Os antigos hospitais da Colina de Santana: um caso de irreparável depauperamento do património
Desde 2009, quando a empresa Estamo adquiriu os
hospitais de São José, Santa Marta, Santo António dos Capuchos e Miguel
Bombarda, acumularam-se para os estudiosos do património artístico olisiponense
legítimos receios sobre qual seria o seu futuro: como poderiam ser valorizadas e
salvaguardadas as suas valências histórico-artísticas, dotadas de importância
nacional, no contexto das reutilizações futuras?
Tratando-se de hospitais instalados em antigas casas religiosas (São José foi
colégio da Companhia de Jesus, o Miguel Bombarda foi da congregação de S.
Vicente de Paula, os Capuchos eram da Província franciscana de Santo António,
Santa Marta era de clarissas urbanistas), os sinais de apreensão cresceram
quanto ao destino do património artístico acumulado durante séculos nessas
unidades que enriquecem a Colina de Santana. Por isso, mercê de acordos estabelecidos com o Centro Hospitalar-Lisboa Central, foi cumprido com carácter de urgência, nos últimos cinco anos, o levantamento integral da riquíssima azulejaria existente, o recenseamento dos acervos de arte móvel, e a pesquisa histórica necessária à sua fixação identitária. Ao Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa coube cumprir o inventário exaustivo (através da Rede Temática em Estudos de Azulejaria e Cerâmica João Miguel dos Santos Simões) dos conjuntos de azulejos, talha, escultura, pintura, revestimento marmóreo e demais equipamentos artísticos, enquanto que técnicos de outras áreas estudavam o equipamento médico com valência museológica, catalogavam os fundos documentais e as bibliotecas sectoriais, inventariavam o museu de Dermatologia, único no país, e os fundos científicos a salvaguardar (para que um dia se crie o Museu de Hospitais Civis de que a cidade carece), sem esquecer o carácter unicum da arte outsider conservada no Miguel Bombarda, que urge preservar.
Esse trabalho de salvaguarda (não se pode defender o que não se conhece!) não foi naturalmente em vão, mas faliram tentativas de articulação com os projectos que entretanto se desenvolviam, ainda que se fizessem propostas com carácter de urgência junto da Direcção-Geral do Património Cultural para classificar espaços sem protecção como, no caso do ex-Miguel Bombarda (onde só o Panóptico e o Balneário estão classificados), se considerar de Interesse Público a igreja dos vicentinos, as enfermarias em poste telefónico, oficinas, cozinhas, terreiro e outros espaços funcionalmente inovadores no seu tempo.
Ao mesmo tempo, multiplicavam-se esforços (grosso modo, gorados) pelas Universidades, a Associação Portuguesa de Arte Outsider, o SOS-Azulejo, o Fórum Cidadania, o ICOM-ICOMOS e outras estruturas de defesa do património, para se conhecerem os desígnios dos projectos previstos para estes espaços, e nesse sentido foram realizadas iniciativas e estudos integrais sobre tais unidades de futuro incerto.
Eis que, finalmente, se conheceram as propostas. E que propostas! Pode dizer-se que superaram as piores expectativas, pois o caudal de demolições que sem apelo nem agravo aí se defende desmantela 85% das existências, sem sensibilidade para entender o espírito do lugar... Nem sequer se respeitam as ZEP das unidades classificadas (são Monumentos Nacionais a sacristia de São José, obra-prima do Barroco, e a igreja de Santa Marta, ainda do séc. XVI; são Imóveis de Interesse Público o edifício de São José, a igreja dos Capuchos, o claustro, a cisterna, e o palacete Melo; é Conjunto de Interesse Público o Panóptico do Miguel Bombarda, obra de assistência psiquiátrica do arquitecto José Maria Nepomuceno, e o Balneário D. Maria II, nesse ex-hospital)! Além dessa flagrante ilegalidade, a massa de construção nova (hotéis, centros comerciais, condomínios, um silo, etc.) mostra uma atitude de soberba face às existências, pois destrói a organicidade, a coerência histórica, o peso e dimensão dos sítios, suas linhas de articulação e continuidade, depauperizando sem remissão o mais importante espaço unitário de referência da cidade em termos de História da Medicina.
As propostas dos arquitectos da Estamo assumem, de modo geral, uma intenção de desmantelamento em larga escala a partir do pressuposto de que se trata de construções sem relevância, sem ter em conta a esclarecedora informação histórica e a análise sistemática das funcionalidades. Face a estas ameaças, que fragilizam significativa e gravosamente o património da cidade, a CML teve de alargar o tempo de discussão dos projectos, dada a máxima gravidade que envolvem, impondo-se um debate alargado.
Entendamo-nos: quando defendemos o património monumental não assumimos uma atitude compaginável com obscurantismos de "velho de Restelo" avessos à inovação e sem capacidade para reconhecer a qualidade acrescida que possa advir de adições avançadas. Mal seria se o património não se renovasse em todas as épocas! Tal significa, sim, uma consciência cívica, histórica, estética, funcional e afectiva - valores que parecem estar arredados em todo este triste processo.
É que não se trata de obra nova implantada em sítios virgens, mas de reconversões funcionais que exigem cuidados de pinça. Nas propostas avançadas pelos quatro "ateliers" envolvidos, o que sucede é que, a montante de qualquer intervenção relevante que se reconheça, tudo assenta numa política de desprezo pelo existente, sacrificado a interesses especulativos e ao princípio da máxima rentabilização de terrenos. Os edifícios são visados como estorvo neste magno processo de destruição, mesmo se apresentam interesse histórico-artístico, de per si e no conjunto. Que sentido faz, por exemplo, manter-se o gabinete onde o Dr. Miguel Bombarda foi assassinado se se arrasa todo o contexto em que tal ocorreu? Por que se razão se destrói o Instituto de Medicina Legal ou o Asilo da Mendicidade nos Capuchos? Apesar das cicatrizes acumuladas pelos usos, a valia destes espaços é algo de inquestionável. Basta uma visita atenta para ver como estes ex-hospitais conservam valências de qualidade, desde estruturas arquitectónicas de origem, equipamentos decorativos, enfermarias, dormitórios, alas hospitalares, além de integrarem um dos mais excepcionais revestimentos de azulejaria dos séculos XVII e XVIII do país, só por si referência basilar à dignificação turístico-cultural desses espaços. Assim o atestam os estudos de especialistas como o eng.º Santos Simões e os drs. José Meco, Barros Veloso e Isabel Almasqué.
Uma última nota: para os arquitectos da Estamo, o único património que parece merecer respeito e ser poupado ao camartelo é apenas (e na parte estrita dos espaços de culto...) a vertente conventual, aliás a única que já mereceu classificação parcial... A identidade do património ligado à Medicina e Saúde, essa, vê-se apagada da memória, como se não contasse para a identidade histórica da cidade oitocentista...
É imperioso sensibilizar a CML para que estes projectos sejam revistos em respeito pelas valências que, com toda a evidência, ameaçam, desrespeitam e, pior, destroem. Só com um diálogo com as preexistências e uma prática de salvaguarda é possível e desejável conceber a revitalização destes espaços, agora que a sua função foi mais uma vez alterada pelas circunstâncias da História. Mas tal exige o respeito pelas unidades histórico-artísticas sobreviventes e uma ideia clara de redignificação turístico-cultural da cidade, que devem prevalecer acima dos interesses especulativos e de acções de pretensa modernização. Acredito, apesar de tudo, que o bom senso prevalecerá.
Historiador de Arte (IHA/Fac. Letras da Univ. de Lisboa)
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