ou ser "colaboracionistas"?
O que é significativo é que a existência de um Memorando, do teor do que foi assinado há dois anos, é considerado pela nossa elite do poder como uma cedência total da soberania, e uma suspensão da democracia, comportando-se em consequência com a maior das naturalidades. Não é apenas uma medida de emergência financeira, pactuada com entidades de que Portugal faz parte (Portugal é membro do FMI, do BCE e da UE), mas uma rendição que põe em causa tudo, a começar pela independência e a acabar na democracia.
Na verdade, a questão mais de fundo é que a política definida no Memorando era para uma elite económica-financeira-política muito mais do que um plano de emergência financeira, era o programa salvífico para "nos comportarmos bem", e para que "o país nunca mais seja o mesmo". Era uma oportunidade única e foi defendida com tropas em batalha, como se fosse uma guerra. E era, era e é, uma guerra social.
Ou seja, o Memorando foi não só uma emergência, mas também uma salvação divina. Deu aos seus colaboracionistas um bordão político que ia muito para além do seu cumprimento, tornando-se o programa de regeneração nacional que poria em ordem os preguiçosos gastadores dos portugueses que "viviam acima das suas posses", reduzindo-os punitivamente à sua condição de pobres de que nunca deveriam ter saído, ainda por cima com dinheiro emprestado e encostados ao Estado. Quem eram esses portugueses? Os trabalhadores, os funcionários, os pequenos empresários, os reformados, os pensionistas, os "de baixo".
Os de cima pagavam uma taxa, uma portagem, mas reforçavam o seu mando e ficavam com um país de mão-de-obra barata, assente no "estabilizador" do desemprego e na perda quase total de direitos laborais. Asseguravam que Portugal continuaria a pagar as suas reparações de guerra aos "credores", na guerra em que o país tinha ficado um protectorado e, colaborando no presente, apostavam no futuro. No seu futuro. Para eles, a "salvação nacional" é a manutenção da hierarquia social e o reforço da sua desigualdade. Sabem os de cima e sabem os de baixo.
Não foi a idiossincrasia histérica de Portas, nem a autocrítica de Gaspar que abriram esta crise, foram os efeitos da "fadiga fiscal", da "usura social", do "cansaço social", da "erosão significativa no apoio da opinião pública", da "profunda crise (...) social e política", ou seja, de tudo o que se passa fora dos gabinetes, e que foi considerado sempre irrelevante, menor, dano colateral. Os jornalistas e comentadores preferem valorizar as tricas políticas, dizendo que o Governo só caiu ou só podia cair por dentro. Na verdade, não podem admitir que aquilo que estão sempre a desvalorizar possa ter este papel. Mas, se não fosse a agitação social, essas coisas como greves, manifestações, protestos, Grândolas, insultos e quadra-costas, etc., como é que se sabia que havia "erosão significativa no apoio da opinião pública"? É, as causas exógenas actuam pelas causas endógenas.
Gaspar percebeu bem que a inflexão que o Governo estava a conhecer, e que se manifestou nas suas dificuldades para encerrar a sétima avaliação, se devia à entrada em cena, com toda a sua glória, do eleitoralismo. Passos e Portas são homens de partido, vieram de todas as jotas para o poder, Passos da JCP, via JSD, Portas da JSD. São muito diferentes, mas em muita coisa são iguais como políticos profissionais no actual sistema partidário. Sabem melhor do que ninguém que nos partidos que lideram, há, principalmente no PSD, milhares de pessoas cujo emprego depende do partido, nas autarquias, nas administrações regionais, no Parlamento, nas zonas empresariais ligadas ao poder político, na administração central e no Governo. De motoristas a funcionários dos grupos parlamentares, deputados, administradores hospitalares, membros dos conselhos de supervisão das grandes empresas, escritórios de advogados e consultoras financeiras onde o conúbio com o poder político é altamente lucrativo. E essas pessoas percebem bem de mais que podem ver o seu pool de empregabilidade e de acesso ao poder reduzido para metade num desastre eleitoral. Também aqui a aceleração da crise no interior do Governo vem de fora, da mesma "usura social" que ninguém quer admitir, aqui pelos seus efeitos eleitorais no poder dos partidos.
É por isso que a crise política em que estamos mergulhados tem tudo a ver com a democracia, no bom e no mau sentido. Só pode ser resolvida pelo desbloqueamento da situação política e isso só se consegue com eleições e, por outro lado, essas eleições são vistas com pânico pelos partidos da coligação, o PSD e o CDS. O Presidente queria esse desbloqueamento, a troika quer esse desbloqueamento, ambos sabem que sem o PS não há solidez nem continuidade nas medidas que desejam.
O PS, por seu lado, podia ter assinado de cruz, e assinaria de cruz, se o tempo andasse para trás. Ora o tempo nunca pode andar para trás, porque a razão que levou à exclusão do PS da governabilidade foi a arrogância utópica do "troikismo" radical, que queria fazer uma revolução e não queria "consensos". Ir agora buscar o PS quando tudo está a ruir viola o princípio de autoperservação que em Seguro é da mesma natureza de Passos Coelho. Tempo errado, senhor Presidente, se querem que Seguro assine o que for preciso coloquem-no no poder por eleições, inseguro e frágil, e nessa altura ele entende-se bem com um PSD humilhado pelas urnas. É tudo muito mau, mas é assim.
Mas a crise não vai passar e irá piorar se não houver eleições. Queira o Presidente ou não, se dá ao Governo a remodelação que ele deseja - ela própria a melhor garantia de que vai continuar a haver instabilidade governativa -, e os dois anos até 2015, reforça a arrogância que Passos Coelho já mostrou na crise ao afrontá-lo na Assembleia. O Presidente volta ao contexto do seu discurso de 25 de Abril, mas numa situação muito mais frágil. É só uma questão de tempo até toda a gente perguntar se era para isto, por que perdeu todos estes dias? É que o argumento dos mercados não serve só para aterrorizar os indígenas com as eleições, serve também para Portas, Passos e Cavaco.
Mas há uma razão ainda mais funda, estrutural, para que a crise não se vá embora e ela traduziu-se na grande omissão destes dias, no enorme silêncio absurdo e cego com que se discute tudo e três tostões como se as pessoas comuns fossem mera paisagem, os portugueses súbditos sem voz - as eleições não servem para nada, dizem-lhes - e colonizados pelos colaboradores dos "credores" de um protectorado consentido sem revolta. Se nada disto mudar, é só esperar pelos próximos episódios.

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